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Rússia, China e EUA: a obtenção de uma vacina rápida contra coronavírus é possibilidade real?

Seis iniciativas prometem uma solução definitiva para a pandemia e a ciência tem tido protagonismo mundial, mas seus valores estão sendo muito questionados
Miguel Malpartida
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Desde a declaração da pandemia da Covid-19 pela OMS, em março de 2020, as autoridades sanitárias do mundo inteiro vislumbraram que a melhor possibilidade de a conter seria o desenvolvimento de vacinas.

Hoje, após cinco meses, com mais de 27 milhões de pessoas infectadas, sete milhões de mortes e diante das dificuldades enfrentadas na aplicação das medidas e contenção, o que era a melhor possibilidade tornou-se uma certeza.

Adicionalmente, o fracasso absoluto do tratamento precoce com drogas como a hidroxicloroquina e a ivermectina, deixa-nos apenas algumas abordagens de uso em estágios avançados da doença, tais como Redmi Sivir e a Dexametasona, o que reforça a necessidade urgente de desenvolver vacinas.

Porém, obter uma vacina rápida é uma possibilidade real?

Seis iniciativas prometem uma solução definitiva para a pandemia e a ciência tem tido protagonismo mundial, mas seus valores estão sendo muito questionados

FioCruz | Reprodução
No caso das vacinas, o cumprimento cuidadoso das três etapas do seu desenvolvimento é estritamente necessário

Por que se fazem as vacinas?

As vacinas simulam o nosso próprio sistema imunológico, ativando a resposta imune específica (também denominada adquirida ou adaptativa), tanto a resposta de natureza celular ou de natureza humoral. E como se daria esta resposta no caso da Covid-19?

Quando os macrófagos fagocitam o vírus SARS-CoV-2, degradam suas as proteínas e apresentam os peptídeos virais resultantes na sua superfície, se transformando em células apresentadoras de antígenos (APC), que por sua vez são reconhecidas pelos linfócitos T auxiliares (CD4+).

A partir deste ponto há dois caminhos possíveis: 

a) ativação dos linfócitos T citotóxicos (CD8+) para eliminar as células infectadas pelo vírus (resposta celular); e 

b) ativação de linfócitos B, que produzirão anticorpos neutralizantes contra o vírus, evitando sua ligação as células-alvo (resposta humoral). Teoricamente, os linfócitos T citotóxicos e os linfócitos B são capazes de adquirir “memória” de longo prazo, podendo reconhecer o vírus por meses ou anos, estabelecendo desta forma, uma imunidade duradoura.  

Ambos os caminhos podem ser estimulados pelas vacinas, com diversos graus de especificidade e duração, mas para ter uma certa garantia de que este processo ocorra de forma segura e confiável, é preciso a conclusão de várias etapas de desenvolvimento e implementação.

Como se fazem as vacinas?

As vacinas são desenvolvidas inicialmente usando diversas estratégias, denominadas plataformas. Mais de 170 vacinas contra SARS-CoV-2 estariam em desenvolvimento em universidades e empresas (mais de 70% pertencentes a organizações privadas).

As seis vacinas que se encontram em estágios mais avançados (ver adiante) estão testando a utilização de diferentes antígenos em pelo menos quatro tipos de plataformas diferentes.

Vacinas com o próprio vírus:

Inspirados nas vacinas contra a poliomielite e o sarampo, nesta plataforma a resposta imunológica é ativada por: 

a) vírus SARS-CoV-2 enfraquecidos por manipulação genética (normalmente após serem introduzidos em animais ou células humanas) que impede que eles provoquem doença; e 

b) vírus SARS-CoV-2 inativados por exposição a agentes químicos ou aquecimento.

Vacinas com vetor viral:

Uma vacina contra Ebola que utiliza esse sistema foi aprovada recentemente. Estas vacinas são desenvolvidas a partir de vírus de outras doenças (ex. sarampo) ou adenovírus, que são enfraquecidos e utilizados como vetores. Por manipulação genética são introduzidos genes de SARS-CoV-2 (como o gene que codifica a proteína Spike ou S), que ao serem introduzidos na vacinação seriam produzidos pelas células e reconhecidas pelo sistema imunológico do indivíduo vacinado. 

