Pesquisar
Pesquisar

Quais as lições que o Brasil pode aprender com a disseminação do coronavírus na Itália?

Com o crescimento de casos por aqui, especialistas analisam semelhanças e diferenças da nossa situação em comparação ao país europeu
Antonio Carlos Quinto
Jornal da USP
São Paulo (SP)

Tradução:

No dia 11 de março, devido à ampla disseminação mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou para pandemia a classificação da doença provocada pelo SARS-CoV-2, o novo coronavírus. O vírus que cresce no Brasil já se disseminou por todos os continentes. Mas a Itália chama a atenção pela velocidade e intensidade com que a doença se espalhou, e deixa os brasileiros “com as barbas de molho”. Lá, até o fechamento dessa reportagem, já eram 15 113 casos confirmados e 1016 mortes. 

No Brasil, que teve o primeiro caso confirmado em 25 de fevereiro, o professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP Eliseu Waldman diz que é difícil prever, mas que “o aumento das ocorrências verificado nas últimas 72 horas aponta para um cenário mais tenso nos próximos dias, que poderá nos levar a um crescimento exponencial do número de casos”.

Mapa interativo COVID-19 do Centro de Ciência e Engenharia de Sistemas (CSSE) da Johns Hopkins University. Foto: Universidade Johns Hopkins até o fechamento da matéria 13 /02/2020 às 13h00 

Diante disso, as medidas adotadas devem ter foco em diminuir o contato entre as pessoas, algo que a Itália está fazendo de maneira incisiva, mas apenas nos últimos dias. “Dependendo do sucesso ou não dessas medidas, a demanda dos serviços de saúde pode aumentar rapidamente e, se não conseguirmos dirigir a maior parte – que é constituída de casos leves – para a rede básica de serviços, deixando a rede hospitalar exclusivamente para os casos mais graves, teremos problemas de superlotação. Tal fato poderá gerar pânico, o que sabidamente é o que mais devemos evitar”, alerta o pesquisador da FSP.

Na Itália, os dois primeiros casos foram confirmados em 31 de janeiro, com a identificação do vírus em dois turistas chineses. “Os números até o dia 13 de março indicam uma taxa de mortalidade de 6,7% naquele país”, relata Luiz Góes, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, esclarecendo que não há dados mais aprofundados porque a Itália foi atingida muito recentemente pela doença, em comparação com a China. Ali, testes com pessoas doentes apontaram que o vírus estava presente em seres humanos desde dezembro de 2019 e, ao todo, foram registrados quase 81 mil casos até agora, com mortalidade de 3,9%. Essa taxa divergente é influenciada por fatores como a grande quantidade de idosos na Itália, além do menor número de testes e o momento em que estão sendo feitos (se o paciente já tem sintomas). Na Coreia do Sul, onde testes estão sendo feitos em massa, inclusive em pessoas assintomáticas, a mortalidade é de apenas 0,84%.
Com o crescimento de casos por aqui, especialistas analisam semelhanças e diferenças da nossa situação em comparação ao país europeu

Jornal da Usp
Na China, a intensidade com que se atacou a disseminação viral foi extremamente agressiva"

No Brasil, como na Itália, as preocupações dos cientistas estão na capacidade hospitalar, que pode simplesmente não dar conta de fornecer leitos de UTI e respiradores para os doentes mais graves. Mas também incluem outras que não estão presentes no país europeu: o tamanho e a concentração da população em metrópoles e o número de pessoas vivendo em favelas.

“Nenhum país está preparado para receber um número muito elevado de atendimentos e internações, em especial dos casos em que é preciso utilizar respirador mecânico. Mas aqui a transmissão do vírus pode ser facilitada pelas condições sociais”, diz Góes, ao lembrar que 6% da população vive em favelas, áreas de alta densidade demográfica, com grande número de moradores em uma mesma residência e falta de condições sanitárias, nutricionais e de educação ideais.

