Na semana passada, passado um mês e meio do levante militar em La Paz, o presidente da Bolívia, Luis Arce, anunciou um referendo para decidir três questões que afetam seu governo e que o sistema político não resolve, na tentativa de viabilizar os 15 meses restantes de seu mandato.
Por meio de um plebiscito, Arce decidiu resolver a questão da reeleição presidencial – foco de uma disputa interminável com seu antigo aliado, o ex-presidente Evo Morales – a distribuição das 130 cadeiras na câmara dos deputados, de acordo com a população de cada estado, e o subsídio aos combustíveis, que custa ao fisco dois bilhões de dólares anuais.
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A consulta não tem ainda data de realização e se desconhece a redação exata das três perguntas que serão feitas, as quais devem passar previamente por controle constitucional.
Desde a intentona golpista de 28 de junho, as coisas parecem ter piorado na Bolívia: uma desvalorização de fato de 100% da moeda local, encarecendo o dólar de oito para 15 pesos bolivianos, aumenta a escassez de combustíveis devido a atrasos nas importações.
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Inflação, especulação, desabastecimento, protestos, bloqueio de estradas e descontentamento social são “uma tormenta perfeita”, diz de La Paz, em diálogo com o La Jornada, a cientista política Susana Bejarano, que acrescenta que “o referendo não resolve a crise estrutural nem a curto ou médio prazo”.
Os temas a consultar no referendo
Decidir sobre o subsídio aos combustíveis “servirá para ver o quão firmes estão as ideias estatistas ou o quanto se instalou a volta a receitas neoliberais, que estão na moda na Bolívia; quão firmado está na cabeça dos bolivianos o modelo econômico, essa pergunta serve para isso”.
“Se decidirem pelo “não”, o que não acredito que aconteça, esse ajuste será pago pelos pobres, pois 67% do subsídio ao diesel vai para a indústria, o que implicaria aumentos de preços, mas assim não seria o governo responsabilizado, e sim a população. É uma jogada política, decisões técnicas que as pessoas não deveriam assumir”.
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“Desfaz a luta interna do Movimento ao Socialismo (MAS) e busca aclarar a disputa entre Arce e Morales, encerra as batalhas jurídicas e, eventualmente, termina com a candidatura de Morales e o obriga a pensar em um sucessor, o que reconfigura o cenário político e a guerra interna do MAS”.
Bejarano recorda que existe uma decisão constitucional a esse respeito, impedindo a reeleição por mais de dois mandatos, “o que precisa ser confirmado pelo voto popular”.
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A terceira pergunta, acerca da redistribuição dos deputados segundo cifras do censo 2024, está vinculada ao choque permanente entre o centro político controlado pelo MAS e a província de Santa Cruz, bastião opositor, cuja população aumentou. Os cálculos apontam que Santa Cruz ganhará quatro deputados, La Paz perderá um, Potosí, dois, e Chuquisaca, um.
“Em Santa Cruz, há dúvidas de que plebiscitar essa questão esteja destinado a perder o que é garantido constitucionalmente”, diz. O governo “deixou à interpretação o referendo, ninguém deu uma explicação do que exatamente será perguntado”.
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“O presidente não tem a possibilidade de que essas perguntas tenham incidência na Constituição, não podem resultar em reformas constitucionais”, explica a politóloga.
Ela estima também que Arce busca oxigenar o campo político retirando do tabuleiro seu arquirrival Evo; o tema dos deputados, bem feito, sem afetar Santa Cruz, visa não entrar em conflito com outros departamentos, “obrigando o Parlamento a uma modificação constitucional para aumentar de 130 para 134 deputados”; quanto aos combustíveis, é entregar legitimidade ao modelo produtivo, enfraquecido pela desaceleração da economia.
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