Pesquisar
Pesquisar

Novas perspectivas: o narcotráfico colombiano e a política de drogas de Gustavo Petro

Petro já deixou claro: a guerra às drogas falhou. Nesse contexto, o presidente procura implementar uma nova política, o que balança o cenário colombiano
Isabelle Paiva
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Segundo o relatório publicado pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC) em 2023, a cocaína é a droga mais utilizada do mundo, e a Colômbia, a maior exportadora do produto no planeta.

No ano passado, o governo dos EUA estimou que o país produzia mais de 1 milhão de quilos de cocaína, a maior quantidade do globo e mais do que as duas nações mais próximas – Peru e Bolívia – juntas.

Desde a primeira metade do século XX o mercado de drogas na Colômbia se desenvolve e penetra espaços da nação e fora dela, inclusive o próprio Estado. Como forma de combater a questão, principalmente a partir de 1970, os governos tentam solucionar o problema a partir da tática disseminada pelos Estados Unidos com a chamada “Guerra às Drogas”, na qual a questão é vista como um problema de segurança pública, mais do que de saúde e seguridade social.

Leia também: Entre o pó e a pólvora: o narcotráfico no México e o papel central dos EUA

Todavia, como já deixou claro o novo presidente, a guerra às drogas falhou. Nesse contexto, desde o começo de seu governo, Gustavo Petro procura implementar uma nova política de drogas no país, o que vem balançando o cenário colombiano.


 

Contextualizando

Para se falar do conflito do narcotráfico no território é necessária uma retrospectiva histórica, mesmo que introdutória, pois desenvolver a questão é tentar desenrolar um emaranhado de disputas políticas e ideológicas internas e internacionais que possibilitaram o desenvolvimento do caldo que se observa hoje.

Continua após o banner

Tendo seu boom inicial a partir de um efeito balão[1] proporcionado pelas políticas da Guerra às Drogas, o conflito tomou enormes proporções em detrimento de uma guerra interna protagonizada por grupos guerrilheiros, organizações paramilitares, os cartéis e a política advinda dos Estados Unidos.

Nesse sentido, apesar da origem nebulosa – por que o narcotráfico começou inicialmente –, como o mercado de drogas se desenvolveu é um condensado de questões divergentes, mas muito conectadas.

Em meio a crescente demanda por narcóticos vinda dos Estados Unidos, a formação de outros mercados latino-americanos e o início das políticas internacionais de combate ao tráfico de drogas, somada a falta de um Estado forte e legitimado entre o povo, a Colômbia foi solo fértil para a formação do quadro atual, com o mercado ilícito se proliferando como epidemia por todas as regiões.

Nesse cenário, no decorrer da guerra civil, diferentes partes do conflito se utilizaram das drogas como principal fonte de financiamento para sua estruturação e ampliação, dos cartéis às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), do Exército de Libertação Nacional (ELN) aos grupos paramilitares como as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC).

Leia também: 1 ex-combatente das Farc é morto por semana na Colômbia; execuções afastam “paz total”

Um relatório histórico da Comissão da Verdade, um painel interdisciplinar encarregado de investigar mais de 50 anos de conflito civil na Colômbia, descobriu que o narcotráfico ajudou a prolongar o conflito, apesar de quase US$ 8 bilhões (cerca de R$ 42 bilhões) em ajuda militar dos EUA à Colômbia.

Os planos imperialistas para a região, na busca de aniquilar todo o germe da ideologia comunista durante o alvorecer da Guerra Fria, também se colocam como aspecto importante, uma vez que determinaram a presença norte-americana no país e como ela se deu.  

 

Atualmente

Todas essas questões levam ao quadro descrito pelo UNODC, no qual a Colômbia continuou a ser o país com a maior parcela do cultivo mundial de arbustos de coca, representando cerca de 61% do total mundial, em 2020.

Continua após o vídeo

Assista na TV Diálogos do Sul

Neste mesmo ano, apesar das áreas produtivas de cultivo de coca terem diminuído, o potencial de fabricação de cocaína na Colômbia aumentou 8% devido ao aumento dos rendimentos e às taxas de eficiência laboratorial mais elevadas. Nos centros de registo, as práticas agrícolas e os métodos de processamento melhorados produzem agora mais folhas, mais alcaloides e mais cocaína por hectare.

