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Panamá: carta escrita por bispo em 1999 encontra eco na atual crise socioambiental do país

Uma verdade, posta a caminhar, segue andando até que deixa de ser, e vai somando apoios pelo caminho que abre; assim fez o texto de Monsenhor Ariz
Guilherme Castro H.
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

“As feridas políticas, como as do corpo, curam-se sozinhas,
apenas evitando envenená-las ou reabri-las;
e assim como a carne cresce, e aproxima com um tecido novo as bordas abertas,
assim dos males excessivos brota, como seu fruto natural, o remédio.
As leis da política são idênticas às leis da natureza.
Assim é o Universo moral com o Universo material.
O que é lei no curso de um astro pelo espaço,
é lei no desenvolvimento de uma ideia no cérebro.
Tudo é idêntico.”
José Martí, 1885
[1]

“Panorama Católico” é uma publicação modesta, que se vende na porta das igrejas, na qual a Arquidiocese do Panamá informa de vez em quando sua posição sobre os problemas do país. Assim foi em sua edição de 12 de dezembro de 1999, quando publicou uma Carta Aberta que o bispo de Colón e Guna Yala, monsenhor Carlos María Ariza, dirigia à senhora Mireya Moscoso, dirigente do partido conservador panamenho, que naquele momento inaugurava seu período presidencial.

Em sua carta – cujo texto acompanha esta reflexão -, o bispo informava à presidenta que os evangelizadores e missionários da Costa Abajo de Colón, depois de informar-se sobre a Lei 44 de 31 de agosto de 1999 – que estabelecia a base legal para a construção de uma barragem no rio Indio para transferir água para o Canal do Panamá -, tinham decidido rejeitá-la. A Lei, diziam, impunha à população afetada “uma autoridade que se tornou dona de suas vidas e de seu futuro, deixando-as assim submersas na mais absoluta impotência e insegurança”, pois expropriava as terras dos “humildes agricultores” para entregá-las a “um novo amo”, neste caso, a Autoridade do Canal do Panamá.

Panamá: mudança social para mudança ambiental

A isto se agregava que “a construção de lagos e transposição de águas para o Canal” afetaria profundamente “os rios, quebradas e vales, além de causar mortes irreparáveis na biodiversidade de sua flora e de sua fauna.” Ante esta situação diziam que, como cristãos, não aceitavam “que em nome do Canal se permita e tolere tudo”, posto que este não é um deus ou um ídolo diante de cujo altar devem ser sacrificadas vítimas humanas e a história cultural dos povos. Embora o Canal seja um símbolo nacional e uma fonte importante de riqueza, não é argumento para o acaparamento nem para fomentar o “capitalismo selvagem”.

A Lei, acrescentava a carta, fora aprovada “às pressas, correndo, no último dia da Assembleia Legislativa anterior” sem uma discussão apropriada pelos deputados, diálogo com as pessoas afetadas, nem discussão pública nos meios de comunicação. Para agravar as coisas, “as autoridades do Canal em sua história não fizeram nesta região nem um metro de estrada asfaltada, nem um centro de saúde, e devolveram uma mata contaminada de bombas sem explodir. […] A história não nos convida a ser otimistas.”

Diante de tal situação, o bispo dizia à presidenta que, “conhecendo sua sensibilidade social e sua adoção de grandes compromissos a favor de nosso povo marginalizado”, ia a ela “plenamente confiante” de que adotaria as decisões oportunas a favor das famílias camponesas que serão duramente golpeadas pelo projeto de modernização do Canal se não forem resolvidas as proposições e inquietações destes camponeses e camponesas evangelizadores.

E concluia expressando sua esperança de que “o projeto de modernização do Canal não leve à desolação de muitos de nossos irmãos camponeses, e sim que todos os panamenhos nos vejamos enriquecidos com uma profunda satisfação e um permanente bem-estar social.”

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Uma verdade, posta a caminhar, segue andando até que deixa de ser, e vai somando apoios pelo caminho que abre; assim fez o texto de Monsenhor Ariz

Vaticano News
O bispo de Colón e Guna Yala, monsenhor Carlos María Ariza




Resistência camponesa

Na prática, a resistência camponesa à Lei 44 encontrou amplo apoio em outras zonas rurais do país em que se iniciava a luta contra o acaparamento da água por empresas hidrelétricas. O que levou o governo seguinte a derrogar a Lei em questão para proceder, sem este fator de resistência política, à ampliação do Canal, que hoje enfrenta sérios problemas de dotação de água para seu funcionamento, associados à mudança climática e agravados por 24 anos adicionais de deterioração ambiental no Corredor Interoceânico, como no resto do país.

