Conteúdo da página
ToggleA África do Sul votou por mudança. Daqui a duas semanas, quando o Congresso votar para eleger o presidente, é provável que seja o mesmo, Cyril Ramaphosa, mas isso nem está claro. Pela primeira vez na democracia, o Congresso Nacional Africano (CNA) terá que negociar após perder a maioria absoluta no país, e a continuidade de Ramaphosa, após perder quinze pontos, está em dúvida.
Ainda assim, o CNA obteve 40%, quase o dobro de seu rival mais próximo, a Aliança Democrática (AD) liberal, com 21%. Em terceiro ficou o uMkhonto weSizwe (MK), partido do ex-presidente Jacob Zuma, com cerca de 15%, e em quarto os Lutadores pela Liberdade Econômica (EFF, na sigla em inglês), de Julius Malema, que, embora tenha perdido votos, ficando com 9,5%, poderia ser o próximo vice-presidente.
O partido de Nelson Mandela, que sempre defendeu a união de todos os sul-africanos após o apartheid e fez de seu partido um símbolo nacional, acabou perdendo a maioria justamente por sua desunião. Com o nome do braço armado que Mandela fundou para lutar contra o apartheid, uMkhonto weSizwe (MK), o ex-presidente Jacob Zuma acabou por dinamitar seu antigo partido. Obrigado a renunciar em 2018 diante da ameaça de uma moção de censura de seu próprio partido por causa da corrupção que danificava a imagem do CNA, Zuma acabou se unindo este ano ao partido recém-criado.
O MK arrasou na região de KwaZulu Natal, onde Zuma tinha seu bastião, com 4X% dos votos na província, o que o levou ao terceiro lugar a nível nacional. Com uma agenda mais radical de esquerda que o CNA, de tradição socialista mas amigável com o livre mercado, o MK tirou votos do partido Lutadores pela Liberdade Econômica, que não esperava perder apoio.
Seu candidato a presidente, Julius Malema, é o ex-líder das juventudes do CNA e defende políticas marxistas, nacionalizar empresas em setores-chave e expropriar terras privadas de brancos para compensar as que a população negra perdeu durante o apartheid.
Na oposição, a AD, o tradicional partido dos afrikâners brancos, conseguiu manter a maioria absoluta no Cabo Ocidental, mas perdeu votos para partidos de extrema-direita como a Aliança Patriótica ou a Frente para a Liberdade (FFP). O primeiro centrou sua campanha contra a imigração irregular de africanos, e o segundo, que nasceu em 1994 buscando continuar com o apartheid, defende a autodeterminação dos brancos afrikâners em um Estado separado.
Alianças definirão o rumo do governo
A legislação indica que o novo presidente da África do Sul deve ser nomeado duas semanas após as eleições, então começa uma corrida contra o tempo para ver quem formará governo com o CNA. Uma opção é que o partido de Ramaphosa tente governar sozinho se não chegar a um acordo, mas o mais provável é que ele faça alianças.
As duas opções mais plausíveis são se unir ao EFF de Malema ou ao MK de Zuma. Afinal, ambos os dirigentes vêm do CNA e representam antigos eleitores descontentes do partido com o governo e atraídos por novas formas políticas.
Agora, ambos já mencionaram expressamente que não entrariam em coalizão com um governo liderado por Ramaphosa. Enfraquecido pelos resultados, ele mesmo poderia ceder o lugar ao vice-presidente Paul Mashatile. A outra opção é que seu partido o force a sair contra sua vontade, uma manobra semelhante ao que ocorreu com Zuma, que de fora lhe devolveria a moeda. Agora, como se viu com o ex-presidente, isso corre o risco de dividir ainda mais o partido e pode ser um tiro no pé.
Se acabar pactuando com o EFF ou o MK, a África do Sul empreenderia uma virada à esquerda na economia. Ambos apostam em aumentar o Estado com a nacionalização de setores-chave como energia ou mineração. Enquanto o EFF defende políticas marxistas, o MK se baseia mais no tradicionalismo zulu e buscaria concessões para a região de KwaZulu-Natal e reivindicações históricas para reconhecer a importância dos zulus, o grupo étnico majoritário do país, para a África do Sul.
No plano internacional, isso confirmaria a virada para o Sul Global com o apoio do BRICS+ à África do Sul. Na época de Zuma como presidente, a África do Sul já começou a virar para o Oriente, e isso se confirmou com a guerra da Ucrânia, com os Estados Unidos acusando o governo de Ramaphosa de fornecer armas a Vladimir Putin. Malema do EFF apoia a invasão russa como uma “guerra contra o imperialismo”, e isso pode afastar o Ocidente de um parceiro histórico na África.
Outra opção seria formar uma grande coalizão com a Aliança Democrática
Embora seja menos provável por vários motivos. Primeiro, porque o Congresso Nacional Africano teria como parceiro o segundo partido do país e teria que ceder mais peso em suas decisões no Executivo do que com os outros partidos. Segundo, porque se o CNA perdeu votos, foi precisamente por causa de sua esquerda com o aparecimento do EFF e do MK, enquanto a AD se manteve em um nível de votos semelhante nas últimas eleições.
Ou seja, se o CNA quer recuperar o eleitorado que lhe dava a maioria absoluta, deve olhar para sua esquerda e não para os liberais da AD. Fazer alianças com eles poderia melhorar a previsão econômica e a visão do país por parte dos investidores, mas significaria perder ainda mais sua essência e provavelmente cair ainda mais em futuras eleições.
Seja com quem for, a África do Sul enfrenta uma situação inédita em sua curta história democrática. Ramaphosa terá que sentar-se para negociar e ceder pela primeira vez para poder ser reeleito presidente. O legado do apartheid já não pesa tanto em um país com uma idade média de 28 anos e uma geração nascida já na democracia que anseia por empregos e um futuro econômico próspero.