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ToggleBuscarita Roa passou mais da metade de seus 80 anos de vida lutando. Com paciência, persistência e perseverança. Natural do Chile, é a única avó da praça de Maio que não nasceu na Argentina. O fato dá pistas, mas não explica por inteiro o drama da mulher que preside Associación Civil Abuelas de Plaza de Mayo, em Buenos Aires, instituição que completou 42 anos na terça-feira (22).
As avós da Praça de Maio buscam, desde 1977, pelos netos roubados durante a ditadura militar da Argentina, que durou entre 1966 e 1973. A maioria desapareceu logo após as mães darem à luz em centros de detenção e tortura. As Abuelas acreditam que mais de 500 crianças foram sequestradas no período, das quais 130 já foram encontradas pela paciência, persistência e força das avós.
A equipe da agência Saiba Mais / ComunicaSul que está em Buenos Aires para cobrir as eleições da Argentina conversou com Buscarita Roa na sede das Abuelas da Plaza de Mayo, centro da capital.
— Somos uma instituição que se formou há 42 anos em busca dos netos que nos roubaram durante a ditadura. Primeiro se encontraram as mães para buscar os filhos que nunca apareceram, mas como levaram os filhos também levaram umas criaturinhas pequeninas, alguns nasceram em cativeiro, nos lugares onde os militares levavam as pessoas. Nossa conta é de mais ou menos 500 crianças entre bebês e outros mais grandinhos. Já foram encontrados 130, mas ainda faltam mais de 300”, diz Buscarita.
Desde 1987, o governo Argentino criou um Banco de Dados Genéticos que ajuda na identificação dos filhos e netos desaparecidos durante a ditadura militar. O banco coleta o sangue de familiares próximos de vítimas da ditadura, como avós, tios e primos afim de auxiliar nas buscas.
A maioria das crianças foi encontrada na Argentina, mas também houve o reconhecimento de netos no Uruguai, Paraguai, Chile, Espanha, Estados Unidos.
Foto: Elineudo Meira/Chokito/ComunicaSul
A chilena Buscarita Roa preside a Associación Civil Abuelas de Plaza de Mayo, em Buenos Aires
Buscarita e Cláudia
A história de Buscarita é tão especial como dolorosa. O filho dela, José Roa, foi assassinado pelos militares. O jovem havia perdido as pernas num acidente de carro e viajou de Santiago para Buenos Aires para fazer um tratamento ortopédico. O regime também sequestrou a nora de Buscarita e a pequena Cláudia, neta da chilena com apenas oito meses de vida.
A partir deste episódio traumático, Buscarita muda em 1979 de Santiago para Buenos Aires e concentra todos os esforços possíveis para reencontrar a neta. Foram 21 anos de espera pelo primeiro encontro e mais seis até o primeiro abraço. Como acontece com a maioria as crianças encontradas já adultas pelas avós, reconhecer que a família foi forjada num sequestro é uma informação de difícil digestão para as vítimas.
— “Encontramos Cláudia quando ela tinha 21 anos. Não foi fácil. Foram cinco anos para conversar com ela e mais um até o primeiro abraço. Ela não queria saber de nada a princípio, não tinha carinho, foi difícil. O primeiro abraço não tem como explicar. É uma emoção muito grande. Hoje estamos bem, ela tem dois filhos, um de 12 e outro de 7”, conta
Cláudia foi sequestrada pelo coronel do Exército argentino Ceferino Landa cuja mulher não podia ter filhos. O militar decidiu então roubar a criança e presentear a esposa. O casal registrou no cartório a menina como se fosse filha deles e batizou a pequena de Mercedes.
Com o passar dos anos, e com o movimento das Abuelas ganhando cada vez mais força, o porteiro do prédio onde Cláudia morava com os pais sequestradores avisou a uma pessoa ligada às Abuelas de la Plaza de Mayo que, no prédio onde trabalhava, morava um casal suspeito que do dia para noite apareceu com uma criança.
Buscarita é grata ao porteiro do prédio. O coronel foi preso e condenado a seis anos de cadeia pelo sequestro de Cláudia. A pena, no entanto, não representou muita coisa para a avó que, embora tenha recuperado a neta, segue lutando em favor das mais de 300 crianças que ainda estão desaparecidas.
