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Pessoas caminham em rua alagada no bairro Humaitá, em Porto Alegre (RS) após chuvas e alagamentos em julho de 2024 (Foto: Bruno Peres / Agência Brasil)

Dívida ecológica, bens comuns e a construção de um novo pacto verde para o Sul Global

Dívida ecológica acumulada pelos países do Norte global deve ser reconhecida e compensada, pois reflete um histórico de exploração desigual dos recursos naturais do Sul Global
Nicolás Forlani
Ecología Política
Río Cuarto (Argentina)

Tradução:

Ana Corbisier

O presente artigo concentra sua reflexão em uma interrogação medular do século XXI: como desconstruir/reconstruir a atual relação sociedade-natureza capitalista para passar de uma formação social predatória de bens comuns e corpos a uma territorialidade baseada no bem viver dos povos? De uma perspectiva situada no Sul global, consideramos que a reversão das desigualdades ambientais constitui um ponto nevrálgico em busca das oportunidades de desenvolvimento para os países emergentes ao mesmo tempo em que um fator decisivo para a sustentabilidade ecológica do planeta.

Abordaremos aqui as principais implicações e desafios que a crise ecológica acarreta para os países periféricos atendendo a um duplo registro: a) os delineamentos gerais de política exterior a encarar contemplando a dívida ecológica global e as disputas em torno ao uso e à apropriação dos bens comuns estratégicos, e b) as experiências socioambientais emergentes nos territórios como fundamento para uma guinada ecológica.

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A questão ambiental, isto é, a relação sociedade-natureza vem sendo motivo de aguda reflexão pelo menos desde a década de 1970.[1] Dada a degradação crescente dos territórios, inerente a um metabolismo socioeconômico que se viu exacerbado ao calor do caráter predatório do capitalismo em sua fase neoliberal (Boron, 2004), uma interrogação se impõe face à habitabilidade do planeta por parte da espécie humana: como desconstruir/reconstruir a atual relação sociedade-natureza capitalista para passar de uma formação societal predatória de bens comuns e corpos a uma territorialidade baseada no bem viver dos povos?

De uma perspectiva ecológica crítica, toda tentativa de elucidar marcos interpretativos que permitam projetar ou alcançar agendas transformadoras que habilitem a sustentabilidade democrática de nosso ecossistema maior deve reparar no caráter historicamente desigual e na incidência diferencial dos povos no que se refere ao acesso, controle e distribuição dos bens comuns. Em outras palavras, projetar agendas emancipadoras ante a encruzilhada civilizatória inscrita na crise ecológica global requer assumir uma leitura situada no Sul global interessada na reversão das desigualdades.

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Com base em tais premissas, nos propomos a avançar na reflexão em torno das principais implicações e desafios que a crise ecológica traz para os países periféricos atendendo a um duplo registro: a) os delineamentos gerais de política exterior a encarar contemplando a dívida ecológica global e as disputas em torno ao uso e à apropriação dos bens comuns estratégicos, e b) a importância de valorizar as experiências socioambientais emergentes nos territórios como fundamento para uma guinada ecológica.

Atender a este duplo registro na busca global de um novo pacto verde permitirá que as políticas que em consequência derivem, não reproduzam as assimetrias regionais e, talvez, o que é mais importante, que as soluções para as problemáticas ambientais planetárias tenham como protagonistas aqueles que de baixo e das periferias vêm lutando por um mundo com justiça social e ambiental.

Uma estratégia comum: dívida ecológica e bens comuns

A reversão das desigualdades ambientais globais constitui um aspecto central em busca das oportunidades de desenvolvimento para os países do Sul Global ao mesmo tempo que um fator decisivo para a sustentabilidade ecológica do planeta. Como abordamos em outra oportunidade,[2] o elevado metabolismo social (consumo de energia e matéria) das sociedades desenvolvidas se fundamenta em um assimétrico intercâmbio ecológico em que historicamente os países periféricos registram uma constante perda de bens comuns.

Isto é, existe um fluxo permanente de recursos naturais do Sul Global para o Norte global (Infante-Amate et al., 2017), assim como também e de maneira indireta de terra, água, energia e trabalho associado, em que os prejuízos socioambientais das lógicas extrativas não são contemplados no preço das exportações. Mas, ao mesmo tempo, isso acontece na configuração de um sistema mundo em que os países desenvolvidos garantem uma posse gratuita dos sumidouros de dióxido de carbono do planeta (oceanos, vegetação e atmosfera) em detrimento dos países periféricos (Martínez Alier, 2000).

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Medidas de reparação desta premissa histórica-relacional que submete os países do Sul global incluem uma política exterior comum para o Sul que coloque como assunto sustentado nos fóruns e organismos internacionais a demanda de troca de suas dívidas financeiras pela dívida ecológica de que são credores.

E mais, de um enfoque que reconheça o fundo distributivo-conflitivo dos serviços e danos ambientais inerente aos vigentes padrões globais de acumulação, a introdução da exigência da dívida ecológica “… poderá dar um grande impulso a partir do Sul para que o Norte dirija sua economia em uma direção mais sustentável que a atual” (Martínez Alier, 2000: 110).

