Pesquisar
Pesquisar

Não podemos jogar na conta da população o desastre dessa pandemia, diz médica

Para a médica e presidente da Abrasco, Gulnar Azevedo e Silva, tudo é reflexo de “um governo totalmente incompetente e irresponsável para lidar com a situação”
João Vitor Santos
Revista IHU On-line
São Paulo (SP)

Tradução:

Primeiro, vieram as imagens do início da vacinação no Reino Unido e depois o fim de ano em que as pessoas, já cansadas de todo o desgaste da pandemia, decretaram por conta própria o fim da covid-19 no Brasil. Festas clandestinas e praias lotadas fizeram os números de mortos e contaminados, que já vinham crescendo, dispararem. Para a médica e presidente da Abrasco, Gulnar Azevedo e Silva, tudo é reflexo do que chama de “um governo totalmente incompetente e irresponsável para lidar com a situação”. Na entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, reconhece que toda essa conjuntura gera uma espécie de ‘salve-se quem puder’ em que a solidariedade parece dar espaço ao individualismo. Mas considera errado culpar as pessoas por essas ações. “Não podemos jogar na conta da população o desastre que está sendo o enfrentamento dessa pandemia”, dispara.

Segundo Gulnar, como o próprio governo federal se mostra letárgico na pandemia, a população, esgotada de tudo, também acaba reproduzindo algo semelhante enquanto tenta salvar sua própria pele, seja em relação à saúde física ou mental. “Isso incentiva que as pessoas retirem delas o que há de pior – como temos visto nos EUA –, a falta de solidariedade, o egoísmo. Para reverter esse quadro, é preciso comunicação, educação e atitude exemplar”, avalia. Além disso, ações individuais, seja de pessoas, grupos, municípios ou estados, são incapazes de estancar a pandemia. “Resolver o problema num território não dá conta de garantir o controle da pandemia no país como um todo. Pelo contrário, vai separar uma população que vai estar imunizada ao mesmo tempo que muitos outros segmentos populacionais não vão estar imunizados. E, assim, a pandemia não vai acabar”, explica.

O mais grave, para a médica, é que tudo isso atualiza o desmonte do SUS, agora na figura do Plano Nacional de Imunização – PNI. “Temos um governo que teria toda condição de dar uma resposta melhor se estivesse seguindo a tradição que o Brasil já teve no que se refere à vacinação. O país tem expertise muito grande, são 47 anos do PNI, e é uma pena estarmos assistindo a tudo isso agora”, lamenta. Além disso, pontua que “a vacina não é a bala de prata” e por isso manter o isolamento de doentes e suspeitos, distanciamento físico, uso de máscara e evitar aglomerações são ações que devem ser conjugadas com a vacinação por muito tempo.

Por fim, faz um apelo: “mais importante do que dizer se a vacina é obrigatória ou não, devemos fazer com que as pessoas compreendam que se vacinar é um ato de cidadania e solidariedade. É, também, um ato de salvar vidas. Não tenham medo de se vacinar. Vamos recuperar o histórico brasileiro de que a população sempre teve uma excelente adesão às campanhas de vacinação”.

Gulnar Azevedo e Silva possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, mestrado em Saúde Coletiva pela mesma instituição e doutorado em Medicina pela Universidade de São Paulo – USP. É professora titular do Instituto de Medicina Social – IMS – UERJ. Além disso, desenvolve pesquisas no campo da epidemiologia de doenças crônicas não transmissíveis, com ênfase na epidemiologia aplicada à avaliação de políticas de prevenção e controle do câncer. Faz parte do Steering Committee do programa global de vigilância da sobrevida em câncer (CONCORD), liderado pela London School of Hygiene & Tropical Medicine – LSHTM. Atualmente, é presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco.

Para a médica e presidente da Abrasco, Gulnar Azevedo e Silva, tudo é reflexo de “um governo totalmente incompetente e irresponsável para lidar com a situação”

Abrasco
A médica e presidente da Abrasco, Gulnar Azevedo e Silva.

IHU On-Line – Vivemos o negacionismo da pandemia, a guerra das vacinas e agora estamos na guerra das seringas. Enquanto isso, no Brasil, chegamos a 200 mil mortos pela covid-19. O que esses episódios revelam sobre nossa conjuntura?

