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Pobres, jovens e indígenas: eis o perfil das penalizadas por aborto América Latina

Diversos estudos realizados em países da região mostram que a judicialização das mulheres aumentou nos países que deixaram de penalizar o aborto só em alguns casos.
Marisa Kohan
Havana

Tradução:

A criminalização do aborto na América Latina alimenta-se das mulheres de escassos recursos econômicos, com menos de 24 anos, que vivem em áreas rurais ou afastadas dos centros urbanos e que provêm de etnias indígenas ou são afrodescendentes. É o que mostram diversas pesquisas realizadas recentemente em distintos países da região.

Inclusive naqueles países em que foram realizados importantes avanços no direito ao aborto, deixando de penalizá-lo em alguns casos, a criminalização das mulheres não apenas não diminuiu, como, pelo contrário, aumentou.

Um dos casos que mais chama a atenção é o da Colômbia, cuja Corte Constitucional despenalizou o aborto em três amplos casos, em 2006 (por risco de vida ou saúde da mulher, por violência sexual ou por incompatibilidade do feto com a vida extrauterina) e que tem ainda uma das legislações mais avançadas da região. Segundo um recente estudo intitulado

A criminalização do aborto na Colômbia, realizado pelo coletivo colombiano A Mesa pela Vida e a Saúde das Mulheres e a Universidade dos Andes, desde a sentença da Corte Constitucional há 15 anos, dispararam os casos de perseguição penal por aborto no país. Denunciam que desde 2005 a perseguição judicial quadruplicou, passando de 130 casos para os mais de 400 que ocorrem anualmente no país.

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“A despenalização do aborto em determinados casos é uma solução insuficiente. Ampliou as possibilidades para abortar, mas sobretudo para as mulheres de classe média e alta, as privilegiadas, tendo um efeito criminalizante entre os grupos mais vulneráveis”, afirma a Público Lucía Hernández, advogada da organização Women’s Link Worldwide, com sede em Bogotá. 

Por estas razões na semana passada as organizações feministas e defensoras dos direitos sexuais e reprodutivos festejaram a resolução da Suprema Corte de Justiça do México, que declarou inconstitucional criminalizar as mulheres por abortar. 

Denunciam que a inclusão do aborto como um delito nos códigos penais e as leis que restringem a interrupção da gravidez não penalizam o aborto, e sim as mulheres mais vulneráveis.

Há alguns dias um amplo grupo de mais de 90 organizações da sociedade civil e mais de 100 personalidades agrupadas no movimento Causa Justa, entraram com uma petição conjunta, solicitando à Corte Constitucional da Colômbia que elimine o delito de aborto do Código Penal por vulnerabilizar os direitos fundamentais das mulheres e do pessoal de saúde. Esta demanda poderia abrir o processo para uma legislação de prazos.

Diversos estudos realizados em países da região mostram que a judicialização das mulheres aumentou nos países que deixaram de penalizar o aborto só em alguns casos.

Matias Chiofalo
Mobilizações pelo aborto na Argentina em dezembro de 2020 (foto de arquivo).

Um padrão na região

A Colômbia não é o único exemplo de vulnerabilização dos direitos das mulheres mais desprotegidas. Recentemente outras duas pesquisas, uma realizada pela organização GIRE no México e outra por Human Rights Watch no Equador, chegaram a conclusões semelhantes.

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A pesquisa no Equador, realizada com 148 casos nos quais mulheres ou meninas, profissionais da saúde ou acompanhantes foram acusados de praticar abortos entre 2009 e 2019, mostrou que 81% desse total eram casos iniciados contra mulheres e meninas, e um número desproporcional destes ocorreu em províncias com alta porcentagem de população indígena ou afrodescendente.

A maioria eram pessoas jovens, de menos de 24 anos e 12% das processadas por abortar eram meninas com menos de 15 anos. Quase todas viviam em condições de pobreza.

No Equador, o aborto consentido constitui um delito penalizado com até dois anos de prisão e com entre um e três anos para os profissionais da saúde que praticam um aborto.

A interrupção da gravidez só está legalizada quando a vida e a saúde da mulher grávida estão em perigo, e em todos os casos de violência sexual. No entanto, nem sequer nestas circunstâncias as mulheres estão livres de perseguição. 

“Esta tremenda criminalização faz com que não só mulheres ou meninas que pratiquem o aborto acabem sendo processadas, como também mulheres que chegam com abortos incompletos, com emergências obstétricas ou com perdas terminam sendo castigadas pela justiça”, explica Ximena Casas, pesquisadora sobre Mulher na divisão da América Latina, de Human Rights Watch (HRW).

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O informe narra o caso de uma mulher jovem que quando estava trabalhando caiu da escada e teve uma hemorragia. Foi de emergência ao centro de saúde, onde certificaram que estava grávida de pouco mais de um mês, condição que a mulher desconhecia.

