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Apesar de escrever e contar histórias desde sempre, Conceição Evaristo diz que se viu escritora quando teve seu nome publicado pela primeira vez nos Cadernos Negros, do Quilombhoje, nos anos 1990. Aos 44 anos, no poema Vozes-Mulheres, ela ecoava vozes ancestrais do passado e de sua descendência sobre a vida de mulher negra no Brasil.
Fernanda Canofre, no Sul21
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
Inaugurava ali o estilo que batizou de “escrevivência”. A escrita carregada de vivência, onde quem nunca teve representação na literatura e foi desumanizado em estereótipos, “se sente convocado”. Inaugurava também uma das carreiras mais célebres da literatura contemporânea brasileira e afro-brasileira.
Hoje, aos 71 anos, a Conceição que nasceu em uma favela de Belo Horizonte e foi empregada doméstica, tem graduação, mestrado e doutorado em Letras, publicou seis livros, virou tema de uma exposição, ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro de contos no ano passado e está cotada para ocupar a cadeira de número 7 na Academia Brasileira de Letras, deixada pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos.
Conceição, que tem receio de ser vista como uma excepcionalidade na autoria negra, diz que riu da ideia no começo. Mas, agora está pensando seriamente. “Comecei a pensar mesmo que é um direito nosso. Se a Academia Brasileira é um lugar, uma instituição de representação de uma nacionalidade literária, então, estou com vontade de me candidatar mesmo e vamos ver”.
Nasce uma escritora
Escrever eu sempre escrevi, desde criança. Eu lembro do primeiro prêmio, quando eu terminei o primário, em meados dos anos 1950, fiz uma redação que se chamava “Porque me orgulho de ser brasileira”. Sempre participei de concurso de redação e ganhava. Por volta de 1965, eu escrevi uma crônica que foi publicada num jornal de Minas Gerais e [numa revista de um seminário de Viamão, no Rio Grande do Sul]. Agora, o momento em que eu começo a me reconhecer como escritora é quando eu publico nos Cadernos Negros, do grupo Quilombhoje.
Tenho dito que é o ritual de passagem para muitos escritores e escritoras, negros e negras. Nos anos 1990, eu estava com 44 anos, foi a primeira vez que eu publiquei e que eu percebo que aquele texto conquistou um público leitor. É dentro do movimento social o primeiro lugar de recepção do meu texto. Quem vai me conferir esse status é ali, quando meus pares começam a me ler e divulgar esse texto. É um processo, pelo menos para mim. Você confiar e se reconhecer como escritora, que não se dá de uma hora para outra. O leitor que vai conferindo isso. Não tem como eu dizer, “sou escritora pra caramba” e ninguém me ler.
A escrevivência
Eu poderia dizer que esse conceito estético que está fundado no termo que eu uso, “escrevivência”, nasce de um processo muito ligado à História. A História dos africanos nas Américas. Muito relacionado à própria figura da mulher, que era escravizada dentro da Casa Grande. [Eu disse em um seminário no Rio de Janeiro, numa mesa de autoria negra de mulheres], a nossa escrevivência não é para adormecer os da Casa Grande e sim para acordá-los dos seus sonhos injustos. Por quê? O pano de fundo era justamente essa imagem que teve a mãe preta na colonização. Um dos papéis dessa mulher era justamente contar histórias para adormecer a prole colonizadora. É uma mulher que a palavra dela ainda era marcada pelo processo da escravidão. Ela era obrigada a acalentar os meninos da Casa Grande, contando histórias. Eu imagino, eu projeto essa nossa escrita, essa autoria negra, tendo justamente uma função contrária.
Se a gente pega a literatura brasileira desde a sua formação até os dias atuais, o que a gente vai ver? Uma gama de estereótipos de negros na literatura brasileira, tanto na construção dos personagens masculinos, quanto femininos e de crianças. Um deles é isso de ser “boa/bom de cama”.