Gráfico elaborado por Drew Harris e adaptado por biólogo Carl Bergstrom. Imagem: Carl Bergstrom e Esther Kim/CC BY 2.0 

Luciana Costa, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também se preocupa com a vulnerabilidade social. “A população de baixa renda vai ter um acesso dificultado ao sistema de saúde se medidas muito claras e coordenadas não forem implementadas no tempo adequado”, diz. Ela avalia que, se o cenário for favorável neste sentido, a maioria dos casos, mesmo graves, podem ser curados.

Sobre o calor ser um potencial aliado nosso, a virologista afirma que não existe nenhuma indicação de como as temperaturas influenciam, se é que influenciam, a transmissão do coronavírus. “A desvantagem das temperaturas mais baixas seria uma maior probabilidade de aglomerações das pessoas em locais fechados, o que é um grande facilitador da transmissão. Mas ainda não sabemos como a transmissão se comportará aqui, na prática, em comparação ao hemisfério norte, que tem temperaturas mais baixas”.

Como aspecto que pode nos deixar mais otimistas, o professor Paulo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP ressalta que o Brasil conseguiu importantes avanços no sentido de fazer o diagnóstico rápido da doença. “Os laboratórios estão atualizados, principalmente no Estado de São Paulo, e o sistema de vigilância tem se mostrado eficiente para detectar casos suspeitos”, afirma ele, que é especialista em coronavírus. “O grande desafio agora é criar uma rede de laboratórios capaz de fazer diagnósticos no Brasil todo, permitindo encaminhar os casos identificados para tratamento, inclusive de outras doenças, como gripe e crises alérgicas”, avalia.

Também torna nossa situação melhor, para Eliseu Waldman, o fato de que a Itália aparentemente foi pega de surpresa, enquanto as autoridades brasileiras vêm se preparando nas últimas semanas para enfrentar o problema. Mas ele indica que serão necessários recursos suplementares, tanto financeiros como humanos. “Especialmente na rede básica, que precisará assumir o papel de porta de entrada do sistema. A operacionalização disso também implicará em despesas com insumos, equipamentos e indumentária de proteção dos profissionais de saúde, grupo costuma sofrer inúmeras baixas em casos assim”.

Segundo o médico, eventos com essas características sempre são ricos em ensinamentos, embora ainda seja cedo para analisá-los. Mas em sua opinião, alguns erros ocorridos no Brasil antes do início da epidemia são facilmente identificáveis:

– Fragilização do SUS nos últimos quatro anos, com cortes contínuos dos recursos e defesa por parte de autoridades de políticas voltadas à privatização da saúde.

– Paralisação do Programa Mais Médicos, que atendia especificamente o segmento mais vulnerável da população.

– Diminuição do apoio aos institutos de pesquisa do SUS, especialmente a Fiocruz.

– Enfraquecimento de políticas públicas que, direta ou indiretamente, dão sustentação aos serviços de saúde, com destaque para as universidades e seus programas de pós-graduação e o financiamento à pesquisa.

“Tais erros fragilizaram aqueles que podem ser chamados de pilares da segurança sanitária do país”, lamenta Waldman, que encerra dizendo que, mesmo assim, ainda há tempo de evitar nos transformarmos numa “nova Itália”.

Mortalidade e vacina

Luiz Góes, que acompanha os estudos sobre o SARS-CoV-2 realizados em todo o mundo, explica que há três fatores que podem influenciar na taxa de mortalidade pela doença. Um deles é a distribuição etária da população. “Um estudo de 44 mil casos na China mostrou que 14,8% das mortes aconteceram em pessoas com mais de 80 anos. Da mesma forma, são considerados a presença de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, e a capacidade de resposta do sistema de saúde”, relata o pesquisador do ICB. “Apesar de a Itália ser o segundo país do mundo que mais realizou testes para detectar o vírus, ainda não estão disponíveis dados epidemiológicos com o mesmo volume e mesma rapidez dos produzidos na China, sem os quais é impossível entender o avanço da doença”, ressalva.

Ele afirma que, “na China, a intensidade com que se atacou a disseminação viral foi extremamente agressiva. “Agora, a Itália está tomando medidas similares”, diz, referindo-se à extensão a todo o território do país da quarentena e das restrições à movimentação de pessoas, que antes vigoravam apenas na região norte.

