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ToggleEm 2021, a Eletrobras registrou um lucro líquido de R$ 5,7 bilhões; o balanço foi divulgado no último dia 18. O resultado foi 11% menor em relação a 2020, quando fechou em R$ 6,4 bi. Já a receita bruta da companhia aumentou em 26% na mesma comparação, saltando de R$ 35 bi, em 2020, para R$ 44 bi, ao final do último ano.
Apesar do crescimento bruto e dos bilhões em lucro líquido, a Eletrobras sofre uma corrida contra o tempo para ser privatizada. O governo Bolsonaro, com o Programa Nacional de Desestatização, alega que a companhia não possui recursos para investimentos e necessita de capital privado. Além dos últimos dois anos, a conta fechou no verde também em 2018, com R$ 13,3 bilhões, e em 2019, com R$ 10,7 bilhões de lucro líquido.
No mês passado, os atuais acionistas aprovaram a operação que, se concluída, vai passar de 72% para 45% a participação da União na organização e disponibilizar as demais ações na Bolsa de Valores, no Brasil e nos Estados Unidos. Desde 2019, o Congresso discute propostas semelhantes, sempre com forte apoio da mídia corporativista. Hoje, o que se percebe é nítida pressa em finalizar a venda, ainda no segundo trimestre, pois a campanha eleitoral pode afastar o interesse do mercado. A sanha não se dá por acaso.
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A Eletrobras é a maior geradora de energia elétrica da América Latina e responsável pela luz em três de cada dez residências no Brasil. Mais de 70% da eletricidade consumida no país vem de usinas hidrelétricas e a Eletrobras conta ao todo com 49 delas — além de 10 termelétricas, 43 centrais eólicas e duas termonucleares.
Conhecer detalhes do potencial da Eletrobras torna fácil entender porque é tão visada pelo lobby da privatização. Por outro lado, é possível prever os reflexos que o país deve esperar pela subversão de uma empresa profundamente estratégica sob uma lógica que prioriza o lucro. Duas regiões nos ajudam nessa tarefa: o estado do Amapá e a Região Metropolitana de Buenos Aires, na Argentina.
Nesta matéria, abordamos o apagão ocorrido na Argentina em janeiro deste ano. Confira também Aviso prévio: Caos no Amapá revela o que esperar de privatização da Eletrobras, sobre o caos ocorrido no estado brasileiro em novembro de 2020 e o que episódio nos adverte sobre a mudança no modelo de negócio da estatal.
Buenos Aires, Edenor e Edesur
Em janeiro deste ano, as regiões norte e sul da Área Metropolitana de Buenos Aires sofreram cortes de energia elétrica por aproximadamente uma semana. Devido a picos de temperatura que chegaram a 40ºC, o sistema de abastecimento ficou sobrecarregado e não suportou a demanda. Segundo a Entidade Nacional de Regulação da Eletricidade (ENRE) do país, mais de 700 mil pessoas ficaram sem luz.
BREAKING: Buenos Aires, Argentina ?? falls into darkness as intense heat pushes infrastructure beyond limits.
This is one of the hottest temperatures in recorded history for the city. Unfortunately, this is only the beginning of a brutal & historic heatwave in South America. pic.twitter.com/OUi1CQ1gAY— Scott Duncan (@ScottDuncanWX) January 11, 2022
Maria José Haro Sly, doutoranda em Sociologia na Universidade de Johns Hopkins, nos EUA, explica que as corporações responsáveis pelo fornecimento nas áreas afetadas, Edenor e Edesur, são privadas e que os problemas remontam à década de 1990, quando foram vendidas: “além da onda de calor, os blecautes ocorrem, pois não houve investimentos para reforçar a distribuição nos últimos anos”. “Não é nada que seja inevitável e não possa ser gerido”, complementa.
As corporações em questão foram multadas pela queda no abastecimento e alegaram que não puderam melhorar a estrutura por causa da baixa rentabilidade, que teria sido afetada, já que o atual governo, de Alberto Fernández, não permitiu aumento nas tarifas dos consumidores. “A realidade é que, estruturalmente, não parece estar na vocação destas empresas garantir um serviço de qualidade”, observa Maria.
Se há vocação, ela se resume a captar o máximo de renda, lucrar, e então distribuir os dividendos entre acionistas, um modelo consequentemente focado em minimizar despesas, aproveitar os subsídios estatais e investir o mínimo possível para não perder a concessão. Segundo Maria, “são contratos em dólar com cláusulas muito onerosas e esquemas que garantem que as empresas não terão nenhum risco”.
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Durante o governo de Mauricio Macri, entre 2015 e 2019, explica Maria, a população sofreu com grande aumento nas tarifas, o que gerou altos lucros às prestadoras. Mesmo assim, não houve investimentos na rede de distribuição: “à primeira vista (sobre o macrismo), a situação parece ter melhorado, mas na realidade, o que houve foi uma enorme recessão econômica e, portanto, menos consumo de energia”, explica.
