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Como avançar na Argentina? Derrota parcial de Fernández revela crise dentro do peronismo

Vencer eleições legislativas é possível, mas o avanço de programa nacional e popular, requer empoderamento maior do Estado em relação ao capital financeiro
Helena Iono
Diálogos do Sul
Buenos Aires

Tradução:

Nas Eleições nacionais de 2019 quando Alberto Fernandez/Cristina Kirchner foram eleitos, a Frente de Todos obteve 47,70% (PASO) e 48,24% (Gerais), enquanto PRO-JxC obteve 31,80% (PASO) e 40,28% (Gerais). Já nas Eleições legislativas primárias de setembro de 2021: a Frente de Todos obteve 31% (PASO) e PRO-JxC 40% (PASO). 

Em 14 de novembro se realizarão as eleições definitivas. O PRO-JxC não aumentou seus votos em relação a 2019; não houve um triunfo do macrismo. Houve, sim, uma derrota eleitoral da Frente de Todos. Boa parte do seu eleitorado deixou de votar e a esquerda (FI) com 5,8% aumentou e capitalizou parte da crítica interna ao governo.

Mas, com uma participação de apenas 68% dos votantes (em 2019 votaram 81%), a crítica mais significativa veio da abstenção da população empobrecida dos bairros, desempregados e excluídos, fortemente golpeados pelas consequências da pandemia e pela insuficiência de respostas à economia dos bolsos. 

Não se evidencia uma direitização do eleitorado, mas uma canalização da crise interna de JxC, rumo a personagens bolsonaristas (Milei), ou Manes (UCR), edificados pelas redes sociais das fake news da bandeira “anticorrupção”, “anti-quarentena”, “antivacina russa”, “anti-Venezuela” e pela mídia hegemônica e golpista de sempre (Clarín, La Nación). 

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Na Província de Buenos Aires, muitos votantes favoreceram o Manes a nível de prefeituras locais, mas votaram na Frente de Todos a nível nacional. No seu conjunto, a direita não aumentou de votos em relação a 2019. Mas, o preocupante é que a Frente de Todos perdeu 3,7 milhões da sua base eleitoral que deixou de votar. 

Garantir uma bancada majoritária no Congresso é fundamental para a aprovação de medidas decisivas como a Reforma Judicial. O governo de Alberto Fernandez se encontra diante de um grande desafio não só para reverter eleitoralmente em novembro (o que é imprevisível) mas sobretudo para acelerar o projeto nacional e popular pelo qual foi eleito, enfrentar o poder financeiro multinacional e tirar os quase 50% da população da área da pobreza extrema nos próximos 2 anos, com o risco do retorno do macrismo em 2023.

Vencer eleições legislativas é possível, mas o avanço de programa nacional e popular, requer empoderamento maior do Estado em relação ao capital financeiro

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A vice-presidenta Cristina Kirchner, entrou acelerada em campo

A carta de Cristina Kirchner impõem ordem e mudanças

A vice-presidenta Cristina Kirchner, entrou acelerada em campo, logo após os resultados da derrota eleitoral do governo nas eleições primárias das PASOS de 12 de setembro, externou publicamente através da sua Carta intitulada “Como sempre… sinceramente”, sua avaliação, um alerta objetivo, crítico, mas construtivo sobre a revisão e as mudanças urgentes a serem tomadas pela gestão presidencial da Frente de Todos: 

“Quando tomei a decisão de propor Alberto Fernandez como candidato a Presidente de todos os argentinos e argentinas, o fiz com a convicção de que era o melhor para a minha pátria. Somente peço ao Presidente que honre aquela decisão. Mas, o que é mais importante acima de tudo: que honre a vontade do povo argentino.”

Ao coincidir com a tragédia mundial da pandemia, desde o início da gestão da Frente de Todos, aceleraram-se todas as desigualdades sociais sobre a terra já arrasada e a economia de espoliação deixada pelo macrismo. Apesar do sucesso nas medidas sanitárias do governo atual, as necessidades sociais e insuficiências não perdoam prazos e debilidades, e exigem um ritmo maior nas mudanças estruturais de fundo na Argentina.

A carta de Cristina Kirchner trouxe ordem e ao mesmo tempo uma pausa, mesmo que temporária para uma crise aberta com variáveis incontroláveis se não for freada com urgência. O efeito imediato da carta tem sido a mudança do Gabinete e substituição de ministros respondendo ao alerta que ela vem fazendo desde fins de 2020 no discurso em La Plata, sobre “funcionários de governo que não funcionam”.

