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Solucionar crise político-ideológica das esquerdas brasileiras não pode ficar pra depois

Gerações se seguem, lavando as mãos como Pilatos diante do mundo, aquele em que vivem, e aquele que deixa para seus sucessores
Roberto Amaral
Diálogos do Sul Global
Brasília (DF)

Tradução:

“Se a aparência e a essência das coisas coincidessem, a ciência seria desnecessária”
Karl MarxO capital

Em recente debate sobre defesa nacional e segurança pública , ouvi de Luiz Eduardo Soares a expressão “funcionalismo mesclado de marxismo vulgar”, cacoete analítico segundo o qual a análise da realidade se reduz à contemplação de sua aparência: a realidade é o que é porque não poderia ser de outro jeito, e é deste jeito porque atende a um interesse – e, evidentemente, se se trata de um interesse dominante, só pode ser um interesse de classe poderoso.

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A realidade, nestes termos, passa a ser vista:

1) como fato em si, fenômeno incontornável, estanque e estático, completo e imodificável; e

2) como projeção mecânica e incontornável do passado no presente. As limitações dessa historiografia pretensamente objetiva, que descartam o papel do processo social, ficam evidentes na sua incapacidade de explicar as raízes sociais do advento, no Brasil, do chamado bolsonarismo, emergindo aparentemente sem causa visível após décadas de avanço das forças progressistas e de centro -esquerda.

A adesão político-eleitoral de setores atraentes da massa trabalhadora à retórica fascista, nestes termos, deve ser vista como produto natural da nossa formação econômico-social, que tudo explicaria: tanto a violência da ordem estatal quanto o amorfismo das grandes massas diante da injustiça sociais, tanto os surtos autoritários quanto os remansos democráticos.

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Essa simplificação – intenção de resposta paciente à inquietação dos que almejam interferir no processo histórico e se quedam imobilizados na ausência de alternativas –, tende a transformar um materialismo dialético mal compreendido em manifestação de fatalismo de fundo místico.

Essa regência inevitavelmente nos conduziria a formas de niilismo e imobilismo, irmãos siameses na inação, pois, se os fatos que compõem a realidade estão na “ordem natural das coisas”, nada mais há por fazer.

Ao confundir a aparência dos fatos com sua essência, o falso marxismo procura explicar o processo social descartando a capacidade do sujeito histórico de nele intervir qualitativamente. Afasta as massas do combate e da resistência.

Talvez aí, em suas consequências, se encontre uma das muitas emoções para o fato do processo político-social brasileiro – já abalado pelo descenso das forças proletárias urbanas e camponesas e a crise do trabalho – atravessam o momento político-ideológico crítico, representado pela recuperação das teses do mais puro fascismo, que pareciam erradicadas entre nós desde a falência ideológica e social do integralismo e a derrota do nazifascismo no cenário de guerra.

Gerações se seguem, lavando as mãos como Pilatos diante do mundo, aquele em que vivem, e aquele que deixa para seus sucessores

Viomoundo (Ilustração)
O falso marxismo procura explicar o processo social descartando a capacidade do sujeito histórico de nele intervir qualitativamente




Crise político-ideológica das esquerdas

A crise político-ideológica das esquerdas brasileiras, segundo vejo, deita suas raízes na anemia política dos partidos do nosso campo, desde os de centro-esquerda aos ditos de esquerda propriamente ditos, chegando mesmo aos partidos originalmente revolucionários. Renunciaram à organização das grandes massas, ao proselitismo ideológico e à denúncia do capitalismo.

Declinaram, na ação e no discurso, da defesa da visão de mundo que os diferenciava das correntes conservadoras e liberais. As tentativas de explicação percorreram as mais variadas vertentes, desde a debacle da URSS, que desestabilizou no Brasil e no mundo as organizações comunistas, até a opção da centro-esquerda brasileira pelo eleitoralismo puro e simples (mas lamentavelmente confundindo tática e estratégia).

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Quando se reclama a necessidade de estudar a emergência do que se convencionou titular como “bolsonarismo” (a ressurgência de um pensamento e de uma ação que caminha da direita ao fascismo, com apoio em amplas classes populares), diga-nos os “objetivos pensadores ” que não há nada de novo sob a luz do sol, pois o Brasil é o que sempre foi, sem poder ser diferente: reacionário, hoje não mais do que no passado, nem menos do que amanhã.

O presente não seria obra dos viventes, mas apenas dos mortos, “herança arcaica pretérita” como escreveu Octavio Ianni. Assim, as gerações se seguem, lavando as mãos como Pilatos diante do mundo, aquele em que vivem, e aquele que deixa para seus sucessores.