Existem vacinas que fazem o vetor viral se replicar dentro da célula, favorecendo uma forte resposta imunológica. Porém, se o indivíduo tiver imunidade contra o vetor, o efeito da vacina pode ser atenuado ou até eliminado. O vetor viral sem replicação ainda não é utilizado em vacinas humanas, mas se utilizam em terapias gênicas.

Vacinas com ácidos nucleicos (DNA ou RNA):

São produzidas pela introdução de fragmentos de ácidos nucleicos (DNA ou RNA) que carregam genes de SARS-CoV-2, como o gene que codifica a proteína Spike, mediante um processo elétrico que abre poros na membrana celular ou pelo uso de lipossomos que carregam os ácidos nucleicos.

Essencialmente, segue-se o mesmo princípio que no caso anterior, porém os genes inseridos tanto no DNA como no RNA seriam expressos pelo próprio indivíduo vacinado, sem a interferência nem os efeitos imunogênicos intrínsecos de um vetor viral.

Vacinas baseadas em proteínas:

Estas são vacinas produzidas por: 

a) proteínas ou fragmentos de proteínas, principalmente a proteína Spike, ou um fragmento dela, denominado domínio de ligação ao receptor (RBD), que produziriam uma resposta imunogênica direta no indivíduo vacinado. Esse tipo de vacina, no entanto, requer doses múltiplas e adjuvantes (moléculas auxiliares que estimulam o sistema imunológico com a vacina); e 

b) Estruturas proteicas que imitam o SARS-CoV-2, mas que não são infectantes pois não possuem material genético, sendo por este motivo denominadas vacinas com partículas semelhantes ao vírus (VLP – vírus – like particle). A resposta imunológica é potente, mas a produção pode ser complexa.

Quais são as fases de produção das vacinas?

O protocolo padrão para o desenvolvimento de vacinas inclui três etapas: pré-clínica, clínica e logística.

  1. A etapa pré-clínica: pode durar 10 anos ou mais, dependendo de quanto duram os estudos denominados exploratórios ou de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Nesta etapa ocorre a seleção e validação da plataforma (veja mais a frente), desenho e validação de alvos, testes in vitro em cultura de células e in vivo em animais, até chegar na prova de conceito. Para SARS-CoV-2 R&D, alguns dos modelos animais usados nestas provas de conceito são camundongos, hamsters sírios, furões e primatas não humanos (NHPs). Muitas das tentativas de desenvolvimento de vacinas próprias na América Latina, incluindo o Brasil, não passaram ainda dos estudos exploratórios. 

Em síntese, na etapa pré-clínica completa são verificadas:  

a) a eficiência das plataformas e alvos; 

b) a formulação mais adequada; 

c) eficiência na produção de anticorpos neutralizantes pelas células B; 

d) Eficiência na resposta citotóxica das células T. 

As vacinas que mostrarem resultados encorajadores na etapa pré-clínica são levadas para a segunda fase. 

  1. A etapa clínica: Dividida em três fases:  Fase I, Fase II e Fase III. Cada uma destas fases deveria ter uma duração de aproximadamente 1-3 anos cada uma, porém, considerando o cenário de urgência da pandemia da COVID-19, estas fases foram sistematicamente encurtadas.

a) Na Fase I se avalia a segurança em humanos (toxicidade, efeitos colaterais, etc), bem como tempo de estímulo e eficácia da vacina num estudo de até 100 voluntários;

b) Na fase II se avalia novamente a segurança em humanos, tipo de população na qual a vacina induz a resposta desejada e a eficácia global da vacina em até 1000 voluntários;

c) Na fase III se avalia segurança em humanos, toxicidade num maior número de pessoas, especificamente fenômenos como: indução de doença respiratória aguda induzida por vacina (VAERD), amplificação da infecção dependente de anticorpos (antibody-dependent enhancement ou ADE) e indução de tormenta de citocinas (ver adiante). Nesta fase se verifica também se a vacina previne a infecção em um número grande de pessoas, já que os testes costumam ser implementados em mais de 10 mil voluntários. Esta etapa é chave para declarar que uma vacina está pronta e iniciar a fase logística.