— “Não é possível perdoar uma coisa dessa. Levaram minha neta e mataram meu filho. Foram condenados a seis anos de cárcere, mas para nós não foi nada, até porque não cumpriram a pena toda. Como ele tinha mais de 70 anos, pediram prisão domiciliar. Eles criaram minha neta com uma mentira dizendo que era filha deles. É algo que realmente não tem o perdão de Deus”, desabafa.
Marcas da Ditadura
As marcas da ditadura argentina ainda estão vivas na memória e na vida do povo argentino. Os números divulgados por ativistas e pelas famílias das vítimas apontam 30 mil pessoas entre desaparecidos e mortos pelo regime. Já o governo Argentino reconhece 8368 vítimas.
— “A ditadura foi muito tirana, deixou marcas dolorosas. É difícil pensar que apesar de todo trabalho que temos para encontrar as crianças, passaram muitos anos e ainda faltam 300 netos. Corremos o mundo, fizemos muitas cosias para encontrar os pequenos. Livros, seminários, teatro, cinema, muita coisa, percorremos Brasil, Paraguai, Uruguai, Itália, França, Noruega… mas não desistimos”, diz.
Paciência, perseverança e luta
Buscarita Roas tem a receita das Abuelas de la Plaza de Mayo para quem enfrenta luta semelhante em outros países. Paciência, perseverança e luta formam o tripé que move a ativista que não descansou quando encontrou sua neta.
— “Paciência, seguir adiante, não claudicar… se seguir à caça, o coração levanta. É preciso conversar com outras avós, falar, sempre falar”.
Brasil: Lula e Dom Paulo Evaristo Arns
Sobre o Brasil, Buscarita lembra com carinho da relação e intercâmbio das Abuelas com o ex-presidente Lula e do encontro que teve com o Dom Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo conhecido pela defesa incansável dos Direitos Humanos.
— “Com Lula era uma relação diferente, era como (Néstor) Kirchner, uma relação de pessoa para pessoa, podíamos tomar um café juntos. Com Macri ? Não. Com Piñera, no Chile? Também não.
A Argentina tentou esconder as feridas, a violência e as mortes da ditadura com uma lei de anistia batizada de Lei de Ponto Final, que beneficiou ditadores e agentes da ditadura militar. No entanto, ao contrário, que mantém essa aberração até hoje, a lei foi derrubada e parte dos assassinos, sequestradores e torturadores punidos. Ao todo, foram 46 condenações de agentes do regime por 789 acusações.
Não gostamos do Bolsonaro
Sobre como enxerga atualmente o Brasil e o atual governo de um presidente que exalta a ditadura militar, tão cara e dolorosa para Buscarita, a avó de Cláudia é sincera:
— “Aqui não gostamos dele. Bolsonaro não é uma persona grata para a América Latina”, disse.
Corremos o mundo, fomos até o Brasil. Encontraram o sacerdote humanitário. Paulo Evaristo Arns.
— “Não gostamos do Bolsonaro. Nos demos muito bem com Lula, conversas e intercambio com Lula, agora nenhum contato. Para América Latina Bolsonaro não é uma persona grata.
A relação com Lula foi diferente, era como Kirchner, era uma relação de pessoa a pessoal, podíamos tomar um café, com Pin˜era não, com Macri não. Creio que vamos falar com a gente que nos recebia, botãozinho...
Somos poucas, a que resistimos são três e antes de mim, havia muitas, mas boa parte agora já estão mortas ou doentes.
A presidenta Dilma? Não a conheci pessoalmente.
Lei de anistia que deixou uma dívida … a cá lei de anistia, mas puniram ditadores. Brasil é diferente, não houve tanto problema. Mas o problema com Dilma e Lula, mas não é todo povo.
Hermanos brasileiros, perseverar, não baixar os braços, seguir adelante todo o tempo que se pode, com força, para lutar pelos desaparecidos, para lutar pelos direitos de todos, pelos direitos dos periodistas para dizer o que pensam, comunicar o que passa. Ter paciência, hay que lutar, tratar de cuidar-se e seguir adelante”
*O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul está cobrindo as eleições na Bolívia, Argentina e Uruguai com o apoio das seguintes entidades: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; Hora do Povo; Diálogos do Sul; SaibaMais; 6 três comunicação; Jaya Dharma Audiovisual; Fundação Perseu Abramo; Fundação Mauricio Grabois; CTB; CUT; Adurn-Sindicato; Apeoesp; Contee; CNTE; Sinasefe-Natal; Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos e Região; Sindsep-SP e Sinpro MG.
**A reprodução é livre, desde que citados os apoios e o autor
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