Além disso, para muitos cidadãos era impossível pagar pelo recurso. Um reflexo de como a queda na demanda mascarou os problemas de falta de investimento é que, com a recuperação econômica e a reativação industrial a partir do governo Fernández — a Argentina cresceu 10% em 2021 após três anos de fortes quedas—, as falhas no sistema de distribuição tornaram-se novamente evidentes.
Até 2015, os investimentos necessários para evitar cortes e interrupções foram feitos pelo Estado. A administração de Cristina Kirchner (2007 a 2015) reforçou linhas, transformadores e eventualmente geradores, criando uma infraestrutura que praticamente unificou todo o sistema nacional. “Em contraste, não foi construído um único quilômetro de linha de alta tensão” pelas empresas privadas, afirma Maria.
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Quando o complexo de produção, transporte e distribuição da eletricidade argentina foi privatizado na década de 1990, os financiamentos passaram a ser dolarizados, sujeitando o valor da conta de luz a flutuações e altas: “quando há desvalorização, há pressão para que seja transferida às tarifas pagas pelos consumidores, ou para que o Estado compense a diferença com subsídios”, comenta Maria. No sistema privatizado, ou paga o povo, ou o governo. Às empresas, cabe o lucro.
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Mesmo com aumentos na tarifa durante governo de Macri e altos lucros às empresas, não houve investimentos no sistema de distribuição
Nos Estados Unidos, no Canadá, na Noruega e na Suécia, a totalidade ou a maior parte da produção de energia hidráulica é mantida por estatais. De acordo com Fabíola Antezana, representante do Coletivo Nacional dos Eletricitários, “nenhum outro país que tenha uma característica como a nossa fez algo semelhante, ao contrário, mantém sempre na mão do Estado”. Uma pesquisa de 2018, publicada pelo The Guardian, revelou que 77% da população britânica desejava o retorno da administração da eletricidade para o setor público, por observarem que a qualidade foi colocada em segundo plano em nome do lucro.
Aumento na tarifa
No Brasil, enquanto hidrelétricas de propriedade privada cobram a cada 1.000 kWh uma média de R$ 250, a Eletrobras recebe R$ 65,00 dos consumidores. Desde as operações de desestatização promovidas pelo governo de Fernando Henrique, foram prometidas melhorias nos serviços e preços mais baixos. Na prática, houve aumento da tarifa acima da inflação e o maior racionamento de energia da história mundial em tempos de paz, em 2001, quando foi cortada 25% da demanda.
Com a Eletrobras privatizada, especialistas apontam que o valor da conta de luz deve aumentar em 25%, apesar de, Fabíola menciona, as normas da desestatização preverem recursos para minimizar esse impacto. A população verá seu poder de compra minguar de duas formas: pagando mais tanto pela energia, quanto pelos produtos que consome, encarecidos uma vez que a base produtiva também pagará mais.
Segundo o site Brasil de Fato, Norte e Nordeste devem ser as regiões mais afetadas. Hoje, políticas da Eletrobras evitam o encarecimento nas regiões com maiores índices de pobreza do país. Dados do Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (IPEC) mostram que 25% dos brasileiros têm metade do orçamento doméstico consumido pela conta de luz.
A atividade industrial é outra afetada pelo aumento do valor e pode entrar em declínio, com séries danos à economia e ao emprego no país, como avalia Fabíola. Neste sentido, Maria complementa: “o sistema (privatizado) não funciona, ainda mais se quisermos ter uma energia acessível que permita ao setor produtivo ser competitivo”.
Ao O Globo, Joaquim Francisco de Carvalho, engenheiro e ex-diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear), esclarece que setores como comunicação, ensino e conservação de alimentos — além do industrial — dependem da eletricidade, não sendo sensato pautar seu valor pelo lucro.
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As consequências, evidentemente, se estendem ao meio ambiente. “Empresas estatais possuem uma preocupação maior com o aspecto socioambiental”, explica Fabíola, ao falar sobre o uso múltiplo das águas, aspecto pouco abordado relacionado às comunidades localizadas em torno dos reservatórios: “para aqueles que moram próximos aos empreendimentos, poderá haver uma perda na qualidade de vida decorrente da disputa pelo uso da água”. Os rompimentos de barragens nos municípios de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, respectivamente das mineradoras Samarco, em 2015, e Vale, em 2019, são amostras claras das consequências mortais à vida e ao meio-ambiente pelo descaso de organizações privadas.
Guilherme Ribeiro é colaborador da Revista Diálogos do Sul
– Com informações de Agência Brasil, Brasil de Fato, UOL e Exame
– Colaboraram com Maria José Haro Sly ex-funcionários da Secretaria de Energia da Argentina
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