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TogglePara o mundo exterior, o Haiti só existe quando sofre. “Sangue, queremos sangue”, dizia o diretor de uma agência de notícias a seu correspondente na ilha, advertindo-o de que não havia mais identidade nesse país, além de sua dor exótica.
“O Haiti não existe” foi o título que um autor deu a seu livro, querendo chamar a atenção para a quarentena a que a história da ilha foi submetida pelo mundo ocidental (1).
As duas ideias são próximas. Considerar o Haiti apenas como uma tragédia recorrente leva a omitir aquele fato impensável e até hoje omnipresente que lhe deu origem: o Haiti provém da derrota da principal potência imperial da época por uma população de escravos africanos.
A Nação tem sua origem em um fato contraintuitivo, em uma negação da Ilustração. Sem que os escravos rebeldes, chamados boçais — recém-chegados da África — ou os mulatos indígenas que os guiavam pudessem sequer imaginar, a enorme revolução haitiana levou ao estabelecimento em 1804 da primeira república negra da história e à primeira independente da América Latina, e depois — quase imediatamente — a seu absoluto isolamento internacional.
Enfraquecido depois da revolução, com uma população reduzida à metade, o Haiti sofreu o assédio da França, que exigiu uma imensa indenização pela perda dos escravos, aguentou o isolamento por parte dos Estados Unidos e de seus vizinhos do Caribe, e viveu em um caos político permanente. Sua não integração ao capitalismo internacional, a inexistência de investimento externo, de imigração, de guerras ou de comércio internacional, fez com que o país não tivesse aquilo que outros do hemisfério puderam chamar de “um século XIX”.
“Silenciar o passado”, como escreveu o grande intelectual haitiano Michel Rolph Trouillot, foi uma atitude do hemisfério desde que o mesmíssimo Simón Bolívar decidiu não incluir o Haiti em seu “congresso anfictiônico” das nações livres da América de 1826, ou desde que Tomás Jefferson disse ao embaixador da França que “a solução”, era “impedir que os negros tenham navios”, com o que se iniciou uma quarentena total do país durante todo o resto do século, até 1915, quando os Estados Unidos decidiram invadi-lo, permanecendo como governantes durante 19 anos e 4 dias.
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Um novo cataclisma
Este ciclo de sangue e reação internacional reproduziu-se nestes dias com o assassinato do Presidente Jovenel Moïse: o país que não existe voltou à vida. Como depois do terremoto de 2010, há um novo cataclisma no Haiti: nas primeiras horas de 7 de julho, o Presidente foi alvejado a tiros, aparentemente por um grupo de cerca de vinte colombianos que, segundo se disse, nem sequer o conheciam porque, antes de assassiná-lo, tiveram que ligar para um chefe, até hoje anônimo, para que identificasse a vítima na câmara de um celular.
Ao escapar, os bandidos enfrentaram a polícia haitiana, perdendo três de seus membros. Os dezessete restantes esconderam-se na embaixada de Taiwan, onde finalmente renderam-se às autoridades. Não tinham plano de fuga. Confiavam aparentemente que quem os recrutara, quem ordenara o assassinato, os ajudaria a safar-se. Mas aí a história entra em um terreno tão nebuloso como os subúrbios de Porto Príncipe.
Ninguém até agora, nem a polícia haitiana, nem o FBI, envolvido desde o início na investigação, esclareceu quem ordenou o assassinato; o que aconteceu com a guarda presidencial sem papel aparente na tragédia; como foi possível que os colombianos vivessem ali por semanas sem serem notados, ou qual foi sua verdadeira missão.
O povo haitiano é essencialmente compassivo. O doutor Jean Price Mars, famoso etnógrafo e diplomata haitiano, descreveu-o como “um povo que canta, dança e se resigna”. Mas é também um povo que protesta, e assim demonstrou nos últimos anos, quando saiu em grande número contra Moïse, acusando-o de violar a Constituição e de ter levado o país à ruína. De destruir as instituições e associar-se a gangues armadas do crime organizado, do sequestro e da droga. De pretender eternizar-se no poder mediante um plebiscito ilegal com o qual queria reformar a Constituição fortalecendo mais ainda o poder presidencial. De ter levado, uma vez mais, à destruição do Estado.
Depois de sua morte, no entanto, Jovenel Moïse parece renascer, pelo menos para certas elites, como uma figura trágica, a vítima da odiada oligarquia. Não é visto como o par histórico do presidente Jean Vilbrun Guillaume Sam, esquartejado em 1915 por uma multidão de burgueses enfurecidos diante do assassinato de seus filhos nas casernas do exército, e sim como um êmulo do próprio imperador Jacques Dessalines, fundador da nação haitiana, pai da pátria, assassinado por seus homens em 17 de outubro de 1806.