Tais áreas de cultivo de arbustos de coca no país mais do que triplicou durante as negociações de paz com as Forças Armadas Revolucionárias – Exército Popular (FARC-EP), diminuindo depois após a conclusão do acordo de paz em novembro de 2016.

Contudo, essa tendência de crescimento vem se consolidando desde 2014, apesar da perseguição ao tráfico de drogas ao longo de cinco décadas com o apoio financeiro de Washington e o acordo de paz com a guerrilha das FARC, em 2016.

Quase metade destes cultivos (49%) está localizada em comunidades negras e reservas florestais e indígenas, de acordo com o relatório.

Leia também: Lawfare atinge Gustavo Petro: entenda golpe em curso na Colômbia e ligação com Duque

Além disso, segundo as autoridades policiais colombianas, Antioquia é um dos departamentos que se posiciona como prioritário no país, devido ao aumento de organizações criminosas dedicadas à produção de drogas sintéticas.

Nesse quadro, a Colômbia ainda se posiciona como rota central do tráfico no continente. A maior parte do tráfico de cocaína no período 2016 a 2020, de acordo com a UNODC, ocorreu ao longo de rotas bem conhecidas, como da Colômbia ao longo da costa do Pacífico até à América Central e/ou México, para posterior tráfico para os Estados Unidos; e da região andina – principalmente Colômbia -, para a Europa Ocidental e Central. Da mesma maneira, os fluxos de tráfico também partem da região andina para outros mercados locais na América do Sul, nomeadamente o Brasil e a Argentina.

Ainda, apesar desse aumento da produção, segundo especialistas, o país vive uma crise do mercado de coca, iniciada há dois anos. Nesse cenário, a grama da pasta de cocaína, que chegava a ser vendida por 3.600 pesos (R$ 4,45), em média, em 2021, hoje está por volta de 2.000 pesos (R$ 2,45), conforme dito por José William Orozco, porta-voz da Coordenação Nacional de Produtores de Coca, Papoula e Cannabis da Colômbia. Ao mesmo tempo, os índices indicam que o custo de produção aumentou devido ao aumento do preço do fertilizante ter dobrado. Todavia, a crise parece não afetar cartéis nem grupos armados, atingindo, principalmente, os pequenos produtores.

 

Organizações envolvidas no tráfico 

Segundo a seção Atores Criminais do relatório Global Cocaine Report 2023, na Colômbia, a economia ilícita é a base para as operações de uma miríade de atores criminosos, muitos dos quais surgiram a partir do conflito político armado que dura há décadas. 

A desmobilização do maior grupo guerrilheiro do país, as FARC, após o acordo de paz de 2016, levou a um maior número de grupos dissidentes que disputavam o controle da cadeia de abastecimento de cocaína.

Continua após o banner

Este conjunto de atores armados são os dissidentes das FARC, insurgências ativas como o ELN, o Clã do Golfo e Los Panchecas

As taxas de aumento nas áreas de cultivo de arbustos de coca e fabricação de cocaína mencionadas acima ocorreram no contexto da reestruturação e reagrupamento desses atores criminosos. 

 

Farc

Em primeiro lugar, como apontado pelo documento, ao longo dos últimos dois anos (2021 e 2023), tem havido uma tendência para a integração e consolidação de alguns destes atores criminosos, nomeadamente os grupos dissidentes das FARC. Dos 30 grupos dissidentes, existem agora duas facções que abrangem cerca de 38 grupos espalhados pelas áreas de cultivo de coca.

Leia também: Amanda Harumy: “Quem consome a droga são os EUA, o que sobra para Colômbia é a guerra”

Ao contrário dos grupos insurgentes das FARC, que utilizaram atividades ilegais para financiar seu projeto político de confronto com o Estado, os grupos dissidentes possuem como objetivos relacionados ao controle dos mercados ilícitos, principalmente do tráfico de cocaína. 

Nesse contexto, a mudança no horizonte estratégico dos grupos fica claro. O narcotráfico, antes utilizado pelos grupos guerrilheiros como meio para financiar seus objetivos políticos, agora se faz o próprio objetivo final.