Um deles, mencionado na sua carta, é o Secretário de Comunicação e Imprensa, Juan Pablo Biondi, que acabou de ser afastado, após ter deixado em letargia por quase 2 anos o poder estratégico comunicacional do governo frente ao povo.

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Os novos ministros, começando pelo chefe de Gabinete, Juan Manzur, são da Agricultura, Segurança Pública, Relações Exteriores, Educação, Ciência e Tecnologia, indicam um reforço peronista com trajetória nos governos kirchneristas. É preciso ver.

Os primeiros passos do novo gabinete indicam, pelo menos, um maior dinamismo e prometem novas medidas. Uma delas acaba de ser anunciada sobre a aposentadoria antecipada de 80% do valor, após 30 anos de trabalho, favorecendo até 30 mil idosos, desempregados, mulheres (55 a 59 anos) e homens (60 a 64 anos). 

Por outro lado, o principal chamado da vice-presidenta não se refere apenas à mudança de personalidades de governo, mas ao rumo econômico e social que deve voltar a enfocar as necessidades dos setores mais excluídos do povo argentino, vitimados pela destruição econômica gerada na era Macri, junto à catástrofe da pandemia; sobretudo com ações e diálogo permanente com o bairro, os sindicatos e as ruas. 

A derrota eleitoral não foi consequência do curso econômico em geral. Depois de dois anos de governo, e com uma pandemia no meio, não se pode pensar que o povo não votou por rejeição ao rumo econômico. Essa será uma questão que deve continuar a ser debatida e que nem mesmo o governo decidiu sobre os prazos, ritmos e programa para tirar o país do atraso.

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Estes setores não foram negligenciados nas intenções da Frente de Todos, mas na descoordenação, no ritmo das ações, na insuficiência — apesar de exemplares no plano sanitário, na vacinação anti-pandêmica (80% do povo está vacinado contra o Covid-19). 

Subsídios como o IFE (aos trabalhadores informais) ou o ATP (as pequenas e médias empresas e comércio) foram cortados prematuramente; e ao chegar a segunda onda não foram novamente implementados. Estas categorias informais, de desempregados, sentiram que o governo os deixou para trás. 

O Ministro da Economia, Guzman, diz que os gastos foram expansivos este ano. É certo. Mas insuficiente. E o que Cristina levanta em sua carta quando diz que houve um reajuste refere-se ao fato de que os gastos deveriam ter priorizado os setores que mais sofreram com a pandemia, porque daí veio a rejeição ao governo.

Certamente, o rumo econômico, incluindo as negociações da dívida com o FMI, deve ser discutido, mas não foi a causa dessa derrota eleitoral. Vale ler algumas análises como a de Alfredo Zaiat para aprofundar a questão econômica.

Como avançar na Argentina? Medidas concretas urgentes:

Qual o debate em curso?  O que deverá ocorrer agora para se recuperar dessa situação? Em primeiro lugar, garantir que as mudanças feitas aprofundem os rumos, sem depender do resultado eleitoral de novembro; que continuem atendendo os setores mais negligenciados, com maior controle sobre a inflação e os preços. É gravíssimo o aumento imparável dos preços. Sobre este último, pouco foi feito. E o que foi feito não teve efeito. 

Os grupos que monopolizam os preços creem que a taxa de lucro é algo intocável. Como se fosse um direito de propriedade intocável. E em vez disso, pode-se tocá-lo! Sim, deve ser tocado! E o governo neste caso, se tem dedicado a acordos para fixar alguns produtos tabelados, etc…  com medidas que dependem da boa vontade dos formadores de preços.

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Enquanto isso, a maior parte da população ficou sem trabalho, não pôde abrir negócios, outras fecharam diretamente, o consumo diminuiu, os preços continuaram subindo e o subsídio foi cortado. Solucionar a questão do aumento dos preços (alimentos, roupas, e produtos de consumo básico) é crucial para o país. Aí se expressa a necessidade de enfrentar os setores financeiros, a economia monopolizada, e a cadeia de rentabilidade que resiste ao poder do Estado.

É urgente motorizar o país, criando trabalho, controlando preços, criando o mercado interno, o desenvolvimento industrial e científico, controlando o comércio exterior para que a receita em moeda estrangeira aumente e acabe com a especulação, o contrabando e o subfaturamento e que a receita se eleve acima da inflação, que é o que o governo prometeu e não conseguiu nesses dois anos.