3. Etapa logística: Refere-se as condições de fabricação, distribuição e armazenamento de qualquer vacina. Compreende o escalonamento produtivo, a cadeia de suplementos, a capacidade de fabricação e a capacidade de armazenamento e distribuição mundial. No caso da Covid-19, estas condições são absolutamente necessárias pois trata-se de uma pandemia que atinge mais de 200 países. Cabe finalmente ressaltar que para chegar a esta etapa todas as fases anteriores devem ter sido cumpridas (mesmo que de forma concomitante) sob condições de Boas Práticas de Fabricação (Good Manufacturing Practices ou GMP), inclusive desde os estudos pré-clínicos.

E qual é o cenário atual de vacinas contra o vírus SARS-CoV-2?

Atualmente, existem seis iniciativas que iniciaram os estudos na Fase 3 dos estudos clínicos, com os estudos preliminares de fase 1 e 2 públicos e divulgados por meio de registro na OMS e alguns em revistas científicas arbitradas.

Oxford/AstraZeneca: Em teste no Brasil, esta é uma vacina com vetor viral não-replicante, que usa uma versão mais branda de um adenovírus que causa uma gripe comum em chimpanzés, chamado CHAdOx 1. O vírus foi geneticamente modificado para não causar infecções em pessoas e para fazer as nossas células produzirem a proteína Spike que permite a ligação do SARS-CoV-2 aos receptores das células humanas possibilitando a infecção.  

O objetivo da vacina é fazer com que as nossas células passem a produzir essa proteína e que isso gere uma resposta imune que ensine ao nosso sistema imune como se defender do coronavírus. Esta vacina está em testes que combinam as fases 2 e 3 na Inglaterra e na Índia e em testes de fase 3 na África do Sul, além do Brasil, onde dois mil profissionais de saúde no Rio de Janeiro e São Paulo são voluntários. 

A AstraZeneca manifesta que terá capacidade de fabricar dois bilhões de doses e já firmou acordos para fornecer 400 milhões de doses. Os pesquisadores responsáveis dizem que ela pode começar a ser disponibilizada em outubro. No Brasil, a vacina será produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), como parte de acordo fechado pelo Ministério da Saúde. 

Sinovac: A vacina da empresa chinesa Sinovac, denominada Corona Vac, usa vírus SARS-CoV-2 inativados. Os testes da fase 3 no Brasil se iniciaram desde julho, e na Indonésia, desde o início desde agosto. No total, nove mil voluntários pertencentes ao SUS devem participar, nos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Brasília.  

A Sinovac é uma companhia privada com sede em Pequim e que tem experiência na produção de vacinas contra febre aftosa, hepatite e gripe aviária.  A tecnologia em teste é considerada segura porque, ao usar o vírus inativado, uma tecnologia amplamente testada, é mais difícil que a vacina deixe uma pessoa doente. A Sinovac diz ter a expectativa de produzir por ano 100 milhões de doses da vacina contra o SARS-CoV-2 até o final do ano. 

No Brasil, a empresa fez uma parceria com o Instituto Butantan, que é ligado ao governo de São Paulo. De acordo com o governador paulista, João Doria (PSDB), a Corona Vac pode estar disponível em janeiro do ano que vem, dependendo dos resultados antecipados dos testes da fase III. 

Moderna:  A empresa americana Moderna desenvolve uma vacina que usa uma técnica inovadora, utilizando RNA mensageiro empacotado em nanopartículas de lipossomos. Se essa técnica funcionar, será a primeira vez de aprovar este tipo de vacina de RNA. 