Estes problemas, que não são de origem recente, convergem agora com os associados a uma grande exploração de mineração metálica a céu aberto nas proximidades da bacia do Canal, na região centro-ocidental do Atlântico panamenho, e a deterioração do aterro sanitário da Capital do país. A isso se somam outros de desmatamento, contaminação de rios, uso excessivo de agrotóxicos e gestão de lixo em todo o território. Tudo isso, em um país de rápido crescimento econômico, que coincide com uma concentração de renda que o situa entre os mais desiguais a nível mundial.

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O Panamá ingressará, em breve, na situação advertida em 2015 pelo papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’, ao indicar que quando se fala em “meio ambiente”, faz-se referência a “uma relação, a que existe entre a natureza e a sociedade que a habita.” Isto, acrescenta, nos obriga a entender que em nossa relação com a natureza “somos parte dela e estamos interpenetrados.”

Atendendo a isto, diz Francisco, encarar os problemas da contaminação demanda “uma análise do funcionamento da sociedade, de sua economia, de seu comportamento, de suas maneiras de entender a realidade”, pois se requerem soluções “que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais”. De fato,


Uma só crise

Não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, e sim uma só e complexa crise socioambiental. As linhas para a solução requerem uma aproximação integral para combater a pobreza, para devolver a dignidade aos excluídos e simultaneamente para cuidar da natureza.[2]

Este requisito ainda está além das possibilidades da cultura política dominante no país, cuja caixa de raciocínio é cada vez mais estreita: os problemas, de um em um; as soluções só são rentáveis em uma economia que se supõe neoliberal, mas que ainda está atada ao liberalismo oligárquico de meados do século passado, e o método adequado, só aquele que ofereça resultados imediatos, ou pelo menos que assim pareça. Pela mesma razão, assim ligada por um lado à necessidade de eludir os problemas da iniquidade no acesso aos serviços básicos para o bem-estar social, e atada por outro ao fetichismo da tecnologia que promete resultados e lucros imediatos, esta cultura não está em condições de gerar uma agenda política socioambiental.

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Nisso, o fundamental está em que o ambiente é o resultado das interações dos humanos com seu entorno natural mediante processos de trabalho socialmente organizados. Pela mesma razão, se desejamos um ambiente distinto, teremos que criar uma sociedade diferente. O caráter desta diferença, e os meios para criá-la, chegarão em seu momento a estar no coração do debate político nacional.

Este momento ainda não chegou, mas chegará pelo caminho que abriram há um quarto de século o bispo de Colón e Guna Yala e os missionários e evangelizadores da Costa Debajo de Colón. A carta que abriu este caminho continua sem resposta, mas chegará a recebê-la no dia em que a sociedade panamenha dê a si mesma um Estado nacional que faça do exercício da soberania nacional a expressão da soberania popular.

Uma verdade, posta a caminhar, segue andando até que deixa de ser, e vai somando apoios pelo caminho que abre. Assim fez a carta de Monsenhor Ariz: encaminhar as coisas de uma maneira que continuará sendo nova até chegar a seu destino.

Confira a carta escrita por Monsenhor Ariz em 1999:

Panorama Católico

Panamá, 12 de dezembro de 1999, p. 3


Carta aberta à Exma. Senhora Mireya Moscoso
Presidenta da República.
Do Bispo de Colón e Kuna Yala

 

Prezada senhora Presidenta,

Me é sumamente grato enviar-lhe uma cordial saudação em nome de todos os missionários e evangelizadores, com nossas humildes orações pelo êxito de sua gestão presidencial a favor de todos os panamenhos.

Durante os dias 11 a 14 de novembro próximo passado realizou-se a reunião de formação para evangelizadores das comunidades da Costa Abajo, na comunidade de Bocas de Toabré, e ali compartilharam-se algumas informações sobre o projeto de modernização e extensão da bacia do Canal.

Anteriormente, a Equipe Missionária da Costa Abajo, Dioceses de Colón – Kuna Yala, teve um encontro com o Bispo para tratar da origem desta lei e de suas consequências para os camponeses da costa atlântica.

Ambos grupos, evangelizadores e missionários, concordaram em rejeitar a lei 44 de 31 de agosto de 1999 pelas seguintes razões:

1)    Razões humanitárias: não há um só item da lei onde se leve em conta o mais mínimo dos direitos humanos. São milhares de pessoas, homens, mulheres e crianças, a quem de um dia para o outro se impôs uma autoridade que se fez dona de suas vidas e de seu futuro, deixando-as assim submersas na mais absoluta impotência e insegurança.