A consolidação desses atores criminosos, no entanto, não resultou em uma cadeia de comando coesa e vertical; em vez disso, cada facção se assemelha a uma federação de grupos onde os senhores da guerra locais estabelecem suas próprias regras em seus territórios controlados.

 

ELN

Em segundo lugar, é apontado pela UNODC que o Exército de Libertação Nacional (ELN) – o segundo maior grupo guerrilheiro do país – conseguiu aumentar o seu poder militar e expandir a sua presença territorial ao ocupar as áreas deixadas pelas FARC após a desmobilização. Além disso, o ELN parece ter expandido a sua presença para a Venezuela. Como indicam os analistas, em áreas onde tem controle territorial consolidado, por exemplo em Arauca e Catatumbo.

Continua após o vídeo

Assista na TV Diálogos do Sul

Além disso, de acordo com o documento, o ELN está menos inclinado a empregar táticas violentas no seu relacionamento com as comunidades. Todavia, em áreas disputadas com outros atores armados, como o Clã do Golfo, o ELN tende a basear a sua governança criminosa na coerção e na violência.

O envolvimento do ELN no cultivo de coca, na fabricação de cocaína, na mineração ilegal e na exploração madeireira ilegal também varia segundo as suas áreas geográficas de influência. Enquanto em algumas áreas (Chocó, Cauca, Catatumbo) os grupos do ELN se envolvem em atividades relacionadas ao tráfico de cocaína, em outras (Arauca) adotam uma posição contra o cultivo da plantação de coca.

 

Clã do Golfo

Finalmente, após a desmobilização das FARC, o controle territorial sobre as rotas do tráfico de cocaína foi disputado por atores armados ilegais, como o Clã do Golfo, os Puntilleros, os Pelusos, os Rastrojos, entre outros. No entanto, conforme indicado pelo Escritório, ao longo dos últimos quatro anos, os confrontos com rivais e a ação agressiva das forças estatais levaram ao eventual enfraquecimento ou desmantelamento da maioria destes atores. Isto resultou num cenário criminal mais localizado e fragmentado, no qual os grupos menores são cooptados ou formam alianças com grupos mais poderosos.

Dessa maneira, atualmente, existe uma grande quantidade de células criminosas, a maioria das quais com presença territorial limitada. Os grupos criminosos que atuam nas unidades territoriais menores, como em bairros, utilizam o seu conhecimento local para prestar serviços a grupos maiores. No mais, analistas acreditam que esses grupos menores trabalham com vários grupos e podem facilmente mudar de alianças.

Leia também: Prejuízos políticos e sociais marcam meio século da fracassada “guerra contra as drogas” dos EUA

Neste cenário complexo, o Clã do Golf, é a organização criminosa com maior alcance territorial na Colômbia. Conforme alegações da mídia, o grupo exporta cerca de 20 toneladas de cocaína por mês para pelo menos 28 países e tem esse processo facilitado por suas parcerias com grupos criminosos organizados mexicanos – como o Cartel de Jalisco Nova Geração e o Cartel de Sinaloa -, máfias italianas – ´Ndrangheta e Casa Nostra – e redes criminosas dos Balcãs.

De resto, segundo fontes abertas analisadas pelo documento, o Clã do Golfo opera principalmente ao longo das costas do Pacífico e do Caribe da Colômbia, controlando os corredores marítimos de tráfico de cocaína para os Estados Unidos. Além disso, a vizinhança do Panamá dá-lhe o controle sobre os fluxos de cocaína dirigidos para norte através do corredor LAN da América Central, enquanto o porto marítimo de Cartagena proporciona uma localização estratégica para exportar cocaína através do Atlântico.

Fontes abertas indicam ainda que o Clã do Golfo é alegadamente desafiado por Los Panchecas, um pequeno grupo armado ilegal com base operacional na Serra Nevada e influência significativa nas rotas de tráfico de cocaína das Caraíbas. Relatórios oficiais afirmam que Los Panchecas controlam algumas rotas de tráfico de cocaína para os Estados Unidos, para alguns países asiáticos, para a República Dominicana e para a Europa.

