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Metarracismo: o Brasil miscigenado, a falácia do racismo negro e o mito da democracia racial

Sob pretexto de “combate ao racismo reverso” se ataca os sabida e verdadeiramente antirracistas, trabalhando pela manutenção do status quo racista e suas estruturas
Juarez Silva Jr
Amazônia Real
Manaus

Tradução:

O tema desta coluna não foi buscado, foi “forçado” pelo não tão inusitado artigo publicado na Folha de S. Paulo, no sábado (15/01) sob o título “Racismo de negros contra brancos ganha força com Identitarismo”. Quando digo não tão inusitado é pela autoria — do antropólogo Antonio Risério — recorrente nesse tipo de abordagem baseada em argumentação falaciosa.

Por tal, como ativista negro e estudioso da temática étnico-racial há mais de três décadas, eu não poderia começar o ano da coluna sem retornar ao assunto de boa parte dos meus escritos: as relações raciais. Não como “resposta” aos esdrúxulos textos de Risério, mas como tentativa de “antídoto” aos eventualmente “envenenados” por esse e outro textos eivados de falácias.

Metarracismo

Conhecer esse conceito é importante para que o leitor se situe. O termo foi cunhado por Etienne Balibar em seu livro “Race, Nation, Class: Ambiguous Identities” publicado na Alemanha em 1990. Assunto também abordado posteriormente por Joel Kovel em seu livro “White Racism: A Psychohistory (Racismo Branco: Uma história psicológica)”.

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É interessante observar que p “escaldado” Kovel foi bem enfático no título, explicitando ao que ele se refere, para que não fosse cinicamente distorcido pelos metarracistas para uso “inversionista”, prática comum a eles.  Publicado em 1970 e republicado em 1984, Kovel descreve “metarracismo” como:

“[..] o racismo de tecnocracia; isto é, sem mediação psicológica como tal, no qual a opressão racista é executada diretamente POR MEIOS ECONÔMICOS E TECNOCRÁTICOS”. Ainda segundo Kovel ,“como ele incorpora as formas mais avançadas de dominação, transforma-se em múltiplas configurações como um camaleão (independentemente das formas necessárias para executar a sua missão racista), e é mais eficiente que as formas mais antigas, cheias de ódio, odiosas formas do racismo que levavam a discriminação e violência pública e aberta – METARRACISMO é o modo dominante do racismo no capitalista pós-moderno”.

Martin Luther King além do pop: ícone antirracista foi contra capitalismo e exploração de trabalhadores

Fenômeno também destacado por (Zizek, 1993), “vivemos um novo tipo de racismo, um racismo pós-moderno, um “metarracismo”, que pode perfeitamente assumir a forma de um combate contra o racismo.

Essa resistência cínica pode ser encarada como uma das vicissitudes da atual abertura proposta pelo liberalismo e seu projeto de re-invenção da democracia e do discurso dos direitos humanos”, porém como a diferença entre o metarracismo e o racismo direto, tradicionalmente de forma aberta e declarada, é nula (já que não existe metalinguagem…), faz com que o cinismo com o qual se apresenta o meta-racismo o torne muito mais perigoso.

Isso posto, fica claro do que se trata todo discurso que sob pretexto de “combate ao racismo reverso” ataca os sabida e verdadeiramente antirracistas, trabalhando ao fim e ao cabo pela manutenção do status quo racista e suas estruturas.

Resumindo: é o racismo que dispensa a velha ideia biológica de raça, mas continua atuando pelo prejuízo dos “outros” combatendo o antirracismo de forma cínica.

Sob pretexto de “combate ao racismo reverso” se ataca os sabida e verdadeiramente antirracistas, trabalhando pela manutenção do status quo racista e suas estruturas

revista Lens da Monash University
ilustração

O que é racismo?

De certo não é uma coisa bi-direcional, como defende o autor do texto comentado, e costumaz nos atentados aos conceitos pacificados no campo das relações raciais, que imputa sem muita distinção a ativistas tradicionais e neoativistas negros, a quem chama de “identitários”, ideias segundo ele “distorcidas”.

Em carta, jornalistas da Folha repudiam publicações racistas do veículo em busca de audiência

Ignorando por exemplo cientistas sociais renomados como Oracy Nogueira e Carlos Hasenbalg, que trataram cientificamente disso à tempos e não eram nem “ativistas” muito menos “negros”, vide:

Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marcade origem(NOGUEIRA, 1985, p. 78-9)

“O racismo, como construção ideológica incorporada em e realizada através de um conjunto de práticas materiais de discriminação racial, é o determinante primário da posição dos não-brancos nas relações de produção e distribuição” (HASENBALG, 1979, p. 114).