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Uma referência indispensável de problematização a partir das periferias com relação ao tópico mencionado é o acordo resultante da Conferência dos Povos em Cochabamba em 2010. Baseado na denúncia da pegada ecológica superlativa dos países centrais (“os países mais ricos têm uma pegada ecológica cinco vezes maior do que o planeta é capaz de suportar”), o acordo mencionado inscreve a demanda por recursos econômicos compensatórios para os países do Sul em uma manifestação maior, tendente a uma justiça restaurativa que permita “forjar um novo sistema que restabeleça a harmonia com a natureza e entre os seres humanos” (Acordo dos Povos, 2010).

Em um mundo que registra disparidades significativas entre as nações sobre as emissões de gases de efeito estufa produzidas,[3] as consequências de curto, médio e longo prazo também são díspares. Os países do Sul global estarão particularmente expostos, dadas suas condições de vulnerabilidade histórico-estruturais, razão pela qual é razoável exigir que os recursos monetários das dívidas externas nacionais sejam destinados a cobrir pelo menos os custos das catástrofes socioambientais projetadas.[4]

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Mas a exigência da dívida ecológica não é o único assunto de política exterior que requer uma vontade política comum. Também constitui um campo propício de articulações Sul-Sul a determinação dos bens comuns frente à disputa geopolítica pelos recursos naturais estratégicos. Acompanhando Bruckmann (2012), o aproveitamento soberano dos recursos naturais estratégicos constitui um ponto nevrálgico com relação às possibilidades de inovações científico-tecnológicas, à sustentabilidade do ambiente e ao próprio futuro da civilização humana.[5]

As possibilidades de fazer um uso soberano de recursos energéticos, minerais estratégicos, reservatórios de água, fontes de biodiversidade, etc., com que contam os países periféricos dependerão da capacidade de forjar processos de integração regional (na América Latina, por exemplo, recuperando a centralidade da União de Nações Sul-americanas (Unasul), assim como fortalecendo a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, (CELAC). Urge, em tal sentido, que os países historicamente despojados de suas riquezas naturais avancem de forma articulada na criação de instrumentos de análise sobre seus bens comuns para uma gestão mais eficiente deles.

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Ampliando as diretrizes de Bruckmann (2012) sobre os minerais para o conjunto dos recursos naturais estratégicos, é necessário gerar inventários regionais das reservas estimadas, das reservas provadas e das zonas de extração. Também é importante construir modelos analíticos para elaborar taxas de esgotamento ou drenagem de recursos, assim como desenvolver instrumentos para medir o impacto ambiental e social da extração e da produção, a fim de calcular taxas de compensação e estratégias de recuperação ambiental. Por sua vez, é indispensável fixar padrões mínimos e comuns de proteção e cuidado ambiental com relação às atividades produtivas para evitar que a desregulamentação ambiental constitua uma variável na competição intrarregional por atrair investimentos (Grimson, 2022).

Experiências socioambientais para uma guinada ecológica

As responsabilidades diferenciadas entre as distintas nações em relação à crise ecológica global não eximem os países do Sul da implementação de iniciativas tendentes a propiciar uma guinada ecológica em suas matrizes produtivas.[6] No entanto até o momento o discurso hegemônico contempla o ambiental mais como uma variável que soma dificuldades em termos de competitividade dos processos produtivos do que como pilar fundamental para o desenvolvimento.

Não obstante, ao calor da expansão de projetos extrativos inerentes aos padrões globais de acumulação por despojamento, vem se constituindo um campo de experiências comum nos povos do Sul que mostra resistências e habilita iniciativas transformadoras. Nos referimos à conformação de um ecologismo ou ambientalismo popular (Acselard, 2010) cujas demandas em termos de justiça ambiental inserem na agenda pública a preocupação ambiental como um assunto comum e oferecem alternativas produtivas de maior harmonia no vínculo sociedade-natureza.

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Longe de conceber o conflito socioambiental em ascenso como uma anomalia a erradicar, visualizamos nela a oportunidade de ampliar o horizonte democrático de nossas sociedades. Se se concebe a democratização como um processo de envolvimento crescente da cidadania nos assuntos comuns (García Linera, 2004), o ambientalismo popular constitui uma expressão singular de busca de reconhecimento por parte de seus atores e atrizes mobilizados, diríamos no léxico de Rancière (1996), como sujeitos parlantes, isto é, como sujeitos políticos com direito a participar da definição das relações sociedade-natureza.

Conclusões

A transição no Sul Global para formações socioterritoriais mais inclusivas, igualitárias e harmônicas com os entornos naturais requer de parte das distintas Administrações e Governos instituir espaços públicos ou arenas deliberativas em que as diversas linguagens de valorização da natureza possam expressar-se. Principalmente quando os modelos produtivos, longe de serem acontecimentos históricos, são expressões materiais de tramas discursivas que disputam a reprodução ou bem a transformação da realidade.

