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ToggleAs mentiras, meu filho, descobrem-se logo,
porque são de duas classes: as mentiras
que têm as pernas curtas
e as mentiras que têm o nariz longo…
Carlo Collodi, Pinóquio
O que acontece hoje na Venezuela reclama a atualização da teoria sobre o imperialismo. O livro de Lenin foi desbordado pela história. O fato é que, desde meados do século 20, a base econômica do imperialismo mudou e como consequência surgiu uma superestrutura que a reflete e a reforça. Este é um tema que abordei em ocasiões anteriores[i] e que agora tomo apenas como ponto de partida.
Estamos ante um imperialismo de novo tipo, que inclui o anterior, mas o supera em complexidade. Este neoimperialismo se caracterizas, em grandes traços, pelo seguinte:
1. O capital global e a globalização capitalista. O vertiginoso desenvolvimento dos meios de comunicação, desde o início do século XX, potencializou o papel do capital comercial que, pouco a pouco, foi se articulando com o capital financeiro (fusão do bancário com o industrial) até criar o capital global com sua respectiva oligarquia. Esta união das três formas de capital em um só feixe é a base da globalização capitalista.
2. Os monopólios da informação e da hegemonia. A possibilidade real de manipular não apenas a oferta, mas sim a demanda, determina o protagonismo, entre os monopólios tradicionais, dos monopólios da informação. Estes informam notícias que deformam a realidade, com o objetivo de formar uma opinião pública incapaz de reformá-la e muito menos de transformá-la. A missão política dos monopólios da informação é fabricar o consenso a favor do capital, ou seja, converter sua ditadura em hegemonia.
3. A exportação de ideias e o empirismo comunicativo. À exportação de mercadorias e capitais somou-se a exportação de ideias. Para isso se traça uma política midiática que reforça mensagens que insistem nos sentidos e na comunicação, em detrimento da razão e da prática. Este empirismo comunicativo, capaz de converter as pessoas em receptores passivos de informação, constitui o complemento ideal da exportação de modelos ideológicos.
4. A repartição cultural do mundo e as guerras em 3D. A repartição do mundo não é só econômica e territorial, mas, sobretudo, cultural. Seu axioma é elementar: quem controla as mentes domina os territórios e os mercados. Como consequência, as guerras são feitas em três dimensões, ou seja, se dirigem ao controle de zonas estratégicas, à exploração de recursos naturais e a derrubar obstáculos ideológicos que freiem o anterior. Todas as guerras imperialistas da história apelaram para um pretexto; o novo neste caso é a possibilidade real que têm os monopólios da informação de enganar a opinião pública.
Dito de uma só vez, o neoimperialismo é a época do capital global, na qual os monopólios da informação exportam sua ideologia e repartem entre si o mundo culturalmente, mediante o empirismo comunicativo e as guerras em 3D, com o fim de garantir a hegemonia e a globalização do capital em escala planetária. Só preciso ter claro uma coisa: o neoimperialismo, não por novo, deixa de ser imperialismo. É só um nível de maior complexidade, o que exige um enfoque integral.
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Enquanto os governos norte-americanos de turno se concentravam no Oriente Médio, a esquerda foi ganhando terreno na América Latina
A guerra da Venezuela é a típica guerra em 3D
O que acontece hoje na República Bolivariana da Venezuela é um exemplo típico de guerra em 3D. Mas, ponhamos o texto em seu contexto para evitar pretextos.
A cruzada contra o terrorismo iniciada pela administração Bush em 2001 teve como justificativa os atentados contra as Torres Gêmeas e o Pentágono, que foram o pretexto para a caça da Al Qaeda. Depois vieram as guerras contra o Afeganistão, o Iraque, a Líbia e a Síria, assim como a escalada contra o Irã, cada uma segundo um pretexto particular: ocultar Bin Laden, possui armas de destruição em massa, produzir armas nucleares, etecetera. Esta cruzada foi uma guerra neoimperialista porque não apenas pretendia controlar uma zona estratégica e seus recursos petrolíferos, como se disse uma e outra vez, para sobretudo derrubar a Grande Muralha do Islão, que freia a penetração cultural do Ocidente no mundo muçulmano. Isto foi particularmente evidente no caso do Iraque, onde não por casualidade foram destruídas e saqueadas bibliotecas, museus e sítios arqueológicos: havia que destruir um símbolo, desmontar o berço da civilização ocidental, terminar em Bagdá a história que começou na Suméria. A guerra em 3D persegue, a curto prazo, um lugar; a médio prazo, um recurso; a longo prazo, uma ideia. Esse é o esquema.
Enquanto os governos norte-americanos de turno se concentravam no Oriente Médio, a esquerda foi ganhando terreno na América Latina. Assim que a bota norte-americana foi levantada um pouco, os povos latino-americanos, como se fosse sua tendência natural, giraram para a esquerda. Foi então que surgiram e começaram a se consolidar processos populares como o de Chávez na Venezuela, o de Correa no Equador, o de Evo na Bolívia, o de Mujica no Uruguai, o de Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, o de Lula e Dilma no Brasil e o de Daniel Ortega na Nicarágua. Houve tentativas de subversão contra Chávez e Correa, mais um golpe de Estado a Zelaya em Honduras, é verdade; não obstante, a tendência história estava a seu favor.
