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ToggleEm meados de maio, no território ultramar francês da Nova Caledônia eclodiram protestos e manifestações contra a regência de Paris, após a minoria originária do arquipélago, os kanaks, rejeitarem uma proposta que mexia na legislação eleitoral da região.
As manifestações chegaram a se tornar violentas, com repressões dos militares franceses e a morte de manifestantes kanaks. Em 23 de maio, o presidente francês, Emmanuel Macron, chegou à Nova Caledônia para avaliar a situação.
O que há de tão especial no pequeno arquipélago que faz a França não querer largar o osso? É apenas uma questão de orgulho para Macron, que já viu seu país expulso de ex-colônias africanas, como Níger, Chade, Burkina Faso e Mali?
Para comentar esse tema, o Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, ouviu o professor de relações internacionais do Ibmec Márcio Sette Fortes, que foi também adido setorial do Ministério da Economia da França no Rio de Janeiro na década de 1990.
Por que a Nova Caledônia se revoltou?
Incorporado pela França em 1853, o território deixou de ser formalmente uma colônia após a Segunda Guerra Mundial, quando, em 1946, se tornou um território ultramar, nova designação administrativa da França para várias ilhas que compunham seu império.
Segundo Sette Fortes, a partir de então foram quatro décadas de uma “calma muito, muito tênue” entre os franceses e os habitantes da ilha, os kanaks. Esse período de tensão foi amenizado em 1988, quando o então primeiro-ministro francês, Michel Rocard, assinou os Acordos de Matignon.
No documento, os independentistas se comprometiam a não abordar o tema pelos próximos dez anos e, em troca, as ilhas receberiam melhorias econômicas e institucionais por parte de Paris.
Dez anos mais tarde, um novo acordo foi assinado, dessa vez “já sob a égide do primeiro-ministro francês Leonel Jospin“. Chamado de Acordo de Noumea, pelo fato de ter sido assinado na capital do território, o texto deu controle governamental aos kanaks, mas reteve a administração francesa em pontos críticos, como “defesa, segurança interna, relações exteriores”, moeda e Justiça.
Além disso, os termos de Noumea criaram uma nova categoria administrativa para as ilhas, já prevendo a possibilidade de uma independência através de referendos públicos. A primeira dessas votações, contudo, ocorreu apenas em 2018.
Décadas depois de assinado o Acordo de Noumea, três referendos populares sobre a independência do arquipélago foram realizados, em 2018, 2020 e 2021. Os três obtiveram resultados negativos para os independentistas.
Só que em vez de esses resultados representarem a vontade da população originária da Nova Caledônia, diz Sette Fortes, eles deixam clara a sub-representação eleitoral à qual os kanaks estão submetidos. “Hoje temos cerca de 40% da população daqueles que são considerados nativos locais, o povo autóctone, o povo kanak. Eles são minoria nessa população.”
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Ao longo das últimas décadas, detalha Forte, “questões associadas a modificações no processo eleitoral vêm sendo discutidas, principalmente porque esse povo que deseja autodeterminação é minoria”.
“Então, por ser minoria, nos processos eleitorais eles acabam ficando sub-representados.”
Os novos protestos
De acordo com o professor de relações internacionais, é nesse contexto de diminuição da representatividade eleitoral que se dão os novos protestos dos Kanak. “Por conta de uma modificação, de uma reforma constitucional”, diz Forte, o povo originário se tornará ainda menos representado no governo.
A reforma proposta pelo governo francês prevê expandir os direitos eleitorais para todas as pessoas que vivem no território da Nova Caledônia há pelo menos dez anos. “Essa mudança vai ampliar o eleitorado de franceses que vivem lá”.
E com isso, qualquer referendo que seja colocado sobre questões de independência se torna “inócuo”, alerta Forte. “Porque acabam refletindo a vontade de uma maioria que não quer a independência.”
“Inócuos para o povo local, que por ter uma população menor e, agora, com a reforma eleitoral, ainda menor, quando comparada à dos franceses, jamais teriam o seu pleito de se tornarem independentes aceito“, explica.
Qual a importância da Nova Caledônia?
Explicada a situação atual, Márcio Sette Fortes, detalhou o porquê da França não abandonar tão facilmente assim o território da Nova Caledônia. Para o especialista, o arquipélago melanésio tem uma importância econômica e geopolítica que a França não pretende abandonar.
Exploração de lítio
As ilhas da Nova Caledônia possuem dois grandes eixos econômicos: o turismo e a exploração mineral, sendo o quinto maior produtor de níquel do mundo. Esse negócio, aponta Forte, “é uma produção bastante importante, apesar de algumas críticas que sofre do povo local”.
“Eles criticam bastante a exploração em função de questões ambientais, de questões de poluição de suas águas, mas também em função de uma compensação que gostariam de receber pela exploração.”
Forte ressalta que nos últimos anos, a exploração de níquel na ilha ainda tem passado por mudanças acionárias de empresas. “Até recentemente quem estava fazendo a exploração mineral do níquel era a nossa Vale.”
“A Vale, que na primeira década deste século fez a sua internacionalização […] ao adquirir a canadense Inco adquiriu também as operações da Nova Caledônia para a extração de níquel”, lembra o analista.
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Depois a Vale vendeu sua posição e hoje quem explora os minérios na ilha é um consórcio que já engloba o povo local, detalha Forte.
Projeção da França nuclear
Talvez ainda mais importante seja o fator geopolítico que a ilha traz para a França. Segundo o internacionalista, o país europeu usa a Nova Caledônia para marcar sua posição na região com bases militares.
“A presença de um território francês naquela região é extremamente importante para a questão de projeção de poder”, especialmente para um país “nuclearizado”.
Hipocrisia à francesa
As tentativas francesas de suplantar eleitoralmente os Kanaks em sua própria ilha, abrangendo os direitos eleitorais para os imigrantes com mais de dez anos de residência, é de certa forma uma hipocrisia, explicita Fortes. “A França sofre de uma mesma situação dentro de seu território.”
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“A França hoje, como país europeu, como economia de país desenvolvido, ela tem atraído um número muito grande de imigrantes”, afirma o especialista. E quando esses imigrantes chegam ao país, “muitas vezes trazem consigo sua cultura, os seus hábitos e isso contrasta muitas vezes, inclusive a questão religiosa, contrasta muitas vezes com o francês autóctone.”