Gulnar Azevedo e Silva  Revelam um governo totalmente incompetente e irresponsável para lidar com a situação. É gravíssimo, a mais grave pandemia dos últimos 100 anos; nunca vivemos uma situação assim em nossas gerações. E temos um governo que teria toda condição de dar uma resposta melhor se estivesse seguindo a tradição que o Brasil já teve no que se refere à vacinação. O país tem expertise muito grande, são 47 anos do Plano Nacional de Imunização – PNI, e é uma pena estarmos assistindo a tudo isso agora. É uma irresponsabilidade do governo atual.

É muito difícil e complicado falarmos sobre hipóteses, mas vimos no começo da pandemia uma postura um pouco diferente, diante da gestão de Luiz Henrique Mandetta à frente do Ministério da Saúde. Se tivéssemos seguido aquela linha, poderíamos estar diante de outra realidade?

É complicado, porque Mandetta já era ministro do governo atual e muito do problema que vemos, além de uma desestruturação do PNI, é o desfinanciamento do SUS.

Ao mesmo tempo que o ministro Mandetta ia para a televisão falar [sobre a pandemia], ele estava também se configurando como uma das pessoas que veio na esteira de quem estava desmontando políticas muito importantes, como, por exemplo, a política de saúde mental, a política de atenção primária. Então, não posso comparar com essa gestão.

Posso dizer que se nós tivéssemos dado continuidade ao PNI de anos atrás, que enfrentou várias epidemias, que implementou várias vacinas, que conseguiu dar conta de vacinar ao mesmo tempo muitas pessoas no tempo da H1N1 no Brasil, sem fazer nenhum estardalhaço, simplesmente seguindo o que já tem de possibilidade dentro da estruturação do PNI, eu acho que já seria melhor. Não coloco o ponto de análise a partir de Mandetta, pois ele já faz parte do Governo Bolsonaro; coloco que teríamos uma condição melhor se o SUS não tivesse passado por todo o enfraquecimento por que passou nos últimos tempos e se o PNI fosse valorizado, como vinha acontecendo nas últimas décadas.

 

É difícil dissociar o PNI do SUS. É por isso que ataques ao SUS refletem no PNI também?

Claro, pois para vacinar precisamos do SUS. E isso em todas as etapas.

Depois das idas e vindas do governo federal, municípios e estados dizem que, se necessário, sairão na busca de vacinas. Quais as consequências dessas ações isoladas? Por que é tão importante a unificação de um plano nacional de imunização contra a covid-19, coisa que já consta no próprio PNI?

O PNI sempre lidou muito bem com toda a necessidade de vacinação no Brasil. Não à toa foi reconhecido mundialmente e considerado, talvez, um dos maiores programas de imunização do mundo. O PNI garante cerca de 20 vacinas para as populações, conforme a indicação científica de usá-las, como as doses de vacinas em crianças, adolescentes, idosos, e isso nunca foi problema. Aliás, o Brasil sempre deu conta de tudo isso muito bem e, como disse o ex-ministro José Gomes Temporão, em entrevista ao Jornal O Globo, o Brasil conseguiu vacinar num só dia 10 milhões de pessoas, o que não é pouca coisa.

No entanto, o que deve ser considerado é que não se resolve o problema dessa pandemia se apenas um lugar, um estado, vacinar uma população toda e os outros não tiverem acesso. Não resolve porque o Brasil é composto de vários estados, é um país muito grande, com muita circulação, e resolver o problema num território não dá conta de garantir o controle da pandemia no país como um todo. Pelo contrário, vai separar uma população que vai estar imunizada ao mesmo tempo que muitos outros segmentos populacionais não vão estar imunizados. E, assim, a pandemia não vai acabar.

Além disso, estará promovendo uma quebra, pois vai fazer com que as políticas nacionais, que são políticas centralizadas e que no caso da vacinação é uma política corretamente centralizada, sejam quebradas. Assim, ao fazer isso se cria uma fratura e abre um precedente incrível dentro da maior pandemia que já vimos.

Ou seja, podemos ter consequências negativas não somente na pandemia, nessa imunização contra a covid-19, como depois, em outros processos de vacinação?

Com certeza, enfraquece totalmente uma ação que teria de ser uma ação nacional.

