Pesquisar
Pesquisar
Foto: Vitor Ávila / Unsplash

Chile: exploração de lítio no Atacama devasta ecossistemas milenares, comunidades e tradições

“Não sabemos o que vamos deixar para a geração futura”, afirma Marisol Cruz, da comunidade de Socaire, localizada ao sul do Salar de Atacama
Desinformémonos
Iquique

Tradução:

Ana Corbisier

As comunidades conviveram com o Salar de Atacama – que concentra uma das maiores riquezas de lítio do mundo – durante centenas de anos. O salar está em suas tradições, em sua cultura e em sua linguagem. É parte de sua existência. A exploração do salar para fins mineiros pôs em xeque o futuro imediato destas comunidades e de sua cultura. Por esta razão os povoados de Toconao, Socaire e Camar, conhecidos em seu conjunto como as comunidades da “Borda Sul” – para diferenciar do Conselho de Povos do Atacama (CPA), que representa o setor ao norte do povoado Toconao -, assumem-se mobilizados. Eles sentem ou aprenderam com o tempo que os recursos econômicos para ressarcir o dano ambiental e cultural são finalmente uma maneira de torná-los cúmplices da destruição dos milenários ecossistemas dos frágeis salares alto-andinos. “Nossos adultos mais velhos estão tristes pois nossa comunidade pode desaparecer”. A frase, que pertence a Marisol Cruz, da comunidade de Socaire, resume de maneira significativa o dilema.

Foto: Rodrigo Ramos Bañados

O Salar de Atacama, que tem uma superfície de mais de três mil quilômetros quadrados, está localizado a 56 quilômetros a Sudeste de São Pedro de Atacama (no interior da Região de Antofagasta, no norte do Chile). A paisagem no interior do salar é branco radiante que se potencializa com o “Tata Sol”, provocando por momentos uma cegueira; dentro deste, o lugar mais turístico é a laguna Chaxa, onde se podem apreciar os últimos flamingos. Um guia expõe a existência e qualidades destas aves andinas que a cada período voam em bandos, tingindo de rosa o céu prístino. O hábitat dos flamingos foi afetado pela indústria, segundo os comunitários e a evidência científica. O recurso aquífero não é o mesmo de há dez anos e isso fica evidente depois de rever fotografias antigas.

Leia também | Tentativa de golpe na Bolívia: sanha por lítio e movimentos dos EUA não são mera coincidência

Na entrada da Reserva Nacional de Flamingos, onde cresce flora adaptada de maneira milenar ao entorno de costas salinas, representantes das comunidades mencionadas – vale repetir: são famílias assentadas há séculos no lugar – expuseram os impactos provocados pelo extrativismo para uma delegação da Associação de Municipalidades do Norte do Chile, AMUNOCHI. O propósito do grupo é dar visibilidade a um problema cujo impacto se desconhece: a etiqueta do lítio, relacionada ao desenvolvimento econômico do país, cobre tudo o que afeta seus interesses.

Foto: Rodrigo Ramos Bañados

Agricultura

Marisol Cruz, da comunidade de Socaire, afirma com emoção que estão passando pelo momento mais complexo na história de sua comunidade – de pelo menos 400 pessoas. Neste contexto, sentem-se sós. “A redução hídrica foi de 50% por problemas ambientais com um efeito evidente na agricultura. Nós comemos do que colhemos. Por esta razão é tão importante a agricultura. Não queremos emigrar pela carência de água nem de terra, mas hoje nos damos conta de que as terras não estão aptas para cultivar. A isto se somam as pragas que afetaram 100% dos cultivos de favas e batatas, além de chuvas ácidas. Sabemos de tudo isso. O governo desconhece nossa realidade e os impactos, mas toma decisões que afetam o território que habitamos. Isso dói”, diz.

Leia também | México: nacionalização do lítio protege riqueza e impõe desafios ao desenvolvimento nacional

Afirma que os salares são importantes para sua ritualística. “Somos comunidades culturais, e sempre mantivemos nossa cultura. Afetar os salares é danificar nosso mundo e suas tradições. Não sabemos o que vamos deixar para a geração futura, porque Socaire corre o risco de desaparecer por esta febre do lítio”, assegura.