2013

A movimentação surda das placas tectônicas que está na raiz das movimentações dos idos de 2013 – na contramão da aparência de normalidade política e de sucesso de aprovação popular dos governadores petistas – não é considerada como fato novo. Ora – objetam os sociólogos e antropólogos às inquietações do leigo – uma sociedade como a brasileira, herdeira do escravismo, do latifúndio e do genocídio das nativas nativas, não pode declarar-se assustada com a emergência da extrema-direita tabajara.

A história presente, mera decorrência de algum passado, está explicada e pronta, obra dos mortos que absolve os vivos de qualquer responsabilidade pela tragédia do capitalismo brasileiro.

O fato de o candidato protofascista ter disputado as eleições de 2022 voto a voto com Lula, de direita e extrema-direita haverem conquistado a maioria esmagadora das cadeiras das duas casas do Congresso, e de candidatos de direita haverem assumido, entre outros, o governo dos três maiores estados da federação, deve, na leitura fatalista, ser encarado como acontecimento inevitável de nosso desenvolvimento histórico, porque tudo se explica pela evidência de a sociedade brasileira de hoje ser, refletindo seu passado e anunciando o futuro imediato, uma sociedade reacionária…

É esta a ordem natural das coisas. Se o passado dita o presente, passado e presente ditam o futuro e, assim, nada mais restaria aos reformistas e aos revolucionários. Por derradeiro, a História, condenada à linearidade, teria encontrado seu fim.


O fenômeno social

O fenômeno social, porém, é um ser vivo que caminha e se transforma permanentemente; nem é produto de uma ordem histórica regida pelo Olimpo, nem fruto do acaso, mas o resultado da relação dialética dos indivíduos com suas circunstâncias.

No prefácio à segunda edição (1869), do seu inesgotável O 18 brumário de Luís Bonaparte , Marx criticou a análise de Proudhon, quando o autor de Coup d´État “procura representar o golpe de Estado como o resultado de um desenvolvimento histórico anterior”. Desmontando ficção idealista de uma história olímpica, o marxismo tem insistido no papel de sujeito do processo social.

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Em face de observação minha, em debate, sobre a crise dos partidos brasileiros, devastando tanto as organizações de origem revolucionária quanto as reformistas, foi-me objetado que o “fenômeno crise dos partidos é mundial” e, nestes termos, deixa de ser um desafio de nossa realidade, subsumido pela grande tragédia global.

Nosso atraso político assume o caráter de prova quando nos damos conta de que, no segundo decênio do terceiro milênio, estamos revivendo como temas centrais a questão democrática e a defesa das instituições e da ordem jurídica herdada – temas cuja contemporaneidade supostamente havia se esgotado em 1946 com a Constituinte, em 1955 com a posse de Juscelino Kubitscheck, e nos idos de 1985 com o fim da ditadura e constituinte de 1988.


O sonho revolucionário 

Se nos anos 1960 o sonho revolucionário da esquerda organizada era a construção do socialismo, hoje a utopia é a preservação da legalidade. Nosso imbróglio é relativizado, pois os novos filósofos reagem, uma vez mais pondo por terra a expectativa de debate; diga-nos que também a questão democrática estaria em todo o mundo, na Europa e até na metrópole do Norte, de quem, acrescente-se, tudo importamos.

Aos açodados, como este escrevente, restaria esperar para “ver a banda passar”: quando a conjuntura mundial superar esse ciclo que devora os partidos e ameaça o modelo ocidental de democracia, estará sanada nossa crise cabocla, como ensina a história recorrente do país periférico .

O estudo do processo histórico, segundo esse viés, deixa de oferecer instrumentos de intervenção na realidade, esgotando-se sua serventia na tentativa de explicar a ordem, desta feita a ordem que salta do positivismo para um determinismo histórico em conflito com o materialismo dialétic

O que era ação pode transformar-se em imobilismo ao desestimular a intervenção do agente social.

O niilismo se imiscui como saída para a crise existencial: ora a espera do deslindar do processo histórico no qual já não podemos intervir para alterar a realidade, ora aguardar o indicador de incerto processo revolucionário.

De uma forma ou de outra, a inércia sem sentimento de culpa, porque alimentada por uma compreensão muito própria da história. De novo, nada a fazer, senão aguardar a resolução histórica, pois ela sempre encontra caminhos para o desaguar das águas revoltadas. Assim o revolucionário e o reformista renunciariam ao papel de agente de transformação. Venceria o conservadorismo, a seiva vital da sociedade de classes, quando o processo histórico, que é movimento, cobra resistência e luta, os alicerces do futuro, a grande obra humana.

Roberto Amaral | Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB.
Com a colaboração de Pedro Amaral.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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