Especialistas têm defendido as medidas de distanciamento juntamente com a vacinação para neutralizar o novo coronavírus no Brasil. Por que é tão importante a conjugação dessas duas ações?

Na realidade, a vacina não é a solução. Como se fala por aí, não é a bala de prata. Trata-se de uma vacina nova que está sendo jogada nessa escala populacional agora; a experiência é importante, mas ainda existem várias lacunas. Por quanto tempo ela protege? Quanto tempo vamos precisar para acompanhar e avaliar se haverá efeitos colaterais? Nessa velocidade e com esse vírus que é altamente transmissível, precisamos levar em conta que não vamos ter vacina para todo mundo ao mesmo tempo e, mesmo que tivéssemos, não daria conta de vacinar a população toda num tempo pequeno a ponto de se diminuir totalmente a epidemia.

De outro lado, como temos essa necessidade de acompanhamento, a ciência ainda precisa dar várias respostas. O que temos de concreto, além da vacina, que está chegando, ou vai chegar – espero que chegue nos próximos meses ao Brasil – é: o que consegue diminuir a transmissão dessa doença é seguir as medidas clássicas de saúde pública. Ou seja, distanciamento físico, isolamento de casos confirmados e de casos suspeitos, uso de máscaras e não promover aglomeração social. Essas são medidas de que não poderemos abrir mão. Provavelmente neste ano de 2021 ainda teremos de realizar isso e fazer exatamente o que as autoridades de saúde pública estão propondo, ao mesmo tempo que a vacina vai dando conta de imunizar as pessoas.

O que a vacina está mostrando hoje é que ela evita que as pessoas fiquem doentes uma vez infectadas pelo vírus e, ficando doentes, também se evita uma progressão pior. Então, não dá para abrir mão de nada disso; é a vacina e isso.

No final do ano, vimos uma explosão de festas clandestinas, praias lotadas e também réveillon em festas nos mais variados estratos sociais. A pandemia agora revela o egoísmo e a falta de solidariedade do brasileiro?

Temos de separar as coisas um pouco, não podemos jogar na conta da população, na conta das pessoas, das brasileiras e brasileiros, o desastre que está sendo o enfrentamento dessa pandemia. Dá para jogar sim que o brasileiro precisa entender que neste momento, mais do que nunca, cidadania, respeito, solidariedade são fundamentais. Não adianta uma estratégia individual, não adianta uma pessoa estar vacinada e o entorno não, porque não vai resolver o problema e a pandemia vai continuar.

Sobre isso que você fala, de a sociedade ser menos solidária, infelizmente a tendência é que o ser humano busque primeiro cuidar de si. Mas isso depende muito de educação, de exemplos e não estamos vendo exemplos corretos e que nos mostrem o que é necessário fazer, por parte do Chefe da nação.

Ontem [dia 07-01-2021], o Brasil registrou 200 mil mortes oficialmente e tampouco estamos vendo exemplos de solidariedade às vítimas. Isso incentiva que as pessoas retirem delas o que há de pior – como temos visto nos EUA –, a falta de solidariedade, o egoísmo. Para reverter esse quadro, é preciso comunicação, educação e atitude exemplar.

Como os profissionais da saúde mantêm a esperança diante desse quadro?

Os profissionais da saúde, trabalhadores e trabalhadoras, têm tido uma atitude heroica, principalmente os que estão na linha de frente do SUS, atendendo às pessoas desde o início da pandemia. Imagine o nível de estresse e de esgotamento deles.

Graças a eles e à estrutura e capilaridade do SUS, foi possível atender a tantos brasileiros. Precisamos ser solidários aos profissionais de saúde, apoiá-los e pressionar o governo para que eles sejam valorizados, para que tenham equipamentos individuais de proteção, e para que haja organização e planejamento estratégico – o qual nunca ocorreu – para lidar com a pandemia, com integração de estados, municípios e a esfera federal.

Enquanto o governo federal ainda não decidiu sobre como será o processo de vacinação gratuito e universal, as clínicas privadas estão tentando importar e administrar doses. Inclusive, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse que isso é possível. O que essa situação revela sobre o Brasil e o modo de tratar a pandemia no país?