O tempo todo temos, em grandes obras da literatura brasileira, obras que participaram da minha formação na graduação, no mestrado, no doutorado, que inclusive eu gosto, a construção da personagem negra que não passa de objeto. O nosso projeto literário, a partir da minha vivência como mulher negra na sociedade brasileira é compor esses personagens de outra forma. Eu não sou nenhuma Rita Baiana, não sou nenhuma Bertoleza (ambas d’ “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, 1890), não sou nenhuma “Gabriela Cravo e Canela” (do livro homônimo de Jorge Amado, 1958). Nem minha mãe, nem minhas irmãs, nem minha família, nem muitas das mulheres negras. Essa personagem é ficcionalizada e não é capaz de perceber nossos sentimentos mais profundos.
Essa escrita minha parte muito daquilo que eu conheço das mulheres negras, daquilo que eu sou. Por isso que tem uma Ditinha, que pega as jóias da patroa, e “Becos da Memória” (2006), mas que não é uma ladra. Por isso que tem “Ponciá Vicêncio” (2003), que tem toda uma história, que é uma artista. Por isso que tem Ana Davenga (conto homônimo), que tem a primeira festa de aniversário aos 37 anos e é assassinada pela polícia.
Esse projeto estético vai ligar com o desejo de lidar com outras palavras. Eu quero levar para o texto literário palavras bantas, ditados, uma outra compreensão, uma outra maneira de se postar no mundo. Essa linguagem do cotidiano. A gramática é uma coisa morta, o que dá dinamismo à língua é a própria fala e o falar brasileiro tão misturado com o falar africano, com o indígena. Se nós somos um país diverso, como se fala tanto, temos uma literatura muito diversa, que tem que ser reconhecida na sua potencialidade, dentro de um lugar de nascença. O lugar da minha literatura é esse outro lugar.
Memória oral
https://youtu.be/kBvZ3vJSObs
Para mim, a oralidade foi importante no sentido de apurar o ouvido. Eu não tenho nenhum jeito para a música, não sei tocar nada, mas todo mundo diz que meu texto é muito musical. A oralidade me deu o encantamento pela palavra. Eu tenho dito que escritor é um fofoqueiro. Eu adoro escutar histórias. Hoje, então, com o celular, que as pessoas ficam contando coisas, eu sempre fico muito ligada. A oralidade me preparou essa sensibilidade para colher os fatos do mundo.
Eu tenho participado de seminários em que escuto escritores dizendo que aos 12 anos tinham lido tudo de Machado de Assis, isso e aquilo. Vou dizer que meu primeiro contato com a literatura é a literatura oral. Foi essa contação de história. Às vezes, eu escuto uma palavra e ela, pela sonoridade, me desperta. [Eu ouvia essas histórias] da minha mãe, minha tia, um tio velhinho que eu tinha em casa, de todo o entorno.
Acho que uma das grandes riquezas no povo é essa possibilidade de fala, esse brincar com a palavra, essa piada que nasce das coisas mais tristes. Eu tenho pensado muito, a palavra, independentemente de ser escrita ou não, pode ser extremamente libertadora. Assim como pode ser castradora, impositiva, pode ser libertadora.
A partir do que eu vejo da minha família, a literatura é também um objeto de desejo das classes populares. Numa sociedade como a nossa, que é uma sociedade escrita, as pessoas têm consciência que aquele sujeito que sabe ler, que sabe escrever, tem poder. Um sujeito analfabeto tem consciência do processo de exclusão que sofre. Uma literatura que possa, de certa forma, traduzir, que traz no texto literário essa dinâmica da linguagem popular… É por isso que grupos chamados periféricos, como o slam, o RAP, são textos que nascem profundamente marcados por essa dinâmica dessa linguagem viva, atual. Se você consegue recolher isso, dessa linguagem para o texto literário, acho que se conquista o público que era julgado como público que não lê. Ele não lê porque não se oferece muito para que ele leia. Quando se oferece, se oferece um texto que não cativa, em que ele não se reconhece tanto.
Representatividade
A gente tem uma juventude potencializada — estou falando de uma juventude negra, de periferia — e corajosa. Acho que não tem retorno mais. As pessoas podem ser contra, mas as ações afirmativas foram uma luta da gente, que as pessoas às vezes se enganam achando que elas nasceram debaixo para cima. Em 1945, no Teatro Experimental do Negro, no discurso de Abdias do Nascimento, não tinha esse nome, mas era isso que estava lá.
