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Imagem ilustrativa: Pedro Pio, Onu Mulheres / Flickr

“Estado dentro do Estado”: dissidências das Farc levam educação à região do Yarí, na Colômbia

"Nós acreditamos que chegou hora de passar da palavra às transformações reais", afirma Calarcá Córdoba, responsável por novo instituto educacional
Jorge Enrique Botero
La Jornada
Bogotá

Tradução:

Beatriz Cannabrava

Uma escola no fim do mundo, dotada com laboratório de química, biblioteca com livros de Mark Twain e álgebra de Baldor, quadras profissionais do futebol e alojamento para 200 estudantes, foi convertido em uma alegoria da paisagem da guerra e da paz que hoje coexistem na caótica Colômbia que tocou a Gustavo Petro governar.

O Instituto Agropecuário e Ambiental Gentil Duarte exibe seus tetos vermelhos e suas brancas paredes no meio das savanas do Yarí, uma extensa e rica região do departamento de Caquetá, porta de entrada à Amazônia colombiana que acolheu nos anos 50 centenas de milhares de pessoas que fugiam da violência desatada pela guerra entre liberais e conservadores com saldo de 300 mil mortos.

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Colonizado à ponta de enxada e facão, este imenso território foi mudando com a passagem das décadas até se transformar em uma das zonas mais prósperas do remoto sul-oriente do país, isso apesar da perseverante ausência do Estado e das mil batalhas que se travaram sobre suas planícies infinitas.

Em meados dos anos 1970, o Yarí albergou o maior laboratório de cocaína da história de drogas ilícitas – Tranquilandia – que tinha sua própria pista de aviação pela qual saíam aviões DC-3 carregados de pó branco de extrema pureza.

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Até que chegaram os comandantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e mandaram parar aquele multimilionário festim para depois assentarem-se naquele mágico território sulcado por centenas de rios que atravessavam tupidas selvas, ideais para expandir seu exército camponês.

Desde então, as tropas de Tirofijo preencheram a ausência do Estado e foram as únicas autoridades da região: ditaram normas de convivência, estabeleceram limites e capturaram assassinos, fizeram precárias estradas e levantaram pontes artesanais, abençoaram casamentos e mediaram em divórcios tormentosos. Permitiram que se plantasse mais coca e cobraram impostos pelo transporte da droga, convertida depois no grande combustível da guerra.

“Eles são nosso governo”

Sentada em uma cadeira de balanço de vime, com o olhar fixo no reluzente instituto que abriu suas portas, Adriana Saldaña recorda que há 50 anos, quando era uma menina, caminhava várias horas para chegar à única escola da região, “uma casinha de madeira à qual faltava a metade do teto, com uma só professora para os cinquenta estudantes de vários graus que chegavam às aulas depois de terem levantado às quatro da manhã para ordenhar vacas”.

Adriana é dirigente de uma associação de camponeses do Yarí, faz parte da junta de ação comunal de sua vereda e tem cinco filhos: a maior no 11º grau, aprontando-se para ir à faculdade. “De todos os meus filhos, a única que conseguirá ser profissional”, exemplo vital de como evoluíram as coisas nas terras da Colômbia situada do outro lado da fronteira invisível.

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Dá risada quando lhe menciono a longa lista de críticas que choveram desde que se anunciou a inauguração do instituto. “É muito fácil desde os escritórios de Bogotá sem ter vivido em carne própria o que nós tivemos que padecer durante anos”, diz. Sem ter aberto, o lugar já estava estigmatizado e abundaram as reportagens que o satanizaram. O que mais molesta os seus críticos é o nome “Gentil Duarte“, homenagem a um comandante guerrilheiro abatido há um par de anos “que era como um pai para os povoadores da região”.

“A guerrilha não tinha a obrigação de construir o instituto, isso tocava ao Estado”, comenta esta líder social que ouviu desfilar promessas durante anos e viu como se mutilaram as ilusões de várias gerações. “Graças à vida e às FARC, meus olhos puderam ver o que temos à frente, repórter”, diz Adriana, referindo-se às dissidências desta insurgência que nunca se acolheu aos acordos de Paz de 2016.