A inexistência, a omissão e a falta de um programa que determine a vacinação universal e gratuita, sem uma liderança para garantir o que pode ser feito hoje, corretamente, com contratos, clareza e transparência, faz com que as pessoas busquem alternativas individuais.

É muito difícil conseguir comprar uma vacina hoje através de clínicas privadas, até porque não tem vacina disponível no mundo para isso. Essa não é uma questão tão impactante no enfrentamento da pandemia, mas ações desse tipo ocorrem na medida em que não se vê uma resposta correta, que deveria ser dada pelo governo. Tudo que ocorreu até agora é em virtude da falta de organização, transparência e comunicação. Essa situação faz com que as pessoas busquem propostas individuais que serão inefetivas, considerando um problema de enorme dimensão como é esta pandemia.

A falta de gestão nesta crise fez com que crescesse a ideia do “salve-se quem puder”?

Sim, cada um cuidando de si. Mas no caso de uma pandemia, isso não dá certo, porque uma pandemia não é controlada individualmente; ela tem que ser encarada do ponto de vista de uma estratégia populacional. Vacinar uma pessoa sem vacinar o entorno não resolve o problema, porque o vírus continua circulando.

 

Na semana passada, o ministro Pazuello disse que a vacinação deve começar em janeiro e, novamente, em seus discursos, se envolveu em polêmicas sobre o assunto. Será possível iniciar a vacinação neste mês?

É decepcionante ver como a autoridade máxima sanitária tem uma fala tão descoordenada, desarticulada e incompetente para lidar com a crise. Nada do que ele disse foi suficiente para entendermos quando, de fato, a vacinação vai começar e o que o governo está pensando em fazer. O pronunciamento do ministro foi muito decepcionante para quem está à frente do cargo, e mostra a incapacidade do governo federal de lidar com o problema.

Não acredito – a não ser que as coisas avancem muito – que vamos ter essa boa notícia em janeiro, porque várias etapas do processo não estão claras, não somente em relação à vacina, mas como ela vai chegar e como serão organizados os grupos de risco. Por exemplo, como vamos vacinar aqueles que têm outras doenças? Como vamos saber quem são essas pessoas? De que modo esse processo será monitorado? Como os insumos vão chegar aos postos de vacinação? Como a vacina vai chegar na forma e temperatura necessária? Essas informações ainda não estão claras.

O governo está acenando a compra de cem milhões de doses da CoronaVac de São Paulo. Essa compra está fechada? O acordo está estabelecido? Todas as etapas foram finalizadas? A situação é preocupante e é com desconfiança que recebemos a mensagem do ministro e, digo novamente, de uma forma pouco transparente e sem uma resposta coordenada.

 

Quais são os maiores entraves para iniciar a vacinação no Brasil? Como superá-los?

O primeiro é a aprovação na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Depois da aprovação, saber como as doses vão chegar e, neste momento, quantas doses, efetivamente, temos em mãos. Isso precisa ser dito. Depois, precisamos fazer o cálculo bem feito e também a identificação dos grupos de risco, porque não há vacinas para todos, infelizmente.

Nenhum país do mundo está vacinando todo mundo porque não há disponibilidade de vacina para todos. Então, os grupos de risco terão que ser muito bem organizados para garantir a vacinação. Essa é uma etapa. A outra etapa é saber se hoje temos todos os insumos necessários, os profissionais capacitados para realizar a vacinação e se a gestão de distribuição, fiscalização, vigilância, monitoramento, está sendo articulada.

Na realidade, está tudo em suspenso. O Brasil tem experiência em outras campanhas de vacinação. O Programa Nacional de Imunizações brasileiro dava conta das vacinações, é claro que hoje a escala de vacinação é muito maior, mas não se pode jogar fora a experiência anterior.

O Brasil é um país que teria condições de fazer a vacinação, porque temos profissionais capacitados, como sanitaristas, epidemiologistas, virologistas, pessoas que trabalham com formação dos profissionais da saúde, a estrutura do SUS, mas a opção deste governo foi desconstruir e desmontar a estrutura que existia.

Qual sua avaliação sobre o calendário e a organização dos grupos que devem ser imunizados primeiro? Segundo o calendário, os professores não estão entre os prioritários e alguns estados falam na possibilidade de reabrir as escolas. Em alguns estados, como no Rio Grande do Sul, está se pleiteando a inclusão dos professores nos primeiros grupos.