A organização do Clã do Golfo possui uma estrutura mista em rede, o que lhe permite estar presente em pelo menos 12 departamentos do país. Em alguns departamentos, principalmente no noroeste da Colômbia, o Clã do Golfo possui numerosas células, que têm diferentes graus de autonomia em relação ao comando central e impõem controle territorial sobre mercados ilícitos, incluindo locais de produção de cocaína, mineração ilegal e extorsão. Em outros departamentos com grupos criminosos locais menores.

Assim, o comando central do Clã do Golfo parece consistir num grupo de líderes baseados na área de Urabá que gerem de forma independente as suas próprias rotas de tráfico. Além disso, o Clã do Golfo regula o cultivo de coca e o mercado de base da cocaína, e também fornece proteção para locais de processamento da droga. O controle territorial sobre áreas de cultivo de coca e corredores de tráfico dentro da Colômbia permite que o Clã do Golfo forneça serviços (como escoltar carregamentos de cocaína, fornecer serviços de armazenamento e expedição) para outros traficantes.

 

Petro já deixou claro: a guerra às drogas falhou. Nesse contexto, o presidente procura implementar uma nova política, o que balança o cenário colombiano

Foto: Gustavo Petro/Facebook
Desde as eleições de 2022, o primeiro presidente de esquerda da Colômbia propõe repensar a política de drogas no país




Grupos estrangeiros

Por fim, em razão da fragmentação do cenário criminoso após a quebra do monopólio das FARC e da incapacidade de atores criminosos exercerem controle suficiente sobre a cadeia de abastecimento de cocaína, o quadro atual pinta uma conjuntura na qual existe uma atomização dos atores criminosos e um vazio no controle territorial que impuseram restrições à capacidade dos compradores estrangeiros de negociar o fornecimento de cocaína na Colômbia.

Tal cenário impulsionou organizações criminosas estrangeiras, incluindo grupos criminosos do México e dos Balcãs, a viajar para a Colômbia para conduzir negociações nas áreas de cultivo com corretores e proprietários de laboratórios de cristalização.

Nesse contexto, além disso, os grupos criminosos mexicanos cada vez mais penetram no mercado da Colômbia e atuam em parceria com os grupos locais. Tal como apontado em fontes da comunicação social, os representantes dos grupos mexicanos, como o Cartel de Jalisco Nova Geração e o Cartel de Sinaloa, colaboram com os dissidentes das FARC para exportar carregamentos de cocaína de áreas da Colômbia próximas do Pacífico. Na região de Catatumbo, no norte da Colômbia, onde os grupos armados ilegais ELN e EPL disputam o controle territorial, os emissários mexicanos só chegam para fechar os contratos de exportação de grandes quantidades de cocaína.

Leia também: As estreitas relações entre o maior cartel de drogas e a política na Colômbia

No departamento de Córdoba, na costa caribenha, representantes dos grupos criminosos mexicanos também estão presentes para garantir os embarques de cocaína. No entanto, devido ao cenário criminoso altamente fragmentado, é necessário negociar com diferentes grupos locais, o que alimenta ainda mais a violência.

Nas áreas urbanas, como Cali, os representantes das organizações criminosas do México também se envolvem na organização de remessas de cocaína devido à incapacidade dos seus homólogos colombianos de controlar a cadeia de abastecimento para os Estados Unidos.

A remoção do controle centralizado sobre grande parte da cadeia de abastecimento de cocaína e a abertura do mercado de abastecimento de cocaína na Colômbia podem agora proporcionar uma oportunidade para as pequenas organizações internacionais de tráfico terem novamente acesso ao fornecimento de grandes quantidades de cocaína.