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Um alvoroço de crianças nos interrompe, pois acabam de chegar os livros que habitarão a biblioteca do instituto. De várias caixas de papelão emergem as Vinte mil léguas submarinas e as Aventuras de Tom Sawyer. Livros de química e física, uma enciclopédia de geografia do mundo e muitas biografias de Simón Bolívar. Laura, de 12 anos, pega um livro da história do futebol e a abre com extrema curiosidade. “Amo Messi“, diz quando encontra uma página com a foto de seu ídolo.

“Somos um Estado dentro do Estado”

O instituto terá 200 estudantes, onze graus, laboratórios, área de informática, biblioteca, um parque infantil e três quadras de futebol, uma de basquete e outra de vôlei, uma muito bem-dotada cozinha e um enorme comedor. Está localizado na vereda El Diamante e o rodeiam um mar de plantações de arroz e milho, uma debulhadora e um gigantesco silo para armazenar os grãos. Em poucos meses florescerá uma cidadela cujas ruas já estão traçadas para que ali morem professores, agrônomos e administradores com suas famílias. Antes de nascer, a aldeia já tem cemitério e abatedouro.

Quem me explica este projeto é Calarcá Córdoba, comandante do bloco Jorge Suarez Briceño, das dissidências das FARC, considerado como o autor intelectual e material da obra. Listo os “mas” que saíram à sua iniciativa: que o colégio não é legal, pois não está formalizado pelo ministério de Educação, que o nome é uma apologia ao terrorismo e – sobretudo – que a guerrilha o fez. “Apesar dos insultos e das estigmatizações, o Instituto Agropecuário e Ambiental Gentil Duarte é a prova de que somos um Estado dentro do Estado”, responde quem fora o discípulo mais avançado de Gentil Duarte.

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“Nós acreditamos que chegou hora de passar da palavra às transformações reais. Estamos em diálogos de paz com o governo do presidente Petro e ele disse que o fim da violência se obtém com transformações sociais, o mesmo que temos pregado durante décadas. Tudo que você viu nesses dias – Botero – é uma materialização dessas transformações. Isso não quer dizer que renunciamos a uma mudança das velhas estruturas econômicas e políticas no nível nacional, mas este é um passo nessa direção”, responde Calarcá desde o balcão de uma casa que se assoma à imensidão da planície.

Há apenas alguns dias esteve reunido em San Vicente del Caguán com o chefe da delegação negociadora do governo, Camilo González, e com o grupo interdisciplinar que o acompanha nos diálogos. Acordaram seguir conversando, apesar de que uma fração importante das dissidências – o Bloco Oriental que opera em Cauca, Valle e Nariño – se distanciou do processo, no que parece ser uma inevitável divisão dessa insurgência.

Córdoba cortou na última sexta-feira (12) a fita com a que se inaugurou a escola do fim do mundo e agora dedica seu tempo a preparar uma reunião que terá com delegados de vários ministérios enviados pelo presidente Petro para fazer das transformações territoriais um caminho para a mais ambiciosa de todas as estratégias do governo nacional: a paz total.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Jorge Enrique Botero Jornalista, escritor, documentarista e correspondente do La Jornada na Colômbia, trabalha há 40 anos em mídia escrita, rádio e televisão. Também foi repórter da Prensa Latina e fundador do Canal Telesur, em 2005. Publicou cinco livros: “Espérame en el cielo, capitán”, “Últimas Noticias de la Guerra”, “Hostage Nation”, “La vida no es fácil, papi” y “Simón Trinidad, el hombre de hierro”. Obteve, entre outros, os prêmios Rei da Espanha (1997); Nuevo Periodismo-Cemex (2003) e Melhor Livro Colombiano, concedido pela fundação Libros y Letras (2005).

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