Em seus elogios fúnebres ninguém falou de suas tendências autoritárias, da teimosia em repudiar as petições da sociedade civil haitiana, de não ouvir as recomendações da OEA e do Secretário de Estado dos Estados Unidos, que sugeriam um diálogo com a oposição para facilitar uma transição para as próximas eleições presidenciais. Pretende-se virar a página das acusações de corrupção, das investigações sobre o desaparecimento do dinheiro da Petrocaribe, em que apareceu favorecida sub-repticiamente uma de suas empresas.
Segundo seus partidários, Jovenel Moïse morreu devido a seu combate com a corrupta oligarquia haitiana. Segundo a oposição, em troca, Moïse entrou nesse conflito apenas para favorecer outra oligarquia, distinta e mais corrupta que a anterior, aquela que se apoderara do poder no período do cantor presidente Michel Martelly.
Prensa Latina
Cada vez que o Estado entrou em colapso, o Haiti, como no mito de Sísifo, retomou seu caminho para a liberdade e a igualdade
À beira da desintegração
Do que poucos parecem discordar é que o Estado haitiano entrou em colapso novamente. Sem Congresso, com o Poder Judiciário dizimado, com um sistema de sucessão governamental privado de legitimidade e com as gangues armadas agindo sem nenhum controle, dirigidas por um indivíduo que se faz chamar de General Barbecue, o país parece novamente à beira de desintegrar-se. Pode-se argumentar que isto não é novo. Que no Haiti não houve nunca um Estado moderno.
Quem tentou construí-lo foram presidentes autoritários que o transformaram rapidamente em Estados patrimonialistas ou diretamente em tiranias que, como Saturno, devoravam suas instituições. Ou foram forças de ocupação, especialmente estadunidenses, que tentaram “educar” e impor um governo “civilizado”, baseado em eleições democráticas, o que levou à estranha situação de governos sem Estado.
O “enigma haitiano”, escreveu um sociólogo haitiano, radica na conjunção perversa das elites que resistem e desprezam qualquer pacto social; na intervenção da comunidade internacional movida por esquemas favoráveis a seus interesses; e na ausência de recursos humanos e materiais nas instituições (2).
A destruição atual sucede à de 2004, quando o Estado formado no governo de Jean Bertrand Aristide — que a oposição ao ex sacerdote salesiano chamou de “anarcopopulista” — caiu. E esse colapso foi precedido pelo de 1994, quando o estado patrimonialista construído durante a ditadura de François e Jean-Claude Duvalier, descrito por um analista como “neosultanista” veio abaixo, para alegria universal.
Em ambos os casos, a “comunidade internacional”, a OEA, a ONU e atrás delas, sem dúvida, a enorme influência dos Estados Unidos, intervieram para impedir um cenário caótico, que ameaçava a população com uma violência generalizada e com provocar uma emigração descontrolada para a República Dominicana e a Flórida. Isso é o que o Conselho de Segurança da ONU quer dizer quando declara o Haiti, a cada certo tempo, como uma “ameaça à paz e à segurança internacional”.
Houve, no entanto, um momento de esperança. A chegada ao país da Minustah, a força enviada pelas Nações Unidas para estabilizar o país depois da queda de Aristide em 2004, parecia abrir um momento histórico diferente. Ao repúdio interno provocado pela ideia de uma nova força de ocupação — um sentimento sempre vivo no país —, se contrapôs a ideia de um contingente latino-americano, que reincorporava o Haiti à região.
A missão contribuiu para pacificar um cenário convulsionado pela derrubada de um líder carismático, odiado pelas elites e adorado pelos mais pobres, permitindo que um governo provisório, que agiu com prudência e respeitabilidade, convocasse eleições presidenciais para restabelecer uma legitimidade democrática.
Eleito em 2007, o novo governo de René Preval abriu uma época de normalização. Enquanto o tema da segurança parecia ficar para trás, o discurso do governo focou na infraestrutura, na eletrificação, nas zonas industriais e no investimento estrangeiro. Embora o desenvolvimento econômico nunca tenha adquirido um ritmo urgente, o curso dos acontecimentos parecia promissor.
