O debate sobre a ascensão do mundo multipolar e do multilateralismo avança ao redor do mundo e tem como principal tema o papel das organizações internacionais.
Criadas há décadas, elas vêm sendo criticadas por não mais refletirem a realidade da conjuntura política internacional e por não oferecerem soluções efetivas para impasses e conflitos. A maior parte das críticas vêm de líderes de países emergentes, como Brasil, Rússia e China.
Um exemplo disso foi o discurso do presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática de 2022 (COP27), no Egito. Na ocasião, ele alertou para a necessidade de se construir uma nova ordem mundial, calcada no multileralismo e na multipolaridade.
A fala de Lula não é isolada e vai ao encontro de outros críticos que apontam que as organizações internacionais necessitam urgentemente de uma reforma para se adequarem à realidade atual.
As críticas são especialmente direcionadas à Organização das Nações Unidas (ONU). Criada em 1945, a ONU tinha a missão de ser um grande fórum de busca de soluções pacíficas para controvérsias entre países. Esse objetivo está disposto na Carta da ONU e no próprio logotipo da organização, feito em projeção azimutal, permitindo a visão de todos os continentes do globo. Porém a estrutura e o funcionamento da ONU ainda nos dias de hoje refletem as correlações de força presentes nas relações internacionais da época em que ela foi criada, o que abre margem para críticas.
Para entender que benefícios a multipolaridade pode trazer para o mundo e por que as organizações internacionais, em especial a ONU, necessitam de uma atualização, a Sputnik Brasil conversou com João Cláudio Pitillo, professor de história e pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas (Nucleas) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pitillo: A ONU tem um problema interno gravíssimo, porque ela escolheu, muitas vezes, ser uma linha dois do imperialismo
Pitillo ressalta que “a ONU precisa passar por uma reforma para ser efetiva, pois ela não pode ser um satélite dos interesses da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] ou dos EUA”. “O problema é que Bruxelas e Washington pautam a ONU. A ONU perdeu toda a sua independência, todo o seu sentimento multilateral”, destaca o pesquisador.
Ele acrescenta que “a ONU foi criada para evitar novos conflitos, mas desde a sua criação os conflitos no mundo se ampliaram”.
“O mundo antes da ONU tinha menos conflito do que o pós-ONU. Claro que sabemos das complexidades do imperialismo e do capitalismo, mas a ONU tem problemas graves. Eu acho que um dos problemas mais graves é a questão da Palestina. A ONU criou o Estado de Israel, mas não consegue defender a Palestina e não consegue colocar Israel dentro dos limites nos quais ela mesma foi criada.”
Pitillo ressalta que o mesmo se vê em outros continentes. “Os EUA fazem o que querem no Haiti, deram e patrocinaram golpes militares na América Latina durante todo o século XX, e qual foi o papel da ONU nisso? Sabemos que a ONU não é um exército de intervenção, mas ao longo dos anos, principalmente durante a Guerra Fria, ela foi tutelada e perdeu completamente sua capacidade crítica. E mais: ela deveria ter um sistema de pesos e contrapesos que privilegiasse os mais fracos, os mais frágeis, e isso não acontece”, destaca Pitillo.
Questionado sobre que mudanças a ONU poderia implementar para ser mais efetiva, Pitillo afirma que as principais mudanças seriam nos quadros da organização.
“Quem representa a ONU, quem pauta a ONU? Essa é a questão. A ONU tem um problema interno gravíssimo, porque ela escolheu, muitas vezes, ser uma linha dois do imperialismo. Porque ela é assediada, acossada e não consegue sobreviver se não estiver atrelada a Bruxelas ou Washington. Isso que a gente entende como ONU muitas vezes se tornou um aparelho do imperialismo. Então há de se disputar a ONU e se discutir qual caminho ela deve seguir.”
Segundo Pitillo, dois fatores da história recente impulsionaram o debate sobre a necessidade de se reformular a ONU. O primeiro foi “a invasão do Iraque pelos EUA, que levou a ONU a perder a capacidade de arbitrar de forma séria em conflitos”. O segundo foi o atual conflito entre Rússia e Ucrânia. Segundo ele, “a ONU está desempenhando um papel muito ruim, pois está claro que tem um lado no conflito”.
“A ONU estava dormindo durante todo o processo de nazificação da Ucrânia. Aí ela acordou e passou a discutir o papel que a Rússia está fazendo com a operação [militar] em se defender. A ONU perdeu a capacidade de fazer uma avaliação crítica dos acontecimentos globais. É importante que a ONU passe a interpretar esses acontecimentos levando em consideração o preâmbulo dos acontecimentos”, diz o pesquisador.
Pitillo é categórico ao afirmar que “a multipolaridade é fundamental, pois sem ela nós não vamos ter um mundo mais justo e fraterno”. Porém ele destaca que a questão não deve ser discutida no âmbito da ONU e aponta para a necessidade de criação de um novo fórum, maior e mais eficiente.
“O Brasil agora, com a eleição de Lula, tem um papel importantíssimo a desempenhar. Mas não só o Brasil, outros países também precisam desempenhar esse papel. Mas falta um fórum de discussão maior, não podemos esquecer a Conferência de Bandung e o papel que ela representou dos não alinhados. Agora, falta um fórum maior, em que se discuta a multipolaridade. Isso não é discutido pela ONU, ela não abriga isso, não cria condições materiais para que essa discussão da multipolaridade seja efetiva. Isso tem sido discutido de maneira muito individual, muito particular por alguns atores, como China, Rússia, Brasil. Os [países do] BRICS prestam esse papel, mas é preciso ampliar isso.”
Por fim, questionado sobre se o G20 poderia servir como um fórum para se discutir a multipolaridade, Pitillo diz não considerar essa possibilidade. Segundo ele, o G20 “passou a ser um grupo de sócios comerciais”.
“Eu acho que o Mercosul, o BRICS, são espaços embrionários [para a discussão]. Mas a gente precisa efetivamente de um espaço que atenda ao Sul Global e transcenda, chamando novos atores na África, na Ásia, na Oceania e na América Latina”, diz o pesquisador.
Ele conclui fazendo um comparativo com a maior presença da Europa na Copa do Mundo, em detrimento de outras seleções.
“Estamos em época de Copa do Mundo. Como é que pode a Europa ainda mandar a maior quantidade de seleções e [se] ignorar o tamanho da África, o tamanho da América Latina? Isso também acontece na seara política e econômica a nível global. A intenção desse fórum [para discutir a multipolaridade] não seria esvaziar a ONU, mas suportar a ONU nessa discussão. Porque hoje a ONU não quer discutir isso”, conclui Pitillo.
Melissa Rocha | Sputnik Brasil
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
Assista na TV Diálogos do Sul
Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.
A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.
Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:
-
PIX CNPJ: 58.726.829/0001-56
- Cartão de crédito no Catarse: acesse aqui
- Boleto: acesse aqui
- Assinatura pelo Paypal: acesse aqui
- Transferência bancária
Nova Sociedade
Banco Itaú
Agência – 0713
Conta Corrente – 24192-5
CNPJ: 58726829/0001-56 - Por favor, enviar o comprovante para o e-mail: assinaturas@websul.org.br
- Receba nossa newsletter semanal com o resumo da semana: acesse aqui
- Acompanhe nossas redes sociais:
YouTube
Twitter
Facebook
Instagram
WhatsApp
Telegram