De acordo com Góes, as variações do nível de mortalidade do vírus não podem ser atribuídas às mutações. “Até agora, os dados não indicam mutações significativas no genoma do vírus, capazes de aumentar sua virulência”, aponta. A virologista Luciana Costa lembra que estamos falando de um vírus “com um genoma de 30 mil bases nucleotídicas [as “peças” do DNA] e apenas três diferenças identificadas”. Para ela, é preciso cautela com especulações. “Vamos precisar de um número muito maior de sequências para suportar as conclusões que estão sendo tiradas agora”.

A pesquisadora diz também que essas mutações não devem dificultar a produção de uma vacina – não mais do que já foi observado para outros vírus e outras vacinas, ao menos. “A princípio, não é um número suficiente de mutações e nem estão localizadas em regiões críticas do genoma para inviabilizar uma vacina”. Vacina essa que, inclusive, está a caminho. “Já temos uma experiência acumulada na busca de vacinas contra o [vírus] influenza e contra o coronavírus da SARS de 2002 e que são um ponto de partida para facilitar o trabalho”, comenta.

Brasileiros na Itália: entre o “caos” e a “esperança

Natural do Rio de Janeiro, Regina da Silva vive na Itália há 31 anos, atualmente em Sinha, Firenze. Regina administra casas alugadas pelo sistema Airbnb para turistas. Ela conta que, depois do dia 9 de março, quando o primeiro ministro Giuseppe Conte foi à TV para reforçar as restrições, teve que fazer algumas mudanças na rotina. “Todos os dias antes de trabalhar preencho na internet um formulário autodeclaratório comprovando a necessidade de sair de casa. A brasileira explica que, se for parada pelos policiais na estrada sem esse documento, a multa é de 249 euros, e a reincidência inclui a aplicação da multa mais três meses de detenção. O formulário vale para deslocamentos de uma região (bairro) para a outra. Se for ao supermercado, por exemplo, perto da sua casa, não há necessidade.

No começo de fevereiro, quando a disseminação do vírus se propagou de uma forma mais intensa, Regina conta que viu as prateleiras dos supermercados se esvaziarem. “As pessoas ficaram apavoradas e a primeira coisa que faziam era estocar mantimentos em casa”. Depois, com mais informações sendo divulgadas, as coisas foram se normalizando.

Regina falou também dos procedimentos que deveria adotar em caso de suspeita de contaminação. Por telefone, comunicaria seu médico de família, que a questionaria sobre os sintomas. Depois, se ele considerasse procedente, pediria à vigilância sanitária da região para deslocar profissionais de saúde até a casa dela para colher exames. Tudo isso gratuitamente. “Eles viriam paramentados com roupas e equipamentos de segurança”, e enquanto o diagnóstico não fosse feito, seria recomendado isolamento em casa. “O resultado sai em 48 horas. Já demorou menos, mas agora aumentaram muito os casos”. Se der positivo para coronavírus, e o paciente estiver bem, permanece em casa. Se tiver sintomas graves, é encaminhado para internação hospitalar.

Apesar da pandemia, Regina se sente segura e pretende voltar ao Brasil apenas para passear no ano que vem.

O artista plástico Maurício Pereira é ítalo-brasileiro (brasileiro com cidadania italiana) e mora em Tortoli, na Sardenha. Como ele trabalha em casa, não sentiu tantas alterações no dia a dia quanto Regina. “O que muda é que antes eu podia ir duma cidade a outra. Agora, se tiver que viajar e a polícia te parar, precisa apresentar a auto-certificação com algum motivo sério. Turismo nem pensar. Portador do vírus que for pego passeando dá prisão inafiançável”, relata.