Mas na terça-feira, 12 de janeiro de 2010, o Haiti sofreu uma das maiores catástrofes humanitárias do século. Um terremoto a flor da terra matou 316.000 personas, deixou 350.000 feridas e mais de um milhão e meio de desabrigados. A catástrofe dizimou o Estado. O palácio presidencial e os ministérios caíram sobre seus funcionários, matando dezenas de milhares de trabalhadores públicos e mais de uma centena de membros das Nações Unidas. Substituído por uma invasão de ONGs e de organizações internacionais, o Estado haitiano desapareceu.
A comunidade internacional, mas especialmente os Estados Unidos, prometeu mais de 9 bilhões de dólares, mas a recuperação ocorreu apenas pela metade e os doadores não conseguiram incutir nos haitianos um sentimento de responsabilidade para com sua própria reconstrução.
Como nunca antes, o país e sua política ficaram à mercê de seus doadores.
Uma eleição presidencial imposta pela comunidade internacional em um país cheio de barracas e de mortos recém-sepultados, produziu resultados incertos e acusações de fraude. Só participaram 21% dos eleitores. O candidato que apareceu como vencedor no primeiro turno foi obrigado em Washington a renunciar a sua participação no segundo. Depois de um “manejo técnico” operado por uma missão da OEA, foi proclamado vencedor o cantor Michel Martelly.
No marco de um novo governo formado por empresários, a abundância de dinheiro da reconstrução e do programa Petrocaribe, provido pela Venezuela abriu um curso mais favorável à corrupção do que ao desenvolvimento. Segundo o New York Times, “os informes de auditores nomeados pelos juízes haitianos revelaram com muitos detalhes que grande parte dos dois bilhões de dólares que a Venezuela emprestou ao país foram mal utilizados ou desperdiçados no período de oito anos.
Antes de dedicar-se à política, o presidente Moïse, até então um exportador de frutas pouco conhecido, esteve envolvido em um dos informes por sua participação em um esquema para desviar recursos destinados à reparação de estradas para suas empresas” (3).
Aí está a origem da situação atual. Das acusações de corrupção derivam os protestos massivos, mas também da resistência do governo em permitir as eleições para renovação do Congresso, dos ataques contra o Poder Judiciário e das ameaças físicas a dirigentes políticos, da violência generalizada e da recente onda de assassinatos de opositores e defensores dos direitos humanos. Já saberemos, espera-se, se disso também se deriva o brutal assassinato do presidente, ainda que não se possa desconhecer que parece o mais provável.
Por ora, a nomeação de um primeiro-ministro, cuja principal tarefa é convocar eleições, parece repetir a história. As batalhas políticas que precederam sua nomeação e o fato do atual primeiro-ministro, Ariel Henry, pertencer ao partido de Martelly, não são bons augúrios. Que seu gabinete reúna membros do governo anterior é mau sinal. Mas seu discurso de inauguração aberto ao diálogo e ao processo democrático parece renovar uma esperança. Será possível que as elites tenham compreendido algo das centenas de milhares que decidiram sair às ruas para protestar contra a corrupção?
Poderemos esperar que denunciem as sórdidas relações que alguns da elite mantêm com os bandos armados que provocam massacres nos bairros pobres? Poderemos acreditar, como pediu Magaly Comeau Denis, uma líder do movimento da sociedade civil, que a comunidade internacional e especialmente os Estados Unidos tenham um pouco mais de humildade e de modéstia frente à situação haitiana? Que, por uma vez, ouçam os que protestam e não os que se conformam?
Cada vez que o Estado entrou em colapso, o Haiti, como no mito de Sísifo, retomou seu caminho para a liberdade e a igualdade. Para aqueles que temos o país no coração, essa é uma esperança a que não estamos dispostos a renunciar.
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(1) Haïti n’existe pas; 1804-2004: deux cents ans de solitude. Por Christophe Wargny. Ano: 2008; Pag,: 216; Coleção: Frontières; Editor: Autrement.
(2) “L´énigme haitienne. Échec de l´État moderne en Haití. Sauveur Pierre Etienne. Memoire D’Encrier. Les Presses de l’Université de Montreal, 2007.
(3) The New York Times. “El magnicidio del presidente de Haití, Jovenel Moïse, culmina años de conflicto y parálisis”. Por Natalie Kitroeff y Anatoly Kurmanaev. Publicado em 8 de julho de 2021. Atualizado em 15 de julho de 2021.
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*Doutor em Ciência Política, ex político e diplomata chileno, ex ministro de Relações Exteriores nos governos de Eduardo Frei Ruiz-Tagle e de Michelle Bachelet. Encarregado (2004-2006) da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti. Artigo publicado na Revista Mensagem 70, do Chile.
Tradução de Ana Corbisier
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