Hoje, tem uma juventude que está na universidade, inclusive [dando aulas], que teve a sorte de ter mais referências. No meu curso de Letras, por exemplo, os únicos escritores negros que eu li foram Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa. Todos os outros autores negros eu conheci dentro do movimento social. Carolina Maria de Jesus eu fui conhecer ainda em Belo Horizonte, nos anos 1960. Mas, Solano Trindade, que o dia em que houver uma revisão da História da Literatura Brasileira, vai ser apontado como um dos poetas modernistas, Maria Firmina dos Reis, [foi dentro do movimento]. Hoje, eles são autores que, por conta da sensibilidade de muitos professores universitários, estão chegando como objeto de pesquisa. Esses jovens têm mais possibilidades e responsabilidades que a gente. Se nós construímos até aqui, facilitamos o caminho… Quando eu fiz meu curso de Letras, podia contar quantos alunos negros havia. E olha que a gente está falando de curso da área de Humanas, que acolhe mais alunos negros. Mais difícil encontrar alunos negros na área de Medicina, Arquitetura.
Eu tenho brincado muito, mas é uma brincadeira para provocar. A gente ouve muito que a literatura é universal, que não tem literatura de mulheres, negra ou africana, porque ela é universal. É interessante, porque quem cria os parâmetros são determinadas culturas europeias, que vão definir esse universal. Isso gera uma discussão muito grande a ponto de, aqui mesmo no Brasil, ter pesquisadores falando que não tem autoria ou literatura negra. Bom, eu li vários textos que não me convocam, enquanto mulher negra, eles me esvaziam de toda a humanidade, mas a literatura é universal. Então, o que eu tenho descoberto? Se existe uma literatura universal, gente, eu acho que eu estou fazendo essa literatura. Acho que uma literatura que parte de uma experiência de mulher negra e que é capaz de convocar a humanidade do outro, não expulsá-la, isso é universal. Eu, com todas as minhas diferenças, ser capaz de convocar.
Eu tenho dito que, assim como a História do Brasil “esqueceu” de contar determinados fatos da trajetória dos africanos e seus descendentes aqui, a literatura também esqueceu de compor personagens mais próximos da nossa realidade. Ao mesmo tempo, como a literatura tudo pode, pode inclusive contestar a si própria. Eu acho que essa autoria, essa voz negra que foi mal aproveitada pode contestar. Se houve Rita Baiana, há uma Ana Davenga. Ela tem esse potencial, não só de contar uma história sob o nosso prisma, como também de se apresentar como contra-discurso literário à literatura consagrada.
O papel da academia
Se a gente pensa a academia como espaço de produção de conhecimento, uma das primeiras atitudes seria ouvir. Que outro conhecimento pode estar chegando aí? Apesar de eu saber pouco, eu gosto muito de pensar no conhecimento indígena. Me lembro de uma estudante, em Belo Horizonte, quando eu fiquei como professora substituta na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que dizia o seguinte: ‘é uma relação de troca, mas ainda é uma relação de troca injusta, porque nos traz aqui pra dentro e nos oferece a possibilidade de aprendermos o saber do branco. Que dia que eles vão se abrir para aprender e reconhecer os nossos saberes?’. Não adianta só a academia ter cota para negros. É preciso que a academia aprenda a incorporar os saberes negros. No campo da literatura, que é meu campo, é preciso que essa academia aprenda a ler autores negros, inclusive aqueles que já são consagrados. Tem uma pesquisa do Eduardo Assis, professor da UFMG, sobre Machado de Assis, como afrodescendente, em que ele vai buscar momentos da escrita em que ele se pronuncia como sujeito negro e que a crítica literária não trabalha. A academia tem que descer do pedestal e ter essa habilidade de lidar com textos novos.
Um fato que levo para a minha escrita, umas meninas no Rio de Janeiro quiseram trabalhar com “Olhos D’Água” (2015) e levaram o livro para o professor. Ele se recusou, disse que não era literatura, que ele nunca tinha ouvido falar. Dias depois, eu ganhei o Jabuti, justamente com esse livro. A academia tem que estar aberta para o novo.