Continua após o banner

Embora não pretendam estabelecer um vasto controle territorial na Colômbia, os traficantes internacionais pretendem, sem dúvida, reforçar a eficiência da cadeia de abastecimento, aproximando-se da fonte e criando condições para a produção rápida de cocaína a nível local. Neste contexto, os grupos criminosos não colombianos incentivam o cultivo da planta de coca e financiam todas as fases da cadeia de abastecimento, a fim de aumentar os volumes de produção de cocaína

 

Erradicação forçada e voluntária 

Parte central das políticas de combate ao mercado ilegal das drogas empregadas pelo Estado colombiano tem sido as ações de erradicação das plantações de coca. Nesse contexto, de acordo com o relatório, uma análise das ações de erradicação dos territórios de cultivo ilícito de coca mostra que a erradicação forçada resultou numa diminuição inicial do cultivo de drogas ilícitas devido à remoção direta dos pés de coca; e que a erradicação voluntária, conduzida juntamente com iniciativas de Desenvolvimento Alternativo (AD) como parte do projeto “Programa Nacional de Subtitucion de Cultivos”, causou um aumento inicial devido a efeitos de “incentivo perverso”, com alguns agricultores acreditando que precisam cultivar pés de coca para participar nos projetos, mas isso foi rapidamente compensado pelos agricultores que destruíram voluntariamente as suas colheitas.

Assim, ao longo do tempo, o cultivo de culturas ilícitas de drogas diminuiu a uma taxa mais elevada em áreas com erradicação voluntária e DA do que em áreas sem. Nestas áreas, prevê-se que o “ganho da erradicação” – a lacuna no cultivo de culturas ilícitas de drogas entre as áreas sujeitas à erradicação e as áreas deixadas intocadas – continue a aumentar durante a próxima década. Em contrapartida, as áreas com erradicação forçada, apesar da diminuição inicial das culturas, viram o cultivo aumentar a um ritmo mais elevado.

Leia também: Colômbia: uma Ucrânia nas Américas para os planos de Washington

Nesse contexto, têm-se que a erradicação forçada costuma resultar em um “replantio” de 70%, enquanto a voluntária, menos de 1%, segundo o ministro da Justiça e do Direito, Néstor Osuna Partiño.

 

Nova política de drogas

Dentro desse quadro complexo, desde as eleições, o primeiro presidente de esquerda da Colômbia propõe repensar a política de drogas no país. “É hora de aceitar que a guerra contra as drogas foi um fracasso total”, anunciou Gustavo Petro, comentando sobre o projeto de lei que seu governo articula.

Apesar de manter um plano de cooperação com os Estados Unidos há mais de 20 anos, que prevê a instalação de agências estadunidenses de combate ao tráfico de drogas no território colombiano, assim como a manutenção de sete bases militares e a presença de milhares de soldados estrangeiros, a Colômbia permanece sendo o maior produtor de cocaína do mundo e aumentando sua capacidade de produção.

Em 2020, no mesmo período que o então presidente, Iván Duque, renovava o Plano Colômbia – a cooperação com os Estados Unidos para o combate ao narcotráfico -, aumentando o orçamento para a guerra às drogas e a presença militar na região, houve um aumento recorde de 11% na produção mundial de coca.

Continua após o vídeo

Assista na TV Diálogos do Sul

Dentro dessa conjuntura, o UNODC, em 2021, aponta que a estratégia de combate ao narcotráfico, adotada nas últimas administrações colombianas, fracassaram. Hoje, como demonstrado acima, com menos coca se produz mais cocaína: para cada tonelada de folha de coca, extraem-se hoje 2,14 quilos de pasta base de cocaína, enquanto em 2016, eram extraídos 1,87 quilos.

O Informe Mundial sobre Drogas de 2022, realizado pelo escritório, também aponta que nos países onde o porte e consumo de cannabis foi legalizado houve aumento da arrecadação fiscal do Estado e redução do encarceramento por porte da substância. Dessa maneira, o escritório indicava uma parte da nova fórmula de combate à economia ilícita: a regulamentação. Horizonte almejado em certa medida pela nova política, que pretende regulamentar as indústrias que utilizam a folha da coca para mercados lícitos.

Debate antigo nas bolhas acadêmicas, vem se popularizando também o combate ao narcotráfico a partir de uma visão mais humana, ancorada na perspectiva da questão como um problema de saúde pública, desigualdade social e acesso.

É nesse contexto que surge esta nova proposta do governo Petro. O documento oficial do PL, de 80 páginas, chamado “Semeando vida, banimos o tráfico de drogas”, tem um total de oito focos, incluindo direitos humanos, saúde pública e construção da paz. 