“(a) discriminação e preconceito raciais não são mantidos intactos após a abolição mas, pelo contrário, adquirem novos significados e funções dentro das novas estruturas e (b) as práticas racistas do grupo dominante branco que perpetuam a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão funcionalmente relacionadas aos benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco obtém da desqualificação competitiva dos não brancos.” (HASENBALG, 1979, p. 85)

Simplificando, não há atitude desfavorável culturalmente condicionada contra brancos (por serem brancos) tampouco estruturas e práticas de subordinação branca e obtenção de privilégios na sua desqualificação competitiva.

Apenas os extratos citados dos cientistas acima já seriam suficientes para demolir a falaciosa argumentação sobre a existência de “racismo reverso” ou “racismo negro” contra brancos”, mas sigamos.

Preto e negro

Outra persistente confusão sempre patrocinada pelo autor dos despautérios é no uso e conceito atinentes aos termo ‘preto’ e ‘negro’. Já escrevi muito sobre, e mais recente e detalhadamente no artigo em meu blog pessoal , “Entendendo finalmente a diferença de preto para negro” (SILVA JUNIOR, 2018); recomendo fortemente a leitura depois. Aqui nesse texto deixo apenas um resumo gráfico, para quem por ventura prefere o sintético:


O aparentemente desconhecimento ou omissão premeditada dessas premissas simples, já levaram o autor do texto comentado à afirmação estapafúrdia de que a autodeclarada, internacionalmente reconhecida liderança negra e já histórica figura de Abdias do Nascimento não seria negro.

O espantalho da mestiçagem

Explica a estapafúrdia anterior, outro argumento muito utilizado na modalidade metarracista, que tenta conduzir à deslegitimacão “colorista”, negando cinicamente ao negro miscigenado a sua identidade geral e política contestadora.

Tal argumento é o de que o Brasil é um “pais mestiço”. Não é. E ele é multirracial e multicultural, tanto que é possível identificar seus vários grupos “raciais” e étnicos de forma estatística/censitária.

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Também usar esses indicadores estatísticos de forma bem precisa na análise de N questões e correlações sociais. Isso para não falar das manifestações culturais claramente atribuídas aos diversos grupos civilizatórios formadores, o que é inclusive citado no artigo 215 da Constituição Federal:

“§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes grupos étnicos nacionais.”

Portanto, o Brasil não é “mestiço”, é de fato MISCIGENADO, o que é outra coisa. O termo se aplica à mescla sobretudo cultural e à interpermeabilidade entre essas distintas culturas formadoras em caldeamento, o que não deixa de incluir as relações interraciais e corriqueiramente origens múltiplas do ponto de vista racial, mas não significa que o caldeamento tenha feito qualquer tipo de “fusão”, aonde não seja possível distinguir pertenças distintas.

O discurso de “Brasil mestiço” tem sido usado há tempos na tentativa de negar e invisibilizar tensões raciais e com isso manter vivo o “mito da democracia racial” e evitar quaisquer mudanças no status quo das desigualdades e da secular hierarquização social baseada em “raça”, mesmo sendo ela um construto social e agora sem qualquer apoio “racista científico” de ordem biológica. Inclusive, porque nesse viés biológico se torna inviável a ideia de “mestiço” de uma raça com a mesma raça, já que a espécie (raça) humana, sempre foi de fato e enquanto Homo Sapiens, uma só.

Nem mesmo pelo construto social a ideia de “mestiço” enquanto grupo étnico característico ou destacado tem apoio científico, já que antropologicamente um grupo étnico é o que possui língua própria ou derivada de tronco lingüístico peculiar, mito próprio de criação do mundo, cosmovisão (espiritualidade) própria,  tradições culturais próprias e em geral milenares, noção de consanguinidade (parentesco remoto) e território compartilhado ou original reivindicado, portanto sinônimo de povo/nação ou do termo em desuso ‘tribo’.

“Derrotar o fascismo é uma das etapas para derrotar o racismo no Brasil”, afirma sociólogo

A pretensão de “identidade étnica” peculiar é também desmontada pelo conhecido fenômeno global e histórico/antropológico da ‘hipodescendência’ (conceito de Marvin Harris), em que todo produto de miscigenação não conforma na verdade uma “coluna do meio”, mas sim é automaticamente alocado no grupo mais socialmente prejudicado de suas múltiplas origens.

Negros X negros

Nas argumentações metarracistas também é comum aparecer o “negros x negros”, em geral remetendo ao comércio transatlântico negreiro de escravizados ou aos conflitos étnicos em África mais recentemente.