As eleições revelam as crises cíclicas no peronismo

A carta de Cristina Kirchner traz à tona uma discussão oculta dentro da liderança da Frente de Todos. Mas essas crises no peronismo não são nenhuma novidade, nem é preciso ficar alarmado. Está na sua essência, a partir das suas origens, na medida em que o peronismo foi e continua sendo um movimento multi-classista.

Isso significa que dentro do peronismo sempre houve e ainda há luta de classes, confrontos antagônicos, algo que não existe na direita e nas suas diferentes variantes.

Assim como existem dois modelos no país, também existem no peronismo. Por isso os confrontos têm sido muitas vezes antagônicos, como aconteceu nos anos 70. Perón foi sem dúvida o único líder que conseguiu ter autoridade perante a direita e à esquerda dentro de seu próprio movimento com o famoso movimento pendular. 

Mas, em última instância, sempre foram as massas peronistas que produziram as crises mais profundas em suas lideranças, seja com sua intervenção direta nas ruas, nas mobilizações e greves (mesmo na época de Perón) e também no voto. Isso aconteceu agora.

Kirchnerismo versus Menemismo

O kirchnerismo com Néstor e Cristina inaugurou uma nova etapa do peronismo, impulsionando a construção de uma direção política apoiada pela massa trabalhadora, no conjunto de setores da esquerda peronista e popular e contra os setores da direita sindical peronista e corrupta. 

Antes, Ménen, ao contrário, tentava construir uma liderança peronista, mas apoiado pela direita peronista, nos setores capitalistas monopolistas e fracassou. Prova disso é que quando houve eleições em 2003, Ménen obteve apenas 24%, enquanto Cristina, após o triunfo de Macri, concorreu às eleições e a Frente de Todos venceu. Isso significa que a derrota eleitoral de 2015 não foi um fracasso do peronismo, mas sim uma derrota eleitoral.

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Porém, apesar de o kirchnerismo ter construído uma maioria sólida representando o melhor do peronismo e de outras forças, não conseguiu resolver o enfrentamento com os próprios setores que do seio do peronismo consolidaram sua aliança com a direita, com a oligarquia financeira e os monopólios do país. 

Ou seja, não conseguiu resolver, mas freou o fortalecimento alcançado por estes setores durante a era macrista. Enquanto isso, Cristina Kirchner tornou-se a líder indiscutível de massas do peronismo em sua essência mais popular e de esquerda, incorporando setores que não provêm só do peronismo, mas que fazem parte dos setores que representam interesses nacionais e populares, no caso do radicalismo dos deputados Leopoldo Moreau e Leandro Santoro, Carlos Heller (P. Solidário).

Estes, são os da sintonia fina com Axel Kicillof e Máximo Kirchner, jovens dirigentes de ampla visão política e respaldo social, que garantem os vínculos com os movimentos de bairro, religiosos (Padres na opção pelos pobres) e sindicatos e estudantes.

Constituição da Frente de Todos

A constituição da Frente de Todos foi um instrumento necessário para derrotar o macrismo. A fórmula eleitoral tática Alberto/Cristina foi baseada em que “Somente com Cristina não era suficiente, mas sem ela, era impossível”.  Porém, na medida em que tal aliança necessitou incorporar setores da Frente Renovadora, ou politicamente mais frágeis e vacilantes frente ao poder econômico concentrado, o kirchnerismo encontrou dificuldades em avançar nas necessárias e prometidas transformações prometidas na campanha.

Vencer uma eleição é possível com uma ampla aliança progressista, mas o avanço de um programa nacional e popular, requer um empoderamento maior do Estado em relação ao capital financeiro e à oligarquia, acompanhado de apoio e mobilização popular; o que foi detido pela pandemia. Agora, esta força central do peronismo prenuncia entrar unida em campo.

Integração regional retoma folego com relançamento da CELAC

Outros governos progressistas da América Latina, como a Argentina, avançaram ou retrocederam em outros momentos da história, dependendo da existência ou não de uma forte liderança popular no prazo necessário.

Um desafio muito grande para a Argentina sobre a qual poderão incidir os destinos do Brasil com Lula, e uma nova CELAC e UNASUL apoiados na Venezuela e Cuba, e nos novos processos na Bolívia e Peru.

Helena Iono, colaboradora da Diálogos do Sul, desde Buenos Aires


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Helena Iono Jornalista e produtora de TV, correspondente em Buenos Aires

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