Foto: Rodrigo Ramos Bañados

Água

O problema na extração de lítio é a água que as mineradoras extraem do Salar de Atacama. Para obter lítio, segundo o procedimento técnico, a água salgada é bombeada para tanques gigantes, onde evapora. Ao mesmo tempo, usam-se pequenas quantidades de água doce. As empresas mineiras costumam argumentar que a extração de água salgada não é problemática, porque não é utilizada como água potável nem para a agricultura. Mas a água salgada desempenha um papel importante para o ecossistema, afirmam os comunitários.

Até agora, a empresa chilena SQM e a empresa estadunidense Albermarle extraem o lítio no Salar de Atacama. O recente acordo entre a estatal Codelco e SQM ampliará a cota de extração de lítio até 2060, com uma série de compromissos no papel – denominado Estratégia Nacional do Lítio -, tanto ambientais como com as comunidades.

Leia também | Elon Musk, Golpe de Estado e Lítio: entenda luta do povo boliviano pela soberania nacional

Luis Buston, secretário da comunidade Lickanantay de Toconao – onde habitam pelo menos 800 pessoas -, afirma que os recursos hídricos diminuíram 40%. “As empresas não foram capazes atualmente de precisar o impacto hídrico do Salar de Atacama, portanto desconhecemos de que maneira o vão explorar até 2060 – no caso do acordo SQM e Codelco. Por sua vez, o Estado não nos consulta nem nos considera”.

Indica que a água vem da cordilheira e foi ancestralmente a fonte de vida para as comunidades. “Temos lençol freático e pântanos que nos permitem existir como povos coletores, pastores e agricultores. Em consequência, ao carecer de água somos os mais afetados”, assevera.

Foto: Rodrigo Ramos Bañados

Futuro do Salar de Atacama

Manuel Tejerina, encarregado ambiental do oásis de Camar – onde vivem não mais de cem pessoas -, afirma que chegou em 1989 ao povoado e, por conseguinte, foi testemunha das mudanças, especialmente quando se instalou a mineração. “Nossa intenção é ficar aqui, continuar nossa vida, mas instalou-se a incerteza quanto ao futuro. Não sabemos o que acontecerá aqui em 50 anos. Não estou contra o progresso para o país, mas sejamos consequentes e o Salar de Atacama está sendo afetado. É lamentável ver como ocorreram os danos. Mudou a vegetação e a fauna das lagunas. Há um discurso barato que diz que o salar é de todos e todas; não senhores, aqui há demandas territoriais ancestrais. Estamos unidos para lutar e frear o dano ao meio ambiente”, afirma.

“Nossos adultos mais velhos, que conhecem a terra, estão tristes. Basta olhar o tamanho das lagunas que agora parecem charcos e a reduzida quantidade de flamingos. Não queremos transformar-nos nos primeiros deslocados pela indústria do Lítio”, afirma com veemência Miriam Cruz, também da comunidade de Camar.

Foto: Rodrigo Ramos Bañados

No território de Atacama ou Lickanantay, o solstício de inverno ocorre em 24 de junho, dia que marca o Ano Novo Indígena, ou quando a terra começava a esfriar. Os antepassados se perguntavam como crescia uma semente ou como baixava o rio ou a relação da colheita e da lua ou quando os flamingos da Laguna Chaxa faziam seus ninhos. Toda esta sabedoria ancestral que se obteve com a observação do território e do céu, hoje está em perigo de extinção pelo engendro extrativista.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

LEIA tAMBÉM

Retrocesso inadmissível” especialistas rebatem Milei após classificação de PcDs como “idiotas”
“Retrocesso inadmissível”: especialistas rebatem Milei após classificação de PcDs como “idiotas”
Libertinagem econômica de Milei enriquece corporações enquanto argentinos passam fome
Libertinagem econômica de Milei enriquece corporações enquanto argentinos passam fome
CIA, terrorismo de estado e o rastro de crimes dos EUA em Porto Rico
CIA, terrorismo de estado e o rastro de crimes dos EUA em Porto Rico
Pacto pela Terra e pela Vida Colômbia assina acordo histórico em prol da reforma agrária (1)
"Pacto pela Terra e pela Vida": Colômbia assina acordo histórico em prol da reforma agrária