Com relação a isto, vale a pena reiterar a múltipla escala de semelhante desafio. Daí que convenha ter presente, entre outras implicações para as experiências políticas que vêm adotando um discurso mais ecologista (como os Governos do Chile e da Colômbia sob as presidências de Boric e Petro respectivamente), a necessidade de alcançar acordos regionais para modificar as correlações de força globais em que afinal se baseiam as desigualdades ambientais e são fixados os limites e as oportunidades de desenvolvimento dos povos.

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Neste quadro, resta ver se a priori a maior convergência político-ideológica que atravessa a região latino-americana com a nova onda de Governos progressistas se traduz (ou não) em um esforço comum por colocar os problemas ambientais no centro dos debates públicos. Enquanto isso, a crescente participação popular na demanda de democratizar as políticas que definem os usos de nossos bens comuns se erige como base fundante de um novo pacto verde com sentido transformador.

Referências

Acordo dos Povos (Cochabamba, Bolívia. 22 de abril de 2010). Kaniwá. Disponível em: https://www.uv.mx/blogs/kaniwa/2010/05/11/acuerdo-de-los-povos-cochabamba-bolivia-22-de-abril-de-2010/, consultado em 16 de dezembro de 2022.

Acselard, H., 2010. “Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental”. Estud. av., 68 (24).

Boron, A., 2004. “Hegemonia e imperialismo no sistema internacional”. En: A. Boron (comp.), Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires, Clacso.

Bruckmann, M., 2012. Recursos naturais e a geopolítica da integração sul-americana. Quito, IAEN.

Castro, A., 2018. “Os atuais desafios da questão ambiental”. Pensamiento Propio, 46, pp. 137-160.

Frohmann, A., y X. Olmos, 2013. Marca de carbono, exportações e estratégias empresariais frente à mudança climática. Santiago do Chile, CEPAL.

García Linera, Á., 2014. Democracia Estado Nação. La Paz, Vice-presidência do Estado Plurinacional.

Goñi, R., y F. Goin, 2006. O desenvolvimento sustentável em tempos interessantes. Contextos e indicadores para a Argentina. Buenos Aires, Scalabrini Ortiz.

Grimson, A. (coord.), 2022. “Argentina Futura. Um horizonte desejável e possível”. Buenos Aires, Chefia do Gabinete de Ministros. Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/2021/03/argentina-futura-horizonte-deseable-posible-julio-2022.pdf, consultado em 16 de dezembro de 2022.

Martínez Alier, J., 2000. “A dívida ecológica”. Ecologia Política, 19, pp. 105-110.

Rancière, J. J., 1996. O desacordo. Buenos Aires, Nueva Visión.

[1] Em termos de Goñi e Goin (2006: 99-100), dois informes antagônicos polarizaram o debate em torno à questão ecológica na década de 1970: “… o do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), auspiciado pelo Clube de Roma, Os limites do crescimento, e aquele elaborado pela Fundação Bariloche, entre os anos 1972 e 1976, Catástrofe ou nova sociedade? Modelo mundial latino-americano”. O primeiro dos informes antecipou um cenário global de colapso conforme a previsão de um crescimento populacional contrastado por recursos naturais finitos (esclarecemos que o informe projetou padrões de consumo homogêneos em nível global, ou seja, sem reconhecer as assimetrias regionais). Enquanto o segundo teve como finalidade evidenciar que o futuro da humanidade e a habitabilidade no planeta não dependem de barreiras físicas insuperáveis, e sim de profundas transformações políticas e sociais em favor de uma maior igualdade entre as regiões e no interior de cada país.

[2] Contribuição de conteúdos para Grimson, 2022.

[3] Para aprofundar, veja-se Frohmann e Olmos, 2013.

[4] Nesta linha, o país caribenho Barbados vem desenvolvendo uma experiência significativa em termos de apresentar aos organismos internacionais de crédito a necessidade de uma atuação compartilhada que permita reduzir a dívida externa soberana a fim de dispor de recursos econômicos para implementar políticas de mitigação e adaptação ante uma mudança climática de que como país são principalmente vítimas, dados os desastres ambientais.

[5] Ampliamos: “A apropriação da natureza não se refere unicamente à apropriação de matérias primas […], mas também à capacidade de produzir conhecimento e desenvolvimento científico e tecnológico a partir de uma maior compreensão da matéria, da vida, dos ecossistemas e da biogenética. As novas ciências […] são fruto deste conhecimento crescente da natureza e do cosmos” (Bruckmann, 2012: 15).

[6] Concordamos com Castro (2018: 146) em que: “Um acordo mundial de redução de gases de efeito estufa convém sobremaneira aos países latino-americanos. A menor emissão destes gases permite reduzir os impactos e as consequências que provocam em nossa população e em nosso território. Devemos reconhecer que, em termos globais, somos receptores dos impactos do aquecimento global sem sermos responsáveis principais por sua geração. A melhor maneira de cuidar de nosso território e de protegê-lo da mudança climática é um acordo mundial que reduza significativamente a emissão dos gases de efeito estufa, tanto nos países desenvolvidos como nos países chamados emergentes”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Nicolás Forlani Bolsista pós-doutor do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (ISTE-Conicet). E-mail: forlani.nicolas@gmail.com.

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