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ToggleFaleceu o Cabo Anselmo no último dia 15 de março.
Pelo telefone, o escritor e jornalista André Cintra me comunicou a notícia. Eu estava fazendo a sesta, mas dei um salto da cama. E estou até agora sem saber por onde começar o obituário de José Anselmo dos Santos.
As notícias, com a sua natural objetividade, que nesse caso querem dizer, com todo natural desconhecimento da história, falam que José Anselmo dos Santos morreu na noite dessa terça-feira aos 80 anos, em Jundiaí, São Paulo. E que ele foi “agente duplo durante o regime militar”. Viram? Chamam de “regime militar” a ditadura e o terror de Estado no Brasil.
Mas vamos ver se Deus nos ajuda a tentar alguma justiça para esse criminoso.
Se retirarmos a infâmia da sua pele, tarefa difícil ou impossível, a primeira característica do Cabo Anselmo é que era um bom mentiroso. Primeiro, mentia sobre o seu nome: ele era Daniel, como se apresentava no Recife, ou Jadiel ou Jônata? Isso era o mínimo. Onde ele se excedia com artes de representação não só em palavras, era na frieza e cinismo com que se referia a seu maior crime: a entrega da companheira grávida, Soledad Barret, à repressão. Em mais de uma entrevista, diante de repórteres comprometidos com a direita ou pela ignorância histórica, ele se referia à grande guerreira com a finura de uma serpente.
Na sua entrevista à Band, anotei que Fernando Mitre, ao mencionar Soledad, o Cabo Anselmo respondeu, com as duas mãos levantadas, como quem se defende, como quem faz lembrar um trato, que ameaçou ser rompido: “Opa!”. E Mitre, de volta: “Depois o senhor fala sobre ela”. E ele, “ah, claro”. E o que se viu depois foi nada, ou quase nada.
No Roda Viva, em um dos momentos de calculado cinismo, Anselmo se refere a Soledad Barret.
Falou o entrevistador: “O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica…?”
Cabo Anselmo: ”Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim”.
E o entrevistador levantou a bola para Anselmo : “Então o feto encontrado lá não era dela?”
Cabo Anselmo respondeu: “Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até ao médico”.
Infâmia fria sem contestação.
Por que são poucos os Museus no Brasil sobre a ditadura ditadura civil-militar?
Mas conheçam a palavra de Nadejda Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas mortos no Recife, junto a Soledad. Hoje, Nadejda Marques é doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento:
“A minha avó Rosália, mãe de Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério. Ela, entre os vários trabalhos que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda, tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado”.
Captura de tela – Roda Viva / YouTube
"Que o inferno lhe seja pesado, enfim. Por toda a eternidade"
E definitivas são as palavras na denúncia da advogada Mércia Albuquerque:
“Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.
Na morte do Cabo Anselmo, enfim, Soledad Barret foi e continua a ser o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para os crimes dele. Ela aponta para José Anselmo dos Santos e lhe sentencia, aonde ele for: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha”.
Que o inferno lhe seja pesado, enfim. Por toda a eternidade.
Soledad no Recife, de Urariano Mota
O livro Soledad no Recife percorre as veredas dos testemunhos e das confissões ao reviver a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e a traição que culminou em sua tortura e assassinato pela ditadura militar. Delatada pelo próprio companheiro Daniel, conhecido depois como Cabo Anselmo, Soledad morre com um grupo de candidatos a guerrilheiros, na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O episódio ficou conhecido como “O massacre da chácara São Bento” e revelou-se mais um extermínio do que um confronto armado. A trama real inspira o romance em que Urariano Mota – com a propriedade de que viveu e sobreviveu aos anos pós 1964 – resgata os vestígios da traição arquitetada contra Soledad e contra o país naqueles tempos, com o olhar reflexivo de quem volta ao passado.
***
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.
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