Na avaliação dele, as pessoas têm lidado bem com as restrições: elas obedecem e a polícia dá conta de fazer o controle. Maurício, que tem 46 anos, afirma não temer por si mesmo, mas pelos idosos e imunodeprimidos. “Há um percentual baixo de gente que não é mais velha nem tem doença preexistente e chega a ir para a UTI. Acontece e pode acontecer comigo. Mas meu organismo é forte, quase nunca tenho gripe, por exemplo. Além disso, de certa forma, a Sardenha está mais isolada. O problema são as grandes cidades”, diz.

Como brasileiro, ele se preocupa sobre o que irá ocorrer quando o vírus se disseminar mais pelo Brasil. “Minha mãe tem doença pulmonar séria e não pode jamais pegar. É disso que tenho medo”, esclarece.

Ele conta ainda de uma particularidade que o afetou como artista. “Meu amigo é médico e está abrindo um novo ambulatório numa cidade vizinha. Estou pintando para ele uma aquarela inspirada numa obra que se chama “A Esperança”. Pensando no que está acontecendo aqui e também nos pacientes que ele tem habitualmente. O que posso fazer, como artista, senão representar a esperança num momento como esse? Esse é projeto que tenho no momento, estou pintando a esperança”, declara.

A auxiliar de enfermagem Márcia dos Santos é natural de Salvador, Bahia, mas está na Itália desde 1997, onde vive com seu marido e um casal de filhos. Em Bérgamo, na região da Lombardia, ela trabalha numa clínica de assistência para idosos. No último dia 11, quando a OMS classificou o coronavirus como pandemia, Márcia conversou com o Jornal da USP e descreveu a situação como um “caos total”. “Agora aqui em Bérgamo está deserto. Por decreto do governo, ninguém pode sair de casa senão para trabalhar, ir ao mercado e basta”, descreveu. “A situação está ficando cada vez mais difícil em todos os sentidos”, lamentou. Seus filhos já estão em casa há três semanas, com aulas online, e o marido trabalhando remotamente.

As autoridades estabeleceram 3 de abril como prazo para reavaliar a situação como um todo, na expectativa de que se reduzam as contaminações ou algo novo aconteça. “Temos muitos contágios e mortos, infelizmente. Como a população aqui na Itália é em sua maioria de idosos, há um muitas vítimas fatais”. Na clínica em que Márcia trabalha, um médico morreu, mas adquiriu o coronavirus fora do ambiente de trabalho.

Os meios de transportes, segundo a enfermeira, estão vazios. “Os ônibus são usados principalmente por estudantes, e como as escolas não estão funcionando, muitos circulam vazios. É bem comum aqui na Itália as famílias terem mais de um carro”, disse.

Apesar de considerar a situação caótica, a enfermeira afirma que o serviço sanitário nacional é “excelente”. “Aqui você pode ir a um hospital privado e o serviço ser pago pelo governo”, exemplifica, ao relatar que os serviços de saúde cancelaram todos procedimentos não urgentes. “A última recomendação do governo é que, caso você tenha tosse seca ou febre, mas não tenha problema respiratório mais sério, deve ficar em casa em quarentena. Mas, se a situação piorar e você tiver falta de ar, deve se encaminhar a um hospital.” Márcia contou que há superlotação nos hospitais e a Lombardia – região que concentra quase 10 milhões de habitantes – foi considerada como zona vermelha para o coronavírus.

Reportagem: Antonio Carlos Quinto, Ivanir Ferreira, Júlio Bernardes, Luiza Caires, Valéria Dias
Texto: Luiza Caires
Arte: Moisés Dorado


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Veja também


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Antonio Carlos Quinto

LEIA tAMBÉM

Fechar Hospital Nacional de Saúde Mental é ataque de Milei à memória histórica argentina
Fechar Hospital Nacional de Saúde Mental é ataque de Milei à memória histórica argentina
Agrotóxicos_Europa_UE_America_do_Sul
"Colonialismo químico": UE inunda América do Sul com agrotóxicos proibidos em solo europeu
Protesto contra Gilead por preço cobrado pelo lenacapavir, medicamento contra HIV
R$ 237 mil por medicamento anti-HIV é apartheid no acesso à saúde e afeta Sul Global, diz ativista
mpox-oms
Mpox: por que população global está vulnerável ao vírus?