“O fandango é onde nos juntamos todos… uma só vez, uma só família, para celebrar”, comenta Arturo O’Farrill frente ao porto de Nova York, à sombra da Ponte Brooklyn, com a Estátua da Liberdade como fundo, diante de um público, representando uma ampla parte do mosaico desta metrópole e seus mais de 200 idiomas, convidando todos a escutar histórias tão diferentes mas tão comuns dos imigrantes em um diálogo musical oferecido entre son jarocho e jazz afro-latino, alguns ecos persas, e seus antecessores.
Às vezes se necessita só de um pouquinho para resgatar o mundo, por um instante, uma hora ou duas, para regressar às essências diversas, antigas e recém descobertas, que conformam todo momento.
“Imaginem um mundo sem grades, sem fronteiras, sem nações… disso se trata o son jarocho, porque todos são convidados a um fandango, aí é de onde ocorre o saneamento”, conta O’Farrill à frente de sua Orquestra de Jazz Afro-Latino (18 músicos) que em conjunto com vários músicos do coletivo de son jarocho Conga Pátria, entre eles Ramón Gutierrez Hernandez, Patricio Hidalgo e Jorge Francisco Castillo, e às vezes acompanhados de duas mulheres sapateando, regalaram suas versões de El Siquisiri, El Cascabel e La Bamba. Há ainda um ode às Las Patronas, as mulheres que dão de comer aos migrantes que passam em La Bestia, entre outras, com cada verso delicado e firme, elevando a dignidade da vida, com humor, com amor e com sabedoria popular, convidando a algo tão antigo e profundo, a dançar.
Talvez ajudaria ensinar a Estátua de Liberdade a sapatear e convidá-la ao fandango
Os irmãos Villalobos, três violinistas ferozes e felizes, cativaram o público que inundou um campo no Parque Brooklyn Bridge, com sons tradicionais e contemporâneos, enquanto que de repente houve resposta de dois músicos iranianos – um maestro do oud iraquí-estadunidense, e uma virtuosa relaxada do setar iraní.
O fandango continuou com o son jarocho abraçado de repente por sabores cubanos, e vice-versa, convidando a múltiplos sons, a novas sínteses com metais e percussões ao mesmo tempo precisos e livres, explodindo em um crescente que de repente foram seguidos por alguns duetos delicados, um pouco de poesia de palavra falada, um pouco de rap, tudo parte de um projeto de resistência e rebeldia contra muros, divisões, ódios.
O projeto Fandango no Muro começou em 2018, quando O’Farrill buscou e se reuniu com Castillo para armar um concerto binacional de mais de 50 artistas na linha fronteiriça em Tijuana, San Diego, como ato contra as políticas simbolizadas pelo muro. Isso continuou em uma das cidades mais diversas do mundo, que de puro milagre inexplicável vive todos os dias o que cantaram e contaram no concerto, assim comprovando que apesar de suas violências e disputas, um só mundo é possível.
Aqui sim se conhece a letra dos versos-mensagens que chegaram através deste jazz africano-latino e do som do meio oriente, e de outros lugares, algo que se pode ver, sentir e escutar – se é que os ruídos metropolitanos se silenciam de vez em quando – cotidianamente. Saindo do concerto e caminhando pelo parque, na zona de “piquenique”, dezenas de famílias e/ou grupos de amigos estavam cozinhando, comendo, conversando, brincando – alguns com aparelhos tocando música mexicana, outros com rap afro-estadunidense, um grupo de jovens muçulmanas falando em árabe, tudo parte da gama de múltiplos acentos em idioma, aromas, cozinha, dança.
Uma noite de um verão nesta babel, mas diferente do que conta a bíblia – e a mensagem básica do fandango multinacional – é que abaixo da ponte, da estátua, dos arranha-céus de luxo, nos entendemos ou pelo menos existe a possibilidade não só do entendimento, mas da solidariedade necessária para resgatar o mundo.
Talvez ajudaria ensinar a Estátua de Liberdade a sapatear e convidá-la ao fandango.
David Brooks é correspondente do La Jornada em Nova York.
Tradução de Beatriz Cannabrava.
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