O governo dos Estados Unidos investiu quase US$ 1 bilhão na pesquisa desta vacina que está em testes em humanos desde março e, no final de julho, entrou na fase 3, a qual terá 30 mil participantes nos Estados Unidos. Caso os resultados sejam positivos, o governo do Presidente Donald Trump (Partido Republicano) já garantiu que receberá 100 milhões de doses, pelas quais pagará US$ 1,5 bilhão.

BioNtech/Pfizer/Fosun: No final de julho, a coalizão de empresas por trás dessa vacina anunciou o início dos testes combinados de fase dois e três. Ela também usa a técnica de RNA mensageiro para obter uma resposta imune protetora. Serão 30 mil voluntários nos Estados Unidos e em outros países, entre eles Argentina, Brasil e Alemanha. 

O governo Trump comprou 100 milhões de doses por US$ 1,9 bilhão, com a opção de comprar mais 500 milhões posteriormente. O governo do Japão, por outro lado, garantiu 120 milhões de doses para o país.  A expectativa desta tecnologia é que possa fabricar mais de 1,3 bilhão de doses até o final do próximo ano. A pesquisa é uma colaboração tripartite entre a empresa alemã BioNTech, a estadunidense Pfizer e a chinesa Fosun Pharma. 

CanSino: Esta vacina usa um vetor viral não replicante chamado Ad5, baseado num adenovírus que causa uma gripe comum em pessoas e foi geneticamente modificado para levar nossas células a produzirem a proteína Spike. 

A empresa chinesa CanSino está fazendo testes na Arábia Saudita, mas a companhia também negocia com outros governos. O projeto foi feito em parceria com a Academia de Ciências Médicas Militares da China. Assim, após os resultados positivos das duas primeiras fases, as Forças Armadas do país anunciaram ter aprovado o uso desta vacina pela corporação, mas não ficou evidente se os soldados serão obrigados a serem imunizados com ela, descartando-se, portanto, a certeza de que os testes serão feitos com voluntários.

Sinopharm: A farmacêutica estatal chinesa tem duas versões de uma vacina que usa cópias inativadas do SARS-CoV-2. Uma é feita com o Instituto de Produtos Biológicos de Wuhan e a outra com o Instituto de Produtos Biológicos de Pequim. Ambas estão em testes de fase 3 desde julho, nos Emirados Árabes, em um estudo com 15 mil participantes. 

O governador do Paraná, Ratinho Júnior (PSD) também firmou um acordo para testar a vacina da Sinopharm em profissionais da saúde do Estado. A mídia estatal da China divulgou que, segundo o presidente da empresa, a expectativa é ter uma vacina disponível até o final do ano.

A vacina Sputnik V da Rússia: novidades e controvérsias.

A vacina russa, denominada Sputnik V, desenvolveu uma plataforma similar à vacina da Oxford/Astrazeneca, porém usando dois adenovírus modificados e não replicantes em células humanas, ao invés de um. 

Esta tecnologia já estava em desenvolvimento no Centro de Pesquisa Gamaleya do Ministério da Saúde da Rússia para a formulação de vacinas contra os vírus do Ebola e da MERS. Ambos os adenovírus, denominados AD26 e AD5, contêm o gene da proteína Spike e a estratégia consiste em vacinar inicialmente com o adenovírus AD26 e depois efetuar uma segunda vacinação, após 21 dias, com o vírus AD5 e assim induzir uma resposta imune de maneira preferencial contra a proteína Spike em relação à imunidade inespecífica promovida pelo vetor de adenovírus, um dos maiores problemas das plataformas que usam vetores virais. 

No papel, seria uma vantagem técnica e metodológica em relação as outras vacinas. O questionamento à vacina russa, que foi anunciada no dia 11 de agosto, é falta de transparência na divulgação dos estudos de fase 1 e 2 que aparentemente, teriam sido iniciados há dois meses, com apenas 38 indivíduos. Além disso, o desenvolvimento da vacina só foi colocado no site web Clinical Trials no dia 12 de agosto, um dia após o anúncio de que os estudos de fase clínica 3 começarão em breve.  

