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Abdel Fattah al-Burhan, general das Forças Armadas do Sudão e líder do Sudão (Foto: Forças Armadas do Sudão / X)

Guerra no Sudão: entenda importância simbólica e estratégica do controle de Cartum

Há poucas semanas, as Forças Armadas do Sudão (FAS) retomaram o controle da capital, até então sob poder das Forças de Apoio Rápido (FAR); o conflito, no entanto, segue longe de uma solução
Guadi Calvo
Resumen LatinoAmericano
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

No último 20 de março, as Forças Armadas do Sudão (FAS) conseguiram enfim tomar o palácio do governo na capital, Cartum, após uma batalha de mais de dois meses, conseguindo desalojar os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR). Os irregulares haviam conquistado o local logo no início da guerra civil, em 15 de abril de 2023. Embora essa mudança de controle não tenha grande importância estratégica, o fato em si tem um peso simbólico relevante para as tropas regulares.

Desde o início da guerra civil no Sudão, a capital sudanesa, Cartum, se estabeleceu como uma de suas principais frentes de combate. Foi ali que começaram os enfrentamentos entre as FAS e os milicianos das FAR, rompendo a aliança que lhes permitiu, em 2019, acabar com a ditadura de 30 anos do general Omar al-Bashir (1993-2019).

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Após um breve coqueteio com as organizações políticas e sociais, que haviam feito muito pela queda do regime, o exército e os paramilitares decidiram que o país não estava pronto para uma democracia e aniquilaram o processo democrático que já estava em andamento.

Depois de assumir como presidente do país, o chefe das FAS, general Abdel Fattah al-Burhan, tentou regularizar os paramilitares, incorporando-os ao exército.

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Foi esse projeto que detonou a aliança e colocou em pé de guerra as FAR, lideradas por seu fundador, o pseudo-general Mohamed Hemetti Dagalo, um criador de camelos muçulmano de origem árabe, amparado pela tirania de al-Bashir, após ter exterminado a insurgência na região de Darfur a um custo próximo de 500 mil mortos.

O genocídio étnico contra as populações negras (agricultores, cristãos e animistas) de Darfur entre 2003 e 2005 ajudou significativamente Hemetti a se tornar um dos homens mais ricos do país, graças à exploração e exportação ilegal de ouro.

A possibilidade de regularizar os paramilitares poderia ter encerrado a preponderância política e financeira de Hemetti, sendo esse o principal motivo desta guerra, que já gerou um número de mortos que não pode ser inferior a 100 mil e obrigou cerca de 15 milhões de pessoas a se deslocarem, fugindo dos múltiplos focos de combate. A grande maioria dessas pessoas se instalou em acampamentos improvisados, geridos apenas pela Organização das Nações Unidas (ONU) ou por diferentes ONGs, nos quais falta absolutamente tudo: desde água potável até alimentos, medicamentos, lenha para cozinhar e, sobretudo, segurança, já que são frequentes os ataques a esses acampamentos, onde ocorrem saques dos poucos recursos disponíveis, assassinatos, estupros em massa e sequestro de homens de todas as idades para forçá-los a se integrar a alguma das forças em disputa.

Calcula-se que já são quatro milhões desses deslocados que conseguiram escapar para algum dos países vizinhos, principalmente para o Chade, onde todas as previsões feitas pela ONU para contê-los em seus acampamentos foram infrutíferas.

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O conflito, que em menos de dois anos já destruiu a infraestrutura das grandes cidades do Sudão e seu sistema sanitário e produtivo, ameaça balcanizar o país em pelo menos duas grandes áreas: a região de Darfur, de onde Hemetti é originário, com cerca de 500 mil km² e, por ora, o restante do Sudão; nada impediria, nesse contexto, que alguma outra região tente seguir o mesmo caminho.

Embora a guerra tenha começado em Cartum, e mesmo tendo se expandido para praticamente todo o país, a capital, junto com a cidade de Omdurmã — separadas apenas pelo Nilo — sempre se manteve como uma das frentes mais ativas, onde bairros inteiros mudam de controle em questão de horas, assim como as estratégicas pontes de al-Manshiya e Soba, que cruzam a confluência do Nilo Azul com o Branco. Isso transformou grandes setores da cidade em terra arrasada, com a demolição de edifícios, hospitais e áreas residenciais.

A batalha por Cartum, que nunca foi definitivamente resolvida, teve desde janeiro um aumento significativo nas ações, que não será solucionado com a simples mudança de controle do palácio do governo.

