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Hermann Escarrá (Foto: Assembleia Nacionalcda Venezuela)

Constitucionalista da Venezuela: “Todos os partidos têm as atas. Por que González não divulga?”

Especialista Hermann Escarrá explica leis que regem as eleições na Venezuela e desmascara alegação de fraude criada pela extrema-direita sobre as atas
Geraldina Colotti
Resumen LatinoAmericano
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Em relação às eleições presidenciais na Venezuela, às discussões sobre as atas eleitorais e aos protestos que se seguiram a nível nacional e internacional, provocados pela extrema-direita, entrevistamos o constitucionalista Hermann Escarrá, uma autoridade no assunto.

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Geraldina Colotti | Muito se tem especulado sobre os resultados das eleições presidenciais na Venezuela. Considerando o profundo conhecimento que o senhor tem da Europa, poderia explicar a um não venezuelano qual é o marco legal, político e constitucional no qual se enraizaram essas especulações?

Hermann Escarrá | O sistema eleito venezuelano é considerado um dos mais avançados do mundo, tanto no sentido tecnológico quanto pelo sistema de garantias que oferece: pela Constituição, pela Lei Orgânica do Poder Eleitoral e pela Lei Orgânica que regulamenta os processos eleitorais.

Cabe lembrar que na Venezuela existem 5 poderes. A noção clássica que deriva do pensamento de Montesquieu e da Revolução Francesa, em particular da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, contempla o Poder Legislativo, Executivo e Judicial. Nossa constituição acrescenta o Poder Moral, retomando a decisão de Simón Bolívar de incluí-lo no projeto de constituição da Bolívia, após tê-lo previsto no Discurso de Angostura, relativo ao Poder Eleitoral.

Em 1999, quando a Assembleia Nacional Constituinte redigiu o texto da Carta Magna, decidiu-se contemplar a ideia dos 5 poderes: somando aos três poderes “clássicos” (Legislativo, Executivo e Judicial), o Poder Moral, ou Cidadão, e o Poder Eleitoral; atualizando assim os sistemas para garantir a democracia e os direitos fundamentais em todos os aspectos.

Outro aspecto que deve ser ressaltado para aqueles que se referem ao pensamento europeu é que, além da existência de um Poder Eleitoral, temos uma normativa eleitoral contemplada pela própria constituição: a ponto de que, para resolver uma disputa de caráter eleitoral, prevê-se a possibilidade de apelar à máxima instância institucional, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ); na Sala Eleitoral, na forma prevista no artigo 297 da Constituição. O Poder Eleitoral, e especificamente a Sala Eleitoral, é então regulamentado tanto no TSJ quanto no âmbito constitucional.

Isso deixa claro que o Poder Eleitoral não é um ministério, não é uma estrutura de governo nem um escritório. Não é um serviço público regulamentado pelo executivo, é um poder autônomo, independente, assim como são independentes os demais poderes, o Legislativo, o Judicial, o Executivo e o Poder Cidadão.

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E quais são suas prerrogativas?

A função do Poder Eleitoral, além de organizar os votos, é garantir a estabilidade democrática das instituições. Trata-se de um sistema completo e amplo de garantias, que serve para proteger, por meio de diferentes formas jurídicas, os direitos políticos, em particular o direito de sufrágio e participação. E aqui é necessário ressaltar outro aspecto fundamental: a democracia venezuelana, nascida da Constituição de 1999, transita do conceito de democracia representativa para o de democracia participativa e “protagonista”, como consta no texto constitucional.

Diz-se também que a soberania reside intransferivelmente no povo, que a exerce diretamente na forma prevista pela Constituição e pela lei, e indiretamente mediante o sufrágio, por meio dos órgãos do poder público. Os órgãos do Estado são uma emanação da soberania popular à qual estão subordinados.

A isso deve-se acrescentar que em nosso sistema de garantias têm especial importância os padrões estabelecidos a nível internacional. Assim, por exemplo, devem ser avaliadas as garantias jurídicas, que são observadas segundo os parâmetros estabelecidos pelas normas internacionais em matéria de direitos civis e políticos; deve-se avaliar a governabilidade e a democracia com base nos padrões estabelecidos em diversos documentos aprovados, por exemplo, pelas Nações Unidas ou outras instituições designadas. E assim ocorre com a garantia dos cidadãos de exercerem seu voto de maneira secreta, universal e direta, como temos feito na Venezuela desde 1947.