De início, Petro não propôs a legalização da folha de coca como se era esperado, mas haverá uma mudança de rumo para resolver o problema das drogas. Como apurado pelo jornal colombiano El Espectador, nesse estágio, a nova política segue dois caminhos: por um lado, busca alternativas aos agricultores que hoje cultivam culturas ilícitas, como a coca, a papoula e a cannabis, ao mesmo tempo em que procura asfixiar os atores centrais do tráfico.

Leia também: 30 anos após morte de Pablo Escobar, “indústria” da coca segue viva na Colômbia

Em relação aos agricultores, a camada mais baixa da hierarquia do mercado ilegal, o projeto propõe uma transição para economias legais nas áreas rurais e para a gestão espacial. 

Pelo outro lado, a asfixia, em resumo, afetará os atores estratégicos e de alto valor no sistema de tráfico de drogas. Nesse sentido, o governo planeja atingir com mais frequência a infraestrutura produtiva, interromper a comercialização de insumos e precursores químicos, afetar as finanças ilegais dos traficantes de drogas, fortalecer as interdições e, como novidade, fazer uso estratégico e eficiente da erradicação. “Combater a corrupção protegendo a implementação da política de drogas”, diz o texto.

Além disso, esta estratégia contempla o cuidado ambiental dos territórios afetados pela economia das drogas ilícitas; atenção à população vulnerável nos mercados urbanos de drogas; e o consumo de substâncias psicoativas da atenção integral, da saúde pública e dos direitos humanos. Conforme estabelecido por Néstor Osuna, haverá programas de consumo controlado para usuários de drogas.

Leia também: Aliança antidrogas Colômbia-EUA promete mudança, mas documento final reafirma atraso

Dessa maneira, a nova política de drogas baseia-se no diagnóstico desfavorável das últimas estratégias enquadradas nesta guerra às drogas. Segundo o Ministério da Justiça, embora não haja números oficiais sobre os gastos nesta luta, o Observatório Colombiano de Drogas estima que, em média, os gastos anuais sejam de 3,8 bilhões de pesos. Nos últimos 20 anos, os gastos seriam de aproximadamente US$ 76 bilhões de pesos. E o objetivo principal, que era reduzir a oferta e a procura de drogas ilícitas, não foi alcançado. Em relação à demanda por substâncias psicoativas, observa-se também no país um aumento de 5,1% para 8,7% no consumo de qualquer substância ilícita.

Além disso, diferentemente das outras experiências, esta política foi construída com contribuições de espaços participativos em áreas afetadas pela presença de culturas para uso ilícito, organizações da sociedade civil e academia.

 

Objetivos 

Neste processo, o plano se desenvolve tanto de uma perspectiva de atualização e fortalecimento dos mecanismos de fiscalização do mercado que permite a produção dos narcóticos, como os âmbitos da comercialização de máquinas e insumos, como o melhoramento das táticas militares e de cooperação internacional. Além disso, aspecto importante do planejamento é o objetivo contra a corrupção estatal que permite abertura para uma maior legitimação das instituições públicas, problema histórico na Colômbia.

Continua após o banner

O primeiro objetivo da política, como mencionado, é afetar a infraestrutura destinada à produção de drogas ilícitas de origem natural ou sintética, buscando desmontar os laboratórios que processam as substâncias ilícitas como também criar e fortalecer os sistemas de registro, fiscalização e controle das empresas metalúrgicas que fornecem os equipamentos necessários para a produção dos narcóticos.

Leia também: Luta por sobrevivência e esperança de paz: a vida em Tibú, Colômbia, 'capital global' da coca

Em complementaridade, o segundo objetivo é propor um melhor controle de insumos e precursores químicos utilizados no processo de fabricação de medicamentos. Nesse sentido, a proposta se desenrola numa fiscalização do mercado de produtos como cimento, ácido sulfúrico, ácido clorídrico, permanganato de potássio, substâncias cortantes e anidrido acético, essenciais para a produção de cocaína e heroína. 

Assim sendo, os dois primeiros aspectos da abordagem de Petro buscam atacar o mercado em si, dificultando a oferta dos insumos necessários para a produção da droga. Trabalhando na fronteira dos processos legais que permitem a continuidade do mercado ilícito. 