A Organização Mundial da Saúde – OMS também faz uma proposta de grupos prioritários. Com certeza, entre os primeiros devem estar os profissionais da saúde, que estão, de fato, em risco porque estão lidando com doentes infectados. Nessa lista também estão aqueles que podem ter um agravamento do quadro, uma vez tendo a infecção do vírus, como idosos e pessoas com problemas de saúde, deficientes físicos e populações em situação de vulnerabilidade, como indígenas e quilombolas, que vivem em condições em que há um risco maior de a doença evoluir.

A vacinação dos professores é correta, mas para que ela ocorra, temos que trabalhar essa questão. A Abrasco, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, juntamente com outras entidades da saúde e da educação, publicou um manifesto na perspectiva de orientar como poderia ocorrer a reabertura das escolas com segurança. Para que isso ocorra, novamente, precisamos de um plano de educação e saúde. Somente vacinar os professores sem cuidar dessa parte, não vai resolver o problema. Podemos pensar que os professores deveriam estar escalados entre os grupos de risco, mas a vacinação deles tem que vir junto com uma proposta muito clara de como serão protegidos também os estudantes e todas as pessoas envolvidas no trabalho escolar, que não são somente os professores. Então, é fundamental esse trabalho de parceria entre educação e saúde para elaborar um plano estratégico. 

 

IHU On-Line – Alguma experiência já realizada em alguma escola pode ser vista como modelo para o restante do país?

As experiências são muito localizadas. Há algumas escolas, que para voltar a funcionar, conseguem fazer discussões que integram os profissionais, mas também os familiares, os pais. Tem sido um problema grande das famílias com crianças com mais dificuldade na aprendizagem, ainda sobre o que fazer com elas se os pais precisam retornar ao trabalho. Então, assim, as escolas que estão conseguindo lidar melhor com isso são aquelas que têm tentado resolver os problemas de forma coletiva e conjunta, porque quando se discute e ouve opinião, mas também tem a solidariedade do entorno, a resposta é melhor.

Como garantir que a vacina vai chegar às regiões periféricas e, sobretudo, às regiões marginalizadas?

Essas populações de maior vulnerabilidade deveriam estar entre os prioritários. Isso deveria estar articulado com a Estratégia Saúde da Família – ESF, que justamente é quem da rede SUS chegava às comunidades, bem como estar articulada com o PNI e todas ações de vigilância e saúde. Se isso não ocorrer, se não for garantido o número necessário de trabalhadores para atingir essas comunidades, não vamos conseguir vencer o desafio. A capilaridade do SUS precisa ser fortalecida.

 

Disso se pode concluir que o plano de vacinação apresentado ao Supremo Tribunal Federal – STF e tornado público é lacônico ou, pior, uma peça de ficção?

É um plano anêmico, como nós chamamos.

A Oxfam Brasil diz que garantir a universalidade da vacina passa pela quebra da patente das indústrias farmacêuticas. Qual sua opinião sobre isso?

Essa questão é importante. Nos acordos da Fiocruz e do Butantan, com a AstraZeneca e Oxford e com a CoronaVac, eles pressupõem, sim, transferência de tecnologia. O que significa que enquanto a vacina é comprada e mantida por estas empresas elas têm o compromisso de transferir tecnologia para que daqui a um tempo o Brasil possa ter a produção nacional. Essa garantia da transferência de tecnologia já era feita com outras vacinas. Por um tempo, estas empresas fabricantes são as responsáveis por fazer as vacinas, mas passados os contratos, a responsabilidade passa a ser dos institutos do Brasil.

 

O desafio, então, seria fazer isso em outras partes do mundo?

Exatamente. Esse é um processo em que se vai pedindo a quebra das patentes por necessidade de saúde ou calamidade pública.

 

Como a senhora avalia o anúncio do Butantan sobre a eficácia da CoronaVac?

Como se trata de uma vacina nova e nós – o mundo – estamos lidando com uma situação de muita emergência, na realidade foi exemplar ter conseguido desenvolver vacinas e garantir produção em tão pouco tempo. Na situação em que nós estamos, a cobertura divulgada pelo Butantan é boa. Em seu processo de desenvolvimento, a vacina passa por várias etapas. Uma delas é a de segurança, que é, justamente, o