Os médicos a denunciaram à Procuradoria e à Polícia, porque pensavam que estava provocando um aborto. A mulher acabou processada e esteve 3 meses na cadeia com seu filho de três anos. “Não importa em que país estejamos, casos similares ocorrem em todos os países onde o aborto está no código penal”.

O informe de GIRE mostra que no México existe uma grande brecha entre os direitos estabelecidos no papel e os serviços a que, de fato, as pessoas têm acesso. O estudo conclui que o acesso ao aborto por determinadas causas no México (determinadas causas pelas quais se despenaliza o aborto) é “precário ou nulo”.

“Existe um grande desconhecimento por parte das autoridades e, em particular, do pessoal de saúde acerca de suas obrigações; impõem-se requisitos não solicitados pela legislação que criam obstáculos e às vezes tornam impossível o acesso a serviços legais de aborto; permite-se a desinformação por parte de grupos antidireitos mediante a promoção de legislações que buscam restringir os direitos humanos; viola-se o segredo profissional e se criminalizam mulheres com emergências obstétricas”, afirma o estudo.

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Na maioria dos casos, as mulheres que entram em um centro de saúde com uma emergência obstétrica ou com perdas por um início de aborto, são denunciadas pelos próprios médicos à Procuradoria e à Polícia, que lhes tomam a declaração na cama do hospital ou que são até levadas quase nuas, cobertas apenas com a bata do hospital, para declarar à procuradoria. O informe de HRW revela que 73% dos processos judiciais contra estas mulheres são iniciados por denúncias dos profissionais de saúde, uma cifra similar ao que ocorre no México e na Colômbia.

Falta de informação e de acesso à saúde

As causas que geram este perfil de mulheres criminalizadas são múltiplas. Entre elas destacam-se as barreiras derivadas da falta de informação. Mulheres que vivem em zonas afastadas dos centros urbanos ou no meio rural não conhecem seus direitos ao aborto e, quando os conhecem, não dispõem de centros de saúde próximos aonde ir.

Às vezes devem percorrer longas distâncias e usar meios de transporte que são caros e não podem pagar. Outro problema comum em diversos países é a pouca formação e mesmo a desinformação por parte dos serviços de saúde e das instituições judiciais.

“Os serviços de saúde denunciam as mulheres por possível indução de um aborto, violando o segredo profissional de médicos e juízes, no entanto, admitem-nas. Também admitem os prontuários clínicos”, acrescenta Casas.

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Esta ativista relata que as mulheres de classe média e acomodada e que vivem em meios urbanos, não só têm recursos econômicos para pagar serviços de saúde privados que fazem abortos, como a possibilidade de viajar para o estrangeiro, e ainda recursos para pagar advogados que as defendam.

As mulheres com menos recursos recorrem a advogados de ofício que muitas vezes lhes recomendam que se declarem culpadas para obter uma condenação menor, ainda que seu caso esteja entre os permitidos para interromper a gravidez.

“A grande maioria enfrenta barreiras para ter acesso a uma adequada representação legal e se lhes viola o acesso à tutela judicial efetiva”, acrescenta Casas.

O medo das denúncias e de serem processadas faz com que muitas mulheres não vão aos centros de saúde, optando por abortos “artesanais” e inseguros, batendo-se, metendo ganchos na vagina ou tomando ervas. Métodos todos que põem em risco sua saúde e sua vida. 

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As cifras reais de abortos na região são difíceis de calcular. Não há registros e as mulheres que fazem um aborto escondem o fato para não serem estigmatizadas. Além disso, a grande maioria das interrupções são feitas em lugares não autorizados, dos quais não há registro.

No entanto, a dimensão deste drama que vivem diariamente as mulheres pode-se inferir pelo escasso número de mulheres que efetivamente praticam um aborto legal. “A exceção é o acesso ao aborto seguro e em boas condições”, afirma Hernández.

“Na Colômbia, depois da despenalização, o acesso ao aborto é muito limitado. Guttmacher  [instituto que se dedica a pesquisar os direitos sexuais e reprodutivos no mundo], calcula que só entre 1% e 9% dos abortos que se realizam no país são legais e seguros e são feitos nas grandes cidades”, conclui Hernández.

O aborto ainda é altamente penalizado em muitos países da América Latina. Ainda que nos últimos anos tenha havido importantes avanços, só cinco países (Cuba, Uruguai, as Guianas e recentemente a Argentina), despenalizaram o aborto e têm leis de prazos em distintos níveis de implementação.

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Outros sete (El Salvador, Honduras, Nicarágua, República Dominicana, Haiti, Jamaica e Suriname) proíbem-no totalmente, mesmo quando a vida da mãe corre perigo. Nos demais existem leis que permitem a interrupção da gravidez em determinados casos. 

Agora, a tendência, tal como explicam diversas especialistas, é a despenalização total do aborto. “As mulheres criminalizadas são as que enfrentam o maior prejuízo quando o aborto é considerado um delito e não um serviço de saúde”, conclui o informe de Gire.

 

Marisa Kohan é jornalista do portal Desde Abajo

Tradução de Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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