Aqui mesmo, na UFRGS, o livro caiu no vestibular. Tem alguns centros que estão mais abertos. Só que ainda tem o conservadorismo que quer pautar pelo cânone. Quem cria o cânone?
Solidão de um prêmio
[Quando recebeu o prêmio Jabuti, em 2017, Conceição disse que era um “prêmio da solidão”] É porque é uma Conceição Evaristo. Eu só peço muito que a minha trajetória sirva para se pensar, para buscar outras que estão produzindo. Qual é o risco? Eu fico muito tranquila que a vida me deu oportunidade para pensar sobre isso, talvez se eu fosse mais ingênua ou mais vaidosa (que vaidosa eu sou, né gente? risos) de permitir ser tratada como excepcionalidade. Toda vez que você elege um sujeito como excepcionalidade, você retira o sujeito de todas as suas outras referências, inclusive das originárias. Machado de Assis foi um sujeito tratado como excepcionalidade, então é o sujeito Machado, não o entorno. O entorno te faz, te completa, te define. Hoje, eu estou muito feliz, claro, em termos pessoais, seria muito cínica de falar que não, mas não quero ser tratada como excepcionalidade.
Nesse sentido que eu falei que o Jabuti, para mim, foi um prêmio da solidão. Eu olhava no entorno, eu não via pessoas negras. Não via outras pessoas negras sendo contempladas, representando as editoras, conferindo os prêmios, em papel de destaque. Onde nós estamos? Nesse sentido, a solidão ainda é grande. Até porque a gente sabe que tem outras pessoas.
Que a minha escrita sirva de curiosidade para se pensar essa autoria negra de homens e mulheres que têm nesse país. Eu não sou uma. Mesmo que eu fosse exceção, eu tenho dito isso muito, a exceção serve para pensar as regras. Quais são as relações sociais e raciais, no Brasil, que se aponta uma escritora negra e acha que está bom demais? Se aponta um juiz negro e já quem querem transformar o homem no presidente do Brasil (se refere a Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF, filiado ao PSB e que recentemente desistiu da pré-candidatura)? E acha que resolveu o problema. É perigoso quando você destaca a pessoa e, se ela não tiver consciência, ela embarca mesmo.
A questão racial em 2018
Tem pautas que acho que o movimento social conseguiu avançar, mas vivemos uma situação temerosa. Ninguém é ingênuo para não perceber que o temor está aí, mas que a História brasileira, que a nação brasileira ainda deve muito para os africanos e seus descendentes no Brasil, deve muito. Sem pensar na questão indígena, que a gente não pode deixar de lado. Esses 130 anos de abolição, para mim, são 130 anos de reivindicação. Nada que a nação brasileira ofereça aos povos que ela colonizou, nessa colonização interna, é presente. As ações afirmativas, as cotas, são 10% do que a nação nos deve. É brincadeira. Para mim, essa reivindicação tem que ser sempre propositiva.
Falar sobre preconceito racial no Brasil é derrubar o mito de democracia racial. Qualquer brasileiro, negro ou branco, precisa ser muito ingênuo ou muito cínico para dizer que temos relações raciais sem nenhum problema. Essa denúncia já está feita. Mais do que nunca, o momento agora é de cobrança, de ver se essas ações estão sendo implementadas ou não. Elas têm que acontecer, não só no campo da educação, mas da saúde pública, das representações televisivas. O momento é cobrar a efetivação do que a gente propôs.
Uma cadeira na ABL
Para mim, foi uma surpresa, apesar de que algumas pessoas sempre falaram que meu próximo passo seria entrar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas, como foi uma coisa muito dita entre nós, eu tomava como brincadeira e nunca tinha pensado nessa possibilidade. Há uns 10 dias, uma repórter me liga perguntando sobre isso e dizendo que, nas redes sociais, estavam citando que eu poderia ser uma das prováveis acadêmicas e eu comecei a me entusiasmar com a história. Comecei a pensar mesmo que é um direito nosso. Se a academia brasileira é um lugar, uma instituição de representação de uma nacionalidade literária, então, estou com vontade de me candidatar mesmo e vamos ver. [A cadeira 7, para qual a escritora vem sendo cotada era ocupada pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, falecido no último dia 21 de abril]