Em terceiro lugar, fala-se sobre um reforço da interdição marítima, fluvial, aérea e terrestre, não só no interior do país, mas também nas fronteiras. Este ponto pretende aumentar a capacidade de apreensão de substâncias psicoativas ilícitas, mas também afetar os nós onde as drogas ilícitas atingem maior valor. 

No mesmo sentido, busca-se treinar as forças públicas para melhorar as operações de apreensão, reforçar as capacidades de inteligência, aumentar o patrulhamento e a vigilância em áreas críticas e reforçar a cooperação internacional “com os países da região e do mundo”. Além de “estabelecer acordos para a troca de informações em tempo real e coordenação de operações conjuntas em todas as fronteiras, incluindo zonas terrestres, fluviais, marítimas e aéreas compartilhadas.” Dessa maneira, tal ponto vai de encontro ao sétimo, que fala sobre o desenvolvimento de forças-tarefa internacionais contra o crime organizado.

O quarto aspecto toca em um ponto chave para o plano do governo: a perseguição às finanças ilegais e o combate à lavagem de dinheiro. Esta prioridade, diz a política, será alimentada pelo fortalecimento do setor de segurança, o que significa que é necessária uma melhor inteligência estratégica por parte da força pública para identificar estes comportamentos ilícitos. 

O quinto ponto da estratégia é estabelecer uma utilização estratégica e eficiente da erradicação de culturas ilícitas. Dessa maneira, espera-se que o processo de erradicação voluntária cresça. 

O sexto objetivo traçado pelo Ministério da Justiça fala em concentrar os esforços judiciais nos nós estratégicos do microtráfico. “A Força Pública e as autoridades encarregadas da investigação criminal devem concentrar os seus esforços na detenção de pessoas contra as quais seja emitida uma ordem judicial, relacionada com o estabelecimento e desenvolvimento de mercados locais de drogas”.

O oitavo aspecto fala em estabelecer diálogos de paz e processos de submissão como mecanismos para desescalar a violência e desmantelar organizações criminosas ligadas ao mercado ilegal de drogas. Esta é uma questão diretamente relacionada com a política de paz total que o governo Petro desenvolveu. O nono, centra-se no desenvolvimento de estratégias destinadas a afetar a interseccionalidade do tráfico ilícito de drogas com outras economias ilícitas e lícitas.

Leia também: Combate heroico, violência sexual: Colômbia revisita história das mulheres guerrilheiras

Por fim, o décimo objetivo fala do combate à corrupção associada à implementação da política de drogas. Neste ponto, o documento destaca que a corrupção é uma questão que enfraquece os esforços para resolver eficazmente os problemas associados ao mercado da droga e mina a confiança nas instituições. Por isso, propõe a implementação de medidas rigorosas de controle, transparência e responsabilização em todas as fases da implementação das políticas – promovendo a participação dos cidadãos como mecanismo de controle – e aplicando uma sanção eficaz contra qualquer ato de corrupção.


Lacunas

Tendo em vista tais pontos, é possível perceber um avanço de uma perspectiva mais humanitária e centrada em outros aspectos que não a repressão como foi a base de mais 20 anos de estratégia puramente militar. Contudo, existem lacunas importantes dentro da nova política de drogas de Petro que escancaram a necessidade de revisões.

Continua após o vídeo

Assista na TV Diálogos do Sul

De acordo com o Centro de Estudos sobre segurança e Drogas da Universidad De Los Andes (CESED), as medidas orientadas para o consumo se enfocam em substâncias com baixos níveis de consumo na Colômbia, como a heroína, além de outras sem registros de uso, como o fentanil não farmacêutico. Esse enfoque não permite que a política centre seus esforços no tratamento de usuários de drogas mais presentes no contexto colombiano. Assim, atenta o núcleo de pesquisas, “incluir substâncias como prioritárias na política que não são no cenário colombiano pode impedir a construção de uma agenda de política pública que esteja realmente orientada a resolver os problemas em matéria de drogas e saúde pública no país”.