Mas no final do governo de Obama, e sobretudo desde que apareceu a administração Trump, o centro de interesse norte-americano tem se deslocado do Oriente Médio para a América Latina. Como consequência, o panorama foi mudando. Em quase todos estes países produziu-se uma virada para a direita ou foram criadas crises que puseram em xeque os governos de esquerda. Tivemos de tudo: traições no mais alto nível, como a do equatoriano Lenín Moreno e a do uruguaio Luis Almagro na OEA; mortes dolorosas, como a de Chávez e a de Fidel; golpes de Estado legais, como o aplicado a Dilma, e encarceramentos, como o de Lula no Brasil; votações populares a favor da ultradireita, como no Brasil e na Argentina; perseguições contra ex-presidentes, como acontece com Cristina e Correa; manifestações agressivas, como as da Nicarágua; e foram ensaiadas todas as técnicas de subversão contra a revolução bolivariana liderada pelo presidente constitucional Nicolás Maduro.
As quatro crises escalonadas
A atual arremetida contra a Venezuela tem todas as coordenadas de uma guerra em 3D. Para o neoimperialismo norte-americano esta guerra é necessária porque a Venezuela possui enormes reservas de petróleo certificadas, funciona como pivô entre a América do Sul e o Caribe e sobretudo, liderou a esquerda latino-americana nas últimas décadas. Outra forma é fazê-la possível a partir da criação de quatro crises escalonadas:
1. Confiscam-se as propriedades de PDVSA nos EE. UU. e se bloqueiam as contas bancárias do Estado em terceiros países, com o objetivo de desatar uma crise econômica.
2. Uma vez que esta situação impacta o povo venezuelano, produz-se uma crise social que o próprio governo bolivariano deve enfrentar.
3. Dita crise é magnificada pelos meios de comunicação e se ativa a matriz de opinião de que existe uma “crise humanitária” na Venezuela.
4. Apela-se a organismos internacionais como a OEA e a ONU para justificar uma invasão e criar uma crise militar que permita derrocar Maduro.
Mas, além disso, aqui estão todos os ingredientes do neoimperialismo. O capital global é um iceberg do qual se vê apenas a cara do multimilionário inglês Richard Branson, organizador do concerto de música na fronteira da Colômbia com a Venezuela. Através dele, os grandes monopólios da informação tratam de fabricar um consenso contra a Revolução bolivariana, apelando a um show que envolve cantores de idioma espanhol que arrastam multidões. A necessidade militar se disfarça de prazer musical. É o que um jornalista cubano chamou certeiramente de “complexo militar-musical”.
No entanto, toda a montagem, toda a hegemonia construída, é derrubada em trinta segundo, quando a espanhola Arantxa Tirado publica nas redes a imagens de uma filial do McDonald's, em Caracas, onde as pessoas lanchavam em paz. Então, o neoimperialismo tira a máscara e aparece o verdadeiro rosto da ditadura, perseguindo com fúria a espanhola que ousou desafiar seu poder global.
A guerra no ciberespaço
Há certos corolários em tudo isto que deveríamos aprender de memória:
1. A primeira linha de combate hoje é o ciberespaço. Lembrem-se do que Lula confessou a Frei Betto, sobre o fato de que não souberam manejar a web tão bem como a direita brasileira. Só uma esquerda destra em internet pode ser um contrapeso à sinistra direita.
2. O neoimperialismo, em gesto biônico, imita a natureza, que converte a necessidade de preservar a espécie no prazer do sexo. Essa é a base de sua hegemonia.
3. Não basta dizer a verdade, há que saber dizê-la com ciência e com arte, fazê-la profunda e ampla, mas também desfrutável.[ii]
4. Se a escola de hoje não enfatizar a obtenção de conhecimento a partir da prática e da razão, estaremos contribuindo para criar receptores passivos de informação, vítimas da estratégia midiática, que explora os sentidos e a comunicação.
5. Um povo incapaz de racionalizar sua prática é vulnerável à manipulação dos meios.
6. A principal zona de combate não é a trincheira nem o congresso, é a família. É nela onde se ganham ou se perdem os debates decisivos.
7. As fake news são true lies. A propaganda neoimperialista é uma mentira construída na base de notícias falsas, mas funciona.
8. A esquerda necessita um mecanismo de contrapropaganda ágil, inteligente, capaz de desmontar falsidades. A verdade há de ser, não só mais viril, mas também mais viral que a mentira.
9. Os meios temem a razão e a prática porque sabem, por experiência histórica, que a revolução é a arma mais poderosa da verdade e que a verdade continua sendo a alma indiscutível de toda revolução.
Notas:
[i] Ver: “El neoimperialismo. Del libro de Lenin a la espiral de Tatlin” (tres partes), em La Jiribilla, nº. 849
[ii] A propósito existe um texto exemplar de Bertolt Brecht intitulado “Cinco dificuldades para dizer a verdade”.