2)    Razões de justiça: A lei expropria e aliena a terra que trabalharam durante gerações. Não é de justiça social que, de improviso, sem que se lhes restitua ou reconheça absolutamente nada, sem respeitar os direitos possessórios e o princípio da “terra para quem nela trabalha”, tire-se o terreno dos humildes agricultores e o entreguem a um novo amo.

3)    Razões ecológicas: Embora a lei em si mesma não o diga, foram argumentos para sua aprovação a construção de lagos e transposições de águas para o Canal. Esta transformação projetada vai afetar profundamente os rios, quebradas e vales, além de causar mortes irreparáveis na biodiversidade de sua flora e de sua fauna. Não conhecemos um estudo científico que nos leve a pensar que não vai ser este o impacto ambiental.

4)    Razões morais: Como cristãos, não aceitamos que em nome do Canal se permita e tolere tudo, inclusive a vida, tradições e costumes de muitas comunidades do Atlântico colonense, oeste do Panamá e coclesano. O Canal não é um deus ou um ídolo ante cujo altar devem ser imoladas vítimas humanas e a história cultural dos povos. Embora o Canal seja um símbolo nacional e uma fonte importante de riqueza, não é argumento para o acaparamento, nem para fomentar o “capitalismo selvagem”.

5)    Razões éticas: enquanto se faz um discurso político e social afirmando que as terras dol Canal devem estar a serviço dos pobres e que é preciso atender os pequenos agricultores, aprova-se uma lei por meio da qual se arrebata a terra dos camponeses marginalizados, para dá-las ao Canal.

6)    Razões de método: a metodologia utilizada para esta lei da república nos parece, no mínimo, precipitada. Apenas se discutiu na Assembleia, não houve diálogo com as pessoas afetadas, não foi a discussão pública nos distintos meios de comunicação e foi aprovada, às pressas, correndo, no último dia da Assembleia Legislativa anterior. Temos sérias dúvidas de que para sua aprovação tenha havido estudos imparciais, especialmente antropológicos e sociais.

7)    Razões de acaparamento: não compartilhamos a noção de que o Canal necessita de mais de dois mil quilômetros quadrados de terra para sua manutenção futura. Não existirão outras opções que impliquem em menos sacrifícios de vidas humanas e menor atentado à natureza, ainda que deixem menos dividendos? Nossas suspeitas sobre os lagos que estão sendo projetados: não são tanto as águas do Canal quanto os negócios hidrelétricos e outros que se estão gestando. Não será o ingresso mais explícito da Autoridade do Canal na produção de energia elétrica?

8)    Razões históricas: A lei acapara na província de Colón mais de dois mil quilômetros quadrados de terra, quase a metade dos que é a Costa Abajo. No entanto, as autoridades do Canal em sua história não fizeram nem um metro de estrada asfaltada nesta região, nem um centro de saúde, e devolveram uma mata contaminada de bombas sem explodir. Agora projeta-se uma ponte sobre o Canal, mas não pela Costa Abajo, e as estradas de acesso aos projetos são por Panamá e Coclé. A história passada não nos deixa ser otimistas.

9)    Como Equipe de Missionários e Evangelizadores: Embora nos oponhamos à lei, sim, queremos a vida e o desenvolvimento integral da Costa Abajo. Abrigamos a esperança de um futuro novo para tantos milhares de camponeses, sem a lei 44. A eles, dedicamos nossas vidas e com eles estamos dispostos a cooperar. Deus primeiro!

Prezada Sra. Presidenta, conhecendo sua sensibilidade social e sua adoção de grandes compromissos a favor de nosso povo marginalizado, me é grato acudir a sua Excelência, plenamente confiante de que adotará as decisões oportunas a favor das famílias camponesas que serão duramente golpeadas pelo projeto de modernização do Canal se não forem resolvidas as proposições e inquietações destes camponeses e camponesas evangelizadores.

Oxalá o projeto de modernização do Canal não leve a desolação a muitos de nossos irmãos camponeses, e sim que todos os panamenhos nos vejamos enriquecidos com uma profunda satisfação e um permanente bem-estar social.

Considero propícia a ocasião para reiterar à Sra. Presidenta nosso testemunho de consideração e apreço.


Atenciosamente,

Carlos María Ariz, cmf
Bispo de Colón – Kuna Yala


Referências

[1] “Cartas de Martí”. La Nación, Buenos Aires, 9 de maio de 1885. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. X, 197.

[2] Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o cuidado da Casa Comum (2015-139). Cursiva: gc.

http://w2.vatican.va/content/francesco/es/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html


Guillermo Castro H. | Colunista na Diálogos do Sul direto de Alto Boquete, Panamá.
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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