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No 2º maior país cristão do mundo, muitos fiéis mais cumprem regras do que praticam valores

Esse parece ser exatamente o ponto da falha das lideranças cristãs: focar mais em instruir seus fiéis para a obediência do que para o exercício do amor
Verônica Lima
Diálogos do Sul
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

O que será que é possível refletir a partir dessas eleições, depois da experiência de quase quatro anos de um governo que usou de muitas mentiras e manipulações para destruir parte das instituições, atacar a democracia, e promover o ódio e a discórdia

Há um sentimento de cansaço compartilhado por muitas pessoas que anseiam pelo retorno dos rumos democráticos do país, mas o cansaço não deve paralisar o exercício reflexivo. 

Por isso, de hoje até o dia 30 de outubro, compartilharei algumas reflexões possíveis diante das ruínas do país sistematicamente atacado pelo ódio. Serão 13 reflexões.

Sim, TREZE, em referência ao número da candidatura que compreendo ser a única possibilidade para sustentar a ideia de um país plural, democrático, onde se possa sonhar e realizar sonhos. A seguir, confira o texto 1 desta série, situado na postura de respeito à pluralidade da vida.

Esse parece ser exatamente o ponto da falha das lideranças cristãs: focar mais em instruir seus fiéis para a obediência do que para o exercício do amor

Portal Vermelho
Se os que se dizem fiéis olhassem em profundidade para a biografia do atual presidente, questionariam suas posturas

Reflexão 1: Lideranças da fé cristã, vocês falharam

Os quatro anos do atual governo mostraram de forma mais intensa que a construção de um Estado realmente laico ainda está distante da realidade das instituições brasileiras. Esse fato é compreensível se consideramos que o Brasil é o segundo maior país cristão do mundo, atrás somente dos Estados Unidos. Mas, isso não seria um problema caso prevalecesse nessa relação dos cristãos com o Estado a principal mensagem do Cristo: o Amor. 

Escrevo esse texto não para apontar acusações contra líderes cristãos, pelo contrário. Escrevo justamente por saber que há muita gente séria e comprometida conduzindo fiéis em diversos lugares desse país. Escrevo também inspirada uma conversa que eu tive com um grande amigo, que como eu, cresceu no interior do Brasil, num lar católico com pessoas que professavam a fé cristã.     

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Por isso, lamento muito em repetir que uma parte significativa das lideranças de fé cristã falharam na tarefa de conduzir o rebanho em direção ao amor cristão. A instrução maior e mais importante, que seria ensinar as pessoas a amar a deus e ao próximo foi mal realizada. Se houvesse êxito, neste momento, a maior parte dos apoiadores do atual presidente – abertamente incitador do ódio, apoiador do armamento da população, e defensor de torturas – para ficar em poucos exemplos, não seria de cristãos. Mas essa é verdade: a maior parte de quem apoia um discurso de ódio, preconceitos e violência é cristã.

E, ressalto, esse texto não é irônico. Eu entendo que as igrejas são instituições cheias de interesses políticos e econômicos. Também tenho consciência que na construção de base colonial do Estado brasileiro, a igreja foi um dos protagonistas na estrutura de colonização – que contou com o genocídio de indígenas, escravização de pessoas negras africanas, entre outras atrocidades que aqui se instalaram. Mas não quero entrar nesses argumentos agora, e não neste texto.

Walter Benjamin: Neopentecostais, Deus mercado e o capitalismo como religião no século 21

Não falo aqui dessas estruturas, porque, como disse acima, eu fui da igreja. Eu fui educada também por catequeses, e me propus, a sério, viver e praticar o Amor proposto pelo Cristo. E sim, eu experimentei genuinamente, diversas vezes, esse amor, e sei que muita gente nas igrejas também experimenta. Esse amor que experimentei e muitos experimentam nada tem a ver com qualquer regra, dogma ou com o que outras pessoas – cristãs ou não – fazem em suas casas. Tem a ver com uma sensação de pertencimento a um mundo que me acolhia (me acolhe?) como eu sou, e isso incluía também meus defeitos. Tem a ver com pertencer à grandiosidade da criação e suas maravilhas. Ou seja, não tem a ver com ser ou não ser “obediente” a uma regra, mas sim praticar e experenciar o amor através das relações. 

E esse me parece ser exatamente o ponto da falha das lideranças cristãs: focar mais em instruir seus fiéis para a obediência do que para o exercício do amor. Fazer algo por amor é diferente de fazer algo porque você tem que obedecer. Isso parece muito simples, quase um pensamento superficial. Mas é essa diferença que fundamenta a crise ética identificamos durante essas eleições. 

Amor exige reconhecimento, acolhimento, superação de diferenças, olhar em profundidade – para o outro, e para si. Obediência requer quase o contrário: o não questionamento, a concordância a qualquer custo, o silenciamento. Se os que se dizem fiéis olhassem em profundidade para a biografia do atual presidente questionariam, por exemplo, a postura de defensor de valores familiares, já que Bolsonaro passou por uma separação litigiosa, com declarações sérias da ex-mulher, inclusive de “desmedida agressividade”. (Fonte: https://veja.abril.com.br/politica/ex-mulher-acusou-bolsonaro-de-desmedida-agressividade/)

Outro exemplo totalmente contrário ao discurso de amor e paz que está no cerne dos valores cristãos, entre os muitos outros que poderiam ser citados, é a defesa do armamento da população como forma de proteção das famílias – uma das principais pautas do atual presidente. Há diversos casos de fiéis que posam para fotos com itens religiosos e armas ao mesmo tempo, sem nenhum constrangimento. Vale lembrar que, segundo a pesquisa mais recente do Datafolha, 65% dos cristãos evangélicos e 37% dos católicos declaram voto em Bolsonaro. 

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E como justificar isso se não um distanciamento da própria mensagem cristã? De que maneira comportamentos como esse são naturalizados por boa parte dos cristãos que votaram em Bolsonaro, se não a partir de uma deturpação dos valores cristãos retratados na Bíblia, o livro sagrado para tantas denominações? Uma leitura em profundidade das palavras ali contidas seria compatível com o discurso de ódio propagado por Bolsonaro e seus seguidores?

Recentemente circulou em algumas redes sociais um áudio de uma fiel evangélica que escancarou a diferença entre obedecer e realmente viver e praticar a palavra cristã: “eu não sou crente em pastor, eu sou crente em Jesus; no dia que fui aceitar, eu aceitei foi Jesus”, disse a mulher em resposta ao pastor, que havia declarado repúdio aos fiéis que votariam em Lula. De forma mais direta, o que ela explicou foi que a formação cristã que teve não se reduziu simplesmente a obedecer às orientações do pastor. E olhando em profundidade para situação ela se posicionou de acordo com suas experiências e com aquilo que realmente sentia.

A palavra cristã é repleta de referências à liberdade que seria fruto do verdadeiro amor, da fraternidade e da paz entre todos na sociedade. Mas uma significativa legião de cristãos ainda parece presar por discursos violentos e de ódio contra o que é diferente. Talvez falte na instrução desses fiéis a orientação para focar mais na prática do que leem nas escrituras. A obediência às regras e orientações viria como consequência, e sempre priorizando o amor.

E é a própria fé cristã que sustenta que essa conversão de obedientes em praticantes do amor é possível. Sempre é tempo de reparar as falhas.

Verônica Lima | Colaboradora da Diálogos do Sul.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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