Outro ponto relevante, mas ausente, são as políticas específicas em relação às sociedades tradicionais que mantêm uma cultura de cultivo de coca. As estratégias para proteger as comunidades não são claras. Apesar de incluir um eixo sobre cuidado ambiental, a política limita este enfoque a Parques Naturais Nacionais e não inclui um enfoque étnico para tais intervenções, ainda que, de acordo com o último informe do UNODC, 29% dos hectares de coca se encontrem dentro comunidades étnicas.

A nível internacional, como outros países que interagem com a teia do tráfico na Colômbia vão lidar com o mercado de narcóticos também é peça chave na questão. Ainda que a política preveja um eixo de cooperação internacional, qual vai ser o direcionamento das políticas locais de outros territórios irá impactar na continuação do tráfico na nação. Dessa maneira, seria necessário um planejamento conjunto de mudança na política de diversos países do continente americano que se entrelaçam na rede do narcotráfico.

Leia também: Início do diálogo entre Governo da Colômbia e Farc é vitória histórica do povo em luta pela paz

Além disso, considerando o papel desempenhado pelos Estados Unidos no desenvolvimento do mercado de produção de drogas em diversos países da América Latina, se faz central a atenção ao modo como a nação norte-americana está se posicionando, não só no tópico das drogas mas em questão a política externa e o intervencionismo. Todavia, como mencionou Osuna, os Estados Unidos também passam por uma reformulação de sua política. Nesse sentido, buscam agora uma “política holística, que considere as causas pelas quais se produz, comercializa e consome a droga”.

Por fim, a proposta mantém o objetivo de eliminar a produção de cocaína. No entanto, o balanço do período no qual o combate às drogas teve posição central internacionalmente resulta no entendimento de que, mantendo o sistema do modo como é, resolver a questão com base num objetivo de eliminação do problema se faz no mínimo utópico. Assim, manter um foco centrado nessa questão, mesmo que por outros meios, ainda preserva uma estratégia errada.

A produção e consumo de narcóticos continuarão existindo, pois vivemos num sistema político e econômico que dá não só possibilidades, mas a necessidade de sua continuidade. Do ponto de vista da produção, a posição periférica dos países do Sul Global no sistema capitalista não permite um pleno desenvolvimento nacional. O narcotráfico aparece, então, como alternativa de sobrevivência, desenvolvimento e poder. Em relação ao uso, ainda que experiências tenham motivações diferentes, diversos historiadores atestam sobre a utilização de drogas enquanto válvula de escape para os horrores do mundo capitalista, como deixa claro o pesquisador Eric Hobsbawm na obra A Era dos Extremos quando fala sobre a utilização de drogas pela classe trabalhadora no início do século passado.

Dessa forma, a questão das drogas, no cenário atual, não pode ser pensada da perspectiva de eliminação, ainda mais quando o debate é em relação à política de apenas um país. Deve, por outro lado, ser calcada na mitigação dos problemas sociais e da regulamentação. Ainda, considerar a questão através desse prisma da eliminação abre margem a possibilidade do monopólio do mercado ilícito continuar nas mãos das organizações criminosas, limitando significativamente o êxito da proposta de paz total planejada por Petro.


Notas

[1] Países como Peru e Bolívia, que possuíam altos índices de cultivo de coca, intensificaram seus esforços militares na eliminação dos plantios causando não a erradicação do fenômeno, mas o seu deslocamento geográfico, culminando na transferência do narcotráfico para o território colombiano.


Isabelle Paiva | Graduanda em Ciências Sociais e estagiária da Diálogos do Sul.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Assista na TV Diálogos do Sul



As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Isabelle Paiva Graduanda em Ciências Sociais e colaboradora da Diálogos do Sul.

LEIA tAMBÉM

Luta entre tropas israelenses e civis palestinos desarmados não é guerra, é massacre
Luta entre tropas israelenses e civis palestinos desarmados não é guerra, é massacre
4ª Estado de exceção de Noboa - ministra e polícia do Equador divergem sobre criminalidade
4ª Estado de exceção no Equador é medida extrema e inexplicável de Noboa, dizem especialistas
SAMSUNG DIGIMAX A403
Justiça do Chile condena 5 ex-agentes de Pinochet por assassinato de militantes em 1989
O Genocídio Será Televisionado”
“O Genocídio Será Televisionado”: novo e-book da Diálogos do Sul Global denuncia crimes de Israel