Podemos sintetizar, assim, que para além das questões políticas obviamente envolvidas, há dois grandes motivos para qualificar a Sputnik V como uma vacina em desenvolvimento e não uma vacina pronta para fabricação, como anunciado pelo Presidente Putin: 

a) Impossibilidade de avaliar o sucesso real da aplicação de dois vetores virais nos quesitos de eficácia e eficiência da resposta imune em humanos em fase 1 e 2; e

b) a realização da fase 3 de forma concomitante com a fase de fabricação e distribuição, ignorando a possibilidade de efeitos colaterais tóxicos como ADE e VAERD. Contudo, os governadores dos estados de Maranhão, Flávio Dino (PCdoB); Bahia, Rui Costa (PT) e Paraná têm mostrado interesse por desenvolver estudos clínicos de fase 3 da Sputnik V, no Brasil.

Os problemas de acelerar o desenvolvimento das vacinas para enfrentar a Covid-19

Questões históricas: O uso vacinas é considerado, historicamente, a melhor estratégia para mitigar a dispersão e o impacto das doenças infecciosas. No entanto, desenvolver uma vacina nunca foi uma tarefa fácil, nem rápida e, muito menos, bem-sucedida. 

Por exemplo, a vacina para a poliomielite, uma doença incapacitante grave, demorou 60 anos para ser desenvolvida. Para o Ebola, uma doença hemorrágica mortal, o desenvolvimento da vacina tomou mais de 15 anos. E outros coronavírus, como SARS e MERS, que levaram a epidemias em vários países, ainda não têm vacinas aprovadas 17 e seis anos após os primeiros surtos, respectivamente, apesar dos ímpetos iniciais para seu desenvolvimento. 

Nesta perspectiva, resta ainda saber se o desenvolvimento acelerado de vacinas para a Covid-19 terá o sucesso esperado, diminuindo drasticamente o contágio do vírus SARS-CoV-2 no mundo ou se — na mesma linha histórica das vacinas contra o SARS e o MERS — a Covid-19 se tornará um surto sazonal, como a gripe influenza, sem ter uma vacina efetiva e eficaz para diminuir a prevalência da doença em todos os países.

As incertezas metodológicas: O desenvolvimento de uma vacina parte do princípio de que a doença infecciosa é conhecida e que os mecanismos biológicos da infecção são bem descritos. 

No entanto, o que conhecemos do SARS-CoV-2, após alguns meses do primeiro surto e o estabelecimento da pandemia, é bastante limitado. Apesar do sequenciamento completo realizado em vários lugares do mundo, ainda não sabemos das diversas formas de interação que o vírus pode ter com receptores celulares, além do descrito receptor ECA2 e como o vírus, de fato, infecta as células de outros tecidos além dos pneumócitos dos pulmões. 

De fato, o aprimoramento da resposta imunológica de defesa estimulado por vacinas, tanto pela sua eficiência como por sua durabilidade, passa por aprofundados e cuidadosos estudos na etapa pré-clínica, bem como por uma validação cuidadosa de candidatos escolhidos nesta etapa em estudos clínicos posteriores. 

Neste ponto, merece destaque a fase 3 dos estudos clínicos, pois é nela que os ensaios com um número maior de pessoas, de diferentes grupos populacionais e faixas etárias diversas, geram um leque maior de informações em relação a aspectos como:  

a) cálculo da porcentagem da população que, de fato, ficaria protegida; 

b) quais são as faixas etárias onde a vacina de fato induz a resposta imune desejada, considerando que o repertório de células imunes que protegem contra a doença diminui com o avanço da idade; 

c) inferência inicial sobre o número mínimo de população vacinada para promover a imunidade coletiva, indispensável numa doença como a Covid-19, com os dados de “imunidade de rebanho” ainda indefinidos; 

d) avaliação da ocorrência de respostas imunes indesejadas pacientes doenças crônicas, mulheres grávidas, crianças etc.; e 

e) avaliação da ocorrência de fenômenos inespecíficos como a Infecção dependente de Anticorpos (ADE, Antibody-Dependent Enhancement) 

Os efeitos colaterais indesejados: Como já mencionado, um dos maiores problemas de não desenvolver uma fase 3 de forma cuidadosa é a ocorrência de ADE, um fenômeno no qual a ligação inespecíficas dos vírus na região Fc dos anticorpos produzidos em resposta às vacinas ou receptores do complemento aumenta a sua entrada nas células hospedeiras destinadas a combatê-los (linfócitos T, linfocitos B, macrófagos, etc) por fagocitose, seguida pela sua replicação de forma eficiente. 