Ambas as facções disputam palmo a palmo cada setor da cidade, sem conseguir estabelecer uma linha de frente, convertendo-se em uma batalha por setores indefinidos, demolindo as ruínas que outros enfrentamentos já haviam deixado para trás.

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Cheiro de morte em Cartum

É impossível saber quantos dos três milhões e meio de habitantes que Cartum tinha antes do início da guerra ainda permanecem ali, assim como em todo o conglomerado urbano que inclui, além de Cartum, a cidade de Omdurmán, a oeste da capital, e Bahri, ao norte, com cerca de oito milhões de habitantes no total. São áreas onde os ataques da artilharia rebelde e os bombardeios aéreos das forças regulares têm sido constantes desde abril de 2023.

Testemunhos disso são as dezenas de corpos em decomposição que todos os dias os trabalhadores do Crescente Vermelho resgatam entre as ruínas da cidade e até mesmo dos esgotos, enquanto cadáveres arrastados pela correnteza do Nilo e presos nas rochas ou nos pilares das pontes se tornaram uma paisagem frequente. Além disso, o exército afirma ter descoberto fossas comuns em locais como parques e até nos jardins dos tribunais da cidade de Omdurmán, que provocam um odor permanente sobre a cidade.

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Fortes combates ocorreram no bairro de Kafouri, em Bahri, onde os paramilitares tinham uma de suas principais bases, que foi tomada pelo exército em 15 de março.

Após se recusarem a fugir — tentando preservar seus bens ou pegos de surpresa pela intensidade repentina dos combates —, são centenas de milhares as pessoas que sobrevivem presas em Cartum e no restante do conglomerado.

Nesse contexto, cada míssil, cada bombardeio, certamente aumentou o número de mortos. Ainda mais porque os combates mais intensos aconteceram nas proximidades do palácio, em alguns dos bairros mais populosos da cidade, como al-Haj Yousif, Haj Youssef e al-Bagair, e nada indica que os confrontos nessas áreas tenham cessado.

As Forças Armadas do Sudão afirmam ter descoberto fossas comuns em locais como parques e até em jardins (Abdel Fattah al-Burhan, general das FAS e líder do Sudão – Foto: FAS / X)

Embora o exército tenha realizado muitas operações para limpar os bairros de Cartum dos paramilitares e tenha recuperado o controle de Bahri em março, a presença de franco-atiradores tem obrigado as tropas regulares a avançar com o máximo de cautela.

Até poucas horas antes da queda do palácio, Hemetti permanecia desafiador, prometendo que suas forças não se retirariam da cidade e até que recuperariam o terreno perdido. Além disso, ameaçava avançar até Porto Sudão, no Mar Vermelho, a mais de 800 km a leste de Cartum — e, de fato, a nova capital desde a queda da antiga —, para onde chegam as doações de alimentos e medicamentos, que são penosamente distribuídas em acampamentos e cidades onde milhões de pessoas não têm absolutamente nada.

Cerca de 12 horas após a tomada do palácio, Hemetti não reconheceu a derrota e continuou desafiando as FAS, lançando seus últimos homens na região para uma morte certa.

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Enquanto isso, nas proximidades de uma das principais refinarias de petróleo do país, foi descoberto um laboratório das FAR que produzia em grande escala Captagon, a um ritmo de 100 mil comprimidos por hora. O Captagon é um fármaco proibido desde 1981 pela Organização Mundial da Saúde, usado especialmente por organizações terroristas como o Daesh e a al-Qaeda por melhorar a atenção e o desempenho cognitivo, mantendo o estado de vigília por mais tempo, com efeitos que podem durar dias. Perto desse laboratório, também funcionava um centro de tortura das FAR, por onde se acredita que centenas de pessoas tenham passado.

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Sem dúvida, os paramilitares expulsos de Cartum marcharão para Darfur, onde seus avanços continuam. Recentemente, tomaram a cidade de al-Maliha, próxima às fronteiras com o Chade e a Líbia, e a cerca de 200 km ao norte da cidade de El-Fasher, capital de Darfur do Norte — a única cidade importante de toda a região que permanece sob controle do exército, embora esteja sitiada pelas FAR há quase um ano.

Por sua vez, o exército insiste que mantém o controle de al-Maliha e que os combates por essa cidade, encravada no coração do deserto, continuam — um reflexo de uma guerra cujo fim parece cada vez mais distante.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Guadi Calvo

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