A partir da racista ideia de que “negro é tudo igual”, ou da equivocada noção de África como país, não um continente com atualmente mais de 50 países e centenas de etnias distintas e que historicamente sempre tiveram desavenças e guerras entre si.

Exatamente como os diversos grupos étnicos e nacionais brancos, asiáticos ou indígenas espalhados pelo mundo todo, que também nunca necessariamente se viram como “irmãos” só por causa da cor da pele. Por que cobrar essa “falta de irmandade” apenas dos africanos ? A resposta é óbvia.

Identitarismo

Particularmente não me agrada o termo, pelo entendimento de que realmente encaixa para os “ativistas” ou melhor “neoativistas” de todos os recortes, que têm apenas na defesa extrema do direito à identidade o seu foco, sem reivindicar de forma pragmática políticas públicas de efeito positivo e afirmativo não apenas para o próprio recorte, mas também solidariamente para os demais prejudicados.

Racismo e genocídio de negros e indígenas são patrocinados pelo Estado brasileiro

Cabe, no entanto, ressaltar que o recurso ao termo “identitários” foi apropriado pela luta metarracista e assim tem sido utilizado com finalidade pejorativa e desqualificadora, sem distinção, aplicado de forma geral, como “desculpa” para poder atacar a luta antirracista, angariando simpatias dos mal informados e também dos tendentes a um “metaracismo cínico”.

Ódio ou Insurgência?

Por fim, merece ser destacado também a insistência em acusar “ódio” e “racismo” por parte dos mais exaltados que eventualmente falam em “morte” em suas manifestações. Alguém em sã consciência chamaria Luiz Gama, abolicionista e antirracista histórico e inquestionável de “odiento” e “racista”?

Creio que não, mesmo sendo corriqueiramente à ele atribuída a frase O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata, sempre, em legítima defesa”. Pois é, mesmo a exaltação que eventualmente pode chocar e sugerir violência gratuita ou um estímulo de risco real contra brancos, não é pautada em supremacismo ou qualquer intenção agressora, mas na ideia de autodefesa, legítima defesa,presente em qualquer insurgência contra opressões, inclusive enquanto atenuante legal.

Com a patética sugestão de “racismo negro” e principalmente de infundado risco de “opressão e morte contra brancos”, aos costumes, o que temos por parte do articulista da Folha é “requentamento” de velhos “medos brancos”, ao estilo de Caxias ao escrever da campanha do Paraguai ao Imperador Pedro II :

[..] à sombra dessa guerra, nada pode livrar-nos de que aquela imensa escravatura do Brasil dê o grito de sua divina e humanamente legítima liberdade, e tenha lugar uma guerra interna como no Haiti, de negros contra brancos, que sempre tem ameaçado o Brasil e desaparece dele a escassíssima e diminuta parte branca que há!. ” (CHIAVENATO, 1986 p. 207)

Portanto, caro(a) amigo(a) em pânico com as alarmistas advertências “riseristas” acalme-se, “aquele Haiti” não é aqui.


A ilustração que abre este artigo foi originalmente publicada em um artigo de Mandy Troung na revista Lens da Monash University.

Referências

CHIAVENATO, Júlio J. O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1986.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de marca. As relações raciais em Itapetininga. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 169-171, 1999.HASENBALG, C. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

KOVEL, Joel. White racism: A psychohistory. Columbia University Press, 1984.

NOGUEIRA, Oracy. (1985 [1954]), “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”, in O. Nogueira (org.), Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais, São Paulo, T.A. Queiroz.

SILVA JUNIOR, Juarez Clementino da. Entendendo finalmente a diferença de preto para negro. 2018. Online Blog do Juarez. Acesso em: 18 jan. 2022.

ZIZEK, Slavoj. “Enjoy Your Nation As Yourself!” Tarrying with the Negative: Kant, Hegel, and the Critique of Ideology. Durham: Duke University Press, 1993.

Juarez Silva Jr. é um ativista, escrevinhador digital e apaixonado pela Amazônia, radicado em Manaus desde 1991. Tem graduação em Processamento de Dados pela Universidade de Taubaté, em São Paulo. Trabalhou e lecionou diretamente na área de tecnologia da informação por duas décadas, migrando para a área de Educação a Distância na qual é especialista pela Universidade Católica de Brasília. Também é Mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Atua nos movimentos de negritude e é estudioso da temática e história das relações raciais e cultura afro-brasileira e africana, movimentos sociais e Direitos Humanos. Foi conselheiro estadual de Direitos Humanos e é servidor público de carreira. Escreve sobre tecnologia, história, relações raciais, atualidades, sociedade e cultura.


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