O Estado venezuelano é um Estado pleno de direito, inspirado na primeira carta constitucional aprovada pelo povo, em 1811, e que inclui numerosos mecanismos de participação popular. Por isso, nosso presidente Nicolás Maduro, reeleito em 28 de julho, antes das eleições presidenciais percorreu o país para cumprir outro de seus deveres constitucionais, o de Presidente da Comissão de Participação. Nesse contexto, ele recolheu as propostas de todos os cidadãos e cidadãs, entendidos não só no sentido jurídico, mas no de todos e todas as habitantes, de todas as idades e procedências, inclusive crianças e menores, e as transmitiu à Assembleia Nacional Constituinte, onde se pronuncia e se exerce o poder originário, o poder popular. Enfim, devemos conhecer nossa Constituição – a Lei Orgânica do TSJ, a Lei Orgânica do Poder Eleitoral e os processos eleitorais – para ter uma visão exata do que ocorreu.

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O que aconteceu então?

O certo é que um setor violento da ultradireita denunciou uma suposta fraude, mas sem apresentar provas. Quando se levanta um escândalo dessa magnitude sobre as atas eleitorais, quem faz uma acusação semelhante deve apresentar as provas: provas certas, não manipuladas, e deve apresentá-las nos lugares correspondentes. Não só isso não aconteceu, como também ocorreram gravíssimos atos de violência contra pessoas e instituições públicas como hospitais e escolas, que eclodiram na noite do dia 28 e nos dias seguintes. Mas, enquanto isso, é necessário dizer que, na Venezuela, quando o CNE, como ocorreu em 28 de julho e em todas as vezes anteriores, certifica a irreversibilidade do resultado com 80% dos votos apurados, declara-se o vencedor. Qualquer que seja o percentual que se registre na recontagem final, não muda o resultado que deu a vitória a Nicolás Maduro.

Partido de González não entregou atas

Por que parece imprescindível pedir ao CNE que apresente as atas e por que isso ainda não ocorreu?

Como dissemos, cabe a quem denuncia fraude apresentar provas de suas acusações. A isso se deve adicionar que a resposta da Sala Eleitoral, emitida após ouvir os 9 candidatos presentes (porque o segundo colocado, Edmundo González, da Plataforma Unitária Democrática – PUD – não compareceu), destacou elementos graves, da seguinte forma: “Todos os integrantes da aliança PUD, que apoiaram Edmundo González Urrutia, não entregaram nenhum material, alegando que não possuíam nenhum tipo de documentação relacionada a este processo eleitoral. Portanto, não têm atas de votação nem testemunhas de votação. Também afirmaram que não participaram do transporte do material eleitoral, informando inclusive que a organização Súmate fazia parte da equipe de assessores técnicos da PUD”. Esses partidos que apoiaram Edmundo González também disseram desconhecer quem inseriu as supostas atas e boletins na página web, a qual foi denunciada por graves irregularidades.

Vale também notar o que prescreve o artigo 155 da Lei Orgânica do Poder Eleitoral: “O CNE ordenará a publicação dos resultados dos processos eleitorais na Gazeta eleitoral dentro dos 30 dias seguintes à proclamação dos candidatos”. Daí duas conclusões: é imprescindível publicar os resultados, não as atas. Provavelmente isso se deve ao fato de que as atas estão nas mãos de todos os partidos, que as receberam em cada mesa eleitoral ao final da votação, e que tiveram que ratificá-las. Cada partido é capaz de mostrá-las e torná-las públicas. Por isso, ao se apresentar na Sala Eleitoral, o presidente Maduro declarou que poderia apresentar todas as atas de todos os partidos que o apoiaram.

Obviamente, não posso saber qual será a resposta jurídica da Sala Eleitoral ao recurso, mas o que é certo é o que diz a lei sobre os resultados e o prazo para apresentá-los por parte do CNE. Então, por que essa campanha sobre a apresentação das atas, se todos os partidos as têm, uma campanha lançada desafiando as normas e direcionada ao exterior? E, por outro lado, o regulamento geral da Lei Orgânica do processo eleitoral estabelece claramente a quem e como devem ser entregues as atas: aos fiscais de mesa, aos representantes de partidos e aos candidatos, que devem ter cópias. Por que o senhor González, que denuncia uma suposta fraude, não apresenta as atas aos órgãos competentes, encerrando assim todas as dúvidas e a violência que desencadeou?

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Até mesmo alguns países latino-americanos progressistas, que não são hostis à Venezuela, insistem na publicação das atas e até propõem uma comissão internacional de verificação. O que está acontecendo e por que Colômbia e Brasil se comportam assim?

A proposta de uma comissão internacional de verificação me parece uma iniciativa estranha, considerando os princípios que têm regido e continuam governando a República Bolivariana da Venezuela, a saber, os de autodeterminação e não intervenção imperialista. Além disso, uma coisa é acompanhar processos eleitorais e outra é intervir nos assuntos internos de um país, quando se sabe que existem órgãos competentes e autorizados para esse tipo de verificação e que, como disse antes, agora estão em pleno funcionamento.

Quais cenários se abrem agora que o TSJ entrou em cena?