O ADE pode dificultar o desenvolvimento das vacinas de maneira substancial, pois uma vacina pode causar a produção de anticorpos que, via ADE, pioram a doença contra a qual a vacina se destina. Esta seria uma questão decisiva durante os estágios clínicos finais do desenvolvimento das vacinas contra Covid-19, que ficariam negligenciadas caso a aceleração do seu desenvolvimento não seja cuidadosamente observada. Algumas vacinas, que tinham como alvo coronavírus, vírus RSV e vírus Dengue desencadearam ADE durante seu desenvolvimento, e foram suspensas para continuar sua validação posterior. 

A urgência das vacinas para a COVID-19: o que a ciência pode e o que não pode fazer

Estamos diante da maior doença infecciosa dos últimos cem anos. Desde seu início, a ciência tem sido demandada pela identificação de soluções abrangentes, eficientes e imediatas, tudo o que a ciência não pode nem deve fazer, pela própria natureza do método científico. 

E, diante da impossibilidade que, inerentemente, a ciência tem de elaborar respostas para todas as perguntas, o movimento negacionista, alimentado pelas pseudociências, tem aumentado descontroladamente. 

Constitui parte de esta onda negacionista o fortalecimento do movimento antivacina, os tratamentos milagrosos e a negação da pandemia. E o que a comunidade científica pode fazer a respeito? 

Acreditamos que a construção de uma ciência colaborativa, que divulga de forma clara e transparente seus resultados, e, principalmente não ignorando a possibilidade de rever conclusões, mudar rumos e refazer hipóteses. 

O que os cientistas não podem nem devem fazer é se afastar da sociedade e acomodar seus resultados de acordo com os interesses políticos e econômicos dos governos de plantão.

A robustez da ciência deve ser construída pela coerência como o método científico, enquanto espaço de crítica e questionamento a fim de possibilitar soluções duradouras e não efêmeras, estruturais e não conjunturais aos problemas da sociedade

Assim, no caso das vacinas, o cumprimento cuidadoso das três etapas do seu desenvolvimento é estritamente necessário antes de fazer qualquer anúncio de fabricação em larga escala e implementação de vacinação em massa. 

Esta é a única forma de garantir o nível de qualidade exigido pelas normas técnicas e amparado pela legislação, apesar de que tudo isso seja motivo da extensão nos prazos e o aumento dos custos nas diversas fases do seu desenvolvimento.

As vacinas para o SARS-CoV-2 não podem ser a exceção, mesmo nas condições de urgência impostas pela pandemia da Covid-19, sob o risco de termos efeitos indesejados e em níveis imprevisíveis nas populações vacinadas. E a ciência sendo culpada por tudo isso.

Miguel Malpartida, possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Ricardo Palma (1996) e doutorado em Farmacologia pela Universidade de São Paulo (2004). Atualmente é professor doutor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Colaborador da Diálogos do Sul

Eduardo Ramos Sanchez é possui graduação em Biologia pela Universidad Nacional Federico Villareal (1993). Doutor em Imunologia pelo Instituto de Ciências Biológicas (ICB-IV) da Universidade de São Paulo (USP). Pós-Doutorado pela Universidade de Bergen, Noruega, na área de RNAseq e proteômica. Pós-Doutorado no Instituto de Medicina Tropical, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulona área de microRNA,e Imunologia básica e aplicada. Professor investigador na Universidad Nacional Toribio Rodríguez de Mendoza (Peru).


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Miguel Malpartida

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