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Toggle“Nossa luta é para que as novas gerações tenham água livre de contaminação, saúde e uma boa vida”, afirmou Gilda Fasabi, do povo indígena amazônico kukama kukamiria, diante do tribunal que deve resolver a apelação de entidades estatais da sentença que em março declarou o rio Marañón sujeito de direitos.
Esta comunidade ancestral é um dos 56 povos indígenas amazônicos reconhecidos oficialmente no Peru que vive sobretudo no departamento de Loreto, na zona nordeste do país, em plena Amazônia. Estando assentado nas margens do rio Marañón, sofre as consequências da contaminação pelos permanentes derramamentos de petróleo do Oleoduto Norte peruano da empresa estatal Petroperú.
Esta situação que não só violenta direitos humanos, como desconhece a relação espiritual do povo kukama com este elemento da natureza como parte de sua cosmovisão, levou à organização de mulheres indígenas, a Federação Huaynakana Kamatahuara Kana, a questionar os setores responsáveis.
A sentença favorável obtida pelo caso foi objeto de apelação pelos demandados.
A empresa Petroperú, assim como os ministérios do Ambiente, e de Desenvolvimento Agrário e Irrigação, entre outros, questionaram a sentença que, aliás, reconhece as organizações indígenas como guardiãs e defensoras do rio Marañón; considera que urge a criação do Conselho de Bacia Inter-regional com participação dos povos indígenas, e ordena à empresa Petroperú dar manutenção ao Oleoduto Norte peruano e atualizar seu instrumento de gestão ambiental.
A audiência para conhecer a apelação realizou-se em 8 de maio na sala da Suprema Corte de Justiça de Loreto, na cidade capital Iquitos, para onde foram Gilda Fasabi e Emilsen Flores representando a federação de mulheres kukama, junto com seus advogados Juan Carlos Ruiz e Martiza Quispe do Instituto de Defesa Legal, não governamental.
São um conjunto de organizações da sociedade civil que se aliaram para somar-se à defesa do rio Marañón. Além do IDL, encontram-se o Fórum Solidariedade, o Centro Amazônico de Antropologia e Aplicação Prática, International Rivers, entre outras.
O Marañón nasce nos Andes peruanos e percorre onze departamentos. É um dos maiores afluentes do rio Amazonas e está em grave risco, devido à contaminação do petróleo e metais pesados que afetam ecossistemas e o bem-estar dos povos indígenas. No caso dos que habitam Loreto é mais grave por ser este departamento um dos que tem mais pessoas pobres (43,5%), acima da média nacional de 29%, segundo relatórios oficiais.
A audiência de apelação, que culminou com o anúncio das juízas do tribunal de seu próximo pronunciamento, permitiu aprofundar as demandas do povo kukama por meio das vozes de suas líderes, dos argumentos jurídicos que o sustentam, e da posição de entidades do Estado de desconhecer os direitos da natureza.
Avanço para uma visão ecocêntrica
O advogado Juan Carlos Ruiz declarou à IPS que a sentença poderia ser emitida em dois meses dada a carga processual da corte e a complexidade do caso. E lamentou que os demandados não estivessem presencialmente na audiência, evidenciando a escassa importância que dão ao processo.
Considerou a sentença em primeira instância um passo significativo para transitar da visão antropocêntrica de proteger a natureza porque nos é útil, a outra ecocêntrica, ou seja, protegê-la porque tem um valor em si mesma.
“Este enfoque reconhece, aliás, outras cosmovisões como garante o artigo 13 do Convênio 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que obriga o Estado a respeitar a relação espiritual entre os povos e seus territórios”, ressaltou o advogado.
Também explicou que o conhecimento que tem o povo kukama do rio é tal, que sabem de todos os peixes, dos sons que emitem e o que significam. “É outra maneira de entender o universo; para a gente de Lima, o rio pode ser um buraco com água, para eles é um lugar sagrado onde vivem espíritos e seus ancestrais. Somos parte de um país pluricultural e há um direito à identidade cultural que devemos reconhecer”, lembrou.
Toda ideologia que defende a superioridade de uma cultura sobre outra é imoral, ilegal e discriminatória, enfatizou Ruiz.
O advogado alertou que o tema de fundo na discussão em torno à sentença é que a oposição virá daqueles que fazem negócio com os bens da natureza. E adiantou que sua ratificação beneficiaria os rios do país e os povos indígenas, não só o kukama.
Água sem contaminação para viver
Gilda Fasavi vive na comunidade nativa de Parinari do rio Marañón junto com outras mulheres e famílias kukama kukamaria, termo que significa “chácara pequena amamentada”, segundo o Instituto Nacional de Cultura. Ali nasceu e cresceu assim como sua mãe, pai e avós.
Na audiência de apelação, diante do tribunal presidido pela juíza Roxana Carrión, Fasavi descreveu o vínculo com o rio: “ali temos nossa família e nossos xamãs (guias espirituais), que também estão sofrendo com a contaminação; eles vivem na água e assim o temos sentido sempre. Não estou louca para contar o que não é”, afirmou.
“Quem vive sem água? Por isso protegemos o rio, porque vivemos ali. Como mulheres, lutamos para que o respeitem e seja sujeito de direitos, para que as novas gerações tenham boa saúde e uma boa vida como todos merecem; queremos deixar para nossos filhos e netos o que antes tinham nossos avós, água sem contaminação”, disse com firmeza.
Fasabi, de 40 anos, é mãe de três filhas de 26, 19 e 17 anos. A primeira é professora rural e as outras estudam. É cabeça de sua casa há muito tempo, depois de separar-se de seu companheiro para viver tranquila. Em sua história, o rio Marañón é uma presença constante, não só como fonte de seu sustento como de seu modo de relacionar-se com seu entorno, com o mundo, com o que se vê e o que se sente.
Em declarações à IPS, feitas na cidade da selva central, Tarapoto, durante o Pré FOSPA (Fórum Social Panamazônico) do Peru, realizado no final de abril, indicou que elas, como federação de mulheres kukama, moveram o processo porque, como mães, são as mais prejudicadas, pois são as principais usuárias da água para garantir a alimentação de seus filhos e o asseio da casa.
Também explicou que para elas o rio Marañón é seu banco, mercado, farmácia, “é tudo para nós”, e que para seu povo a água significa muito: é o lugar onde estão os seres que os protegem.
Fasabi lembrou que, em sua infância, diferentemente de hoje, havia bastante peixe e grande, não precisava ir muito longe para conseguir o que sua família necessitava para alimentar-se. “Minhas filhas não estão vendo o que eu via; queremos que nossas futuras gerações aproveitem também e para isso defendemos a água do rio”, explicou.
Também querem defender os animais da contaminação, afirmou.
“Não há peixes: agora mesmo em minha zona você vai pescar o dia todo para vir trazendo apenas um quilo, três pescados… Isso me indigna. As empresas não entendem porque eles não vivem a realidade que nós vivemos em nossas comunidades. Quanto pedimos que quando haja consulta prévia, venham, nos consultem, e vejam como estamos”, completou.
Deplorou a falta de compreensão daqueles que mantêm e querem impor um tipo de visão do mundo a todas as populações, apesar de serem amplamente diversas, e que isso implique vulnerar seus direitos humanos e os da natureza, da qual se sente parte.
“No Marañón nós nos banhamos, lavamos; com essa água cozinhamos, essa água tomamos. Que outra água vamos tomar? Não há outra água. Isso estamos consumindo, é o que temos. Por isso a presidenta de nossa Federação disse aos da empresa, na primeira audiência: nossos filhos também merecem ter a vida que têm teus filhos”, acrescentou.