É preciso esperar a decisão final do máximo tribunal da República. Ao recorrer à máxima instância, o Presidente retirou argumentos do caos e da criminalidade para trazer todos os elementos novamente ao estado de direito, ao marco constitucional, para que as contingências possam ser resolvidas com razão e com base nas provas e documentos apresentados pelos 9 ex-candidatos que representam 38 partidos. A decisão do TSJ, seu compromisso com o povo na aplicação da justiça, terá caráter probatório e definitivo.

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O número de votos obtidos pelo segundo candidato, o candidato de extrema direita Edmundo González, indica que a oposição ainda tem uma força no país. Como se explica isso e o que pode acontecer considerando o caráter golpista dessa extrema-direita venezuelana?

Diante do caráter golpista da extrema-direita, o importante é ter conseguido conter sua violência. Queriam provocar uma insurreição armada contra os poderes do Estado, por isso fizeram um apelo às Forças Armadas Nacionais Bolivarianas, mas sem resultados: porque a Venezuela quer paz e justiça social, quer desenvolver sua economia, sua política, sua cultura, seus direitos em um ambiente de convivência, regulado pela constituição na qual todos acreditamos. Por esse motivo, conseguimos e continuaremos desativando as tentativas de quem quer destruir a Constituição organizando, como ocorreu agora, ataques cibernéticos e criminosos.

Venezuela não é inimiga

A direita internacional tenta ressuscitar o Grupo de Lima. Você acredita que existe perigo de agressão imperialista?

Sempre existe um perigo iminente de agressão imperialista, muito evidente desde que Obama definiu a Venezuela como uma ameaça incomum e extraordinária à segurança dos Estados Unidos e iniciou a imposição de medidas coercitivas unilaterais ilegais, que causaram graves danos ao país e resultaram em múltiplos ataques. É uma possibilidade que sempre temos presente e que, evidentemente, não desejamos. Estamos pelo encontro e pelo diálogo, por objetivos comuns que garantam a segurança a nível internacional e também a atividade comercial. A Venezuela não é inimiga do povo estadunidense, mas tem diferenças radicais com quem o governa e que, em última análise, não é um verdadeiro governo constitucional, uma vez que a estrutura profunda do executivo é dirigida por empresas e corporações internacionais.

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Maduro disse que se as tentativas de golpe persistirem, ele poderia aprofundar a revolução bolivariana. Como você avalia essa hipótese?

Maduro é um estadista que se preocupa com a paz e o diálogo, mas acima de tudo deve cumprir suas obrigações constitucionais, a primeira das quais é evitar um golpe de Estado. E a melhor maneira de fazer isso é aprofundando os objetivos da revolução bolivariana: fortalecimento do Estado de direito, do Estado social, máxima proteção das liberdades e dos direitos humanos, garantia de uma convivência pacífica e plena com base nos direitos políticos e sociais e no pluralismo estabelecido pela Constituição.

Como você acha que os resultados das eleições americanas vão afetar e como avalia a posição adotada pelos Estados Unidos?

Quer os democratas ganhem com Kamala Harris ou os republicanos com Donald Trump, não haverá muitas diferenças na política externa dos Estados Unidos. Mas uma coisa é certa: eles terão que lidar, por um lado, com nossa diplomacia de paz combinada com a justiça social e, por outro, com o fato de que possuímos as maiores reservas de petróleo certificadas do mundo, com as quais queremos comercializar de forma plural e não monopólica. Com base nisso, se quiserem intensificar o comércio de petróleo, podemos chegar a um acordo.

Desde o sequestro de Alex Saab até os assassinatos seletivos e o genocídio dos palestinos, tudo indica que o imperialismo está ultrapassando os limites da democracia burguesa, violando suas próprias leis para normalizar o horror. Como constitucionalista, como você analisa essa tendência?

Esse tipo de graves violações, assassinatos e distorções das normas que regulam a vida das nações indicam que um ciclo do imperialismo chegou ao fim. Se olharmos para a história dos impérios, notamos os sintomas que aparecem no final de um ciclo, embora a análise não possa ser entendida de forma mecânica. No caso dos Estados Unidos, podemos enumerar alguns desses sintomas graves, sinal de uma crise estrutural do modelo: desemprego grave, uma moeda que não tem respaldo concreto, um déficit enorme, uma inflação crescente, muitas frentes abertas desnecessariamente a nível militar, que produzem instabilidade a nível internacional, mas também interno, e muitos outros aspectos que indicam uma grave crise de hegemonia.

Os Estados Unidos estão no final de um ciclo. Deveriam se reinventar, buscar o diálogo com o novo mundo multipolar, multicêntrico, plural em nível ideológico, que está nascendo. Deveriam respeitar a justiça internacional e se dedicar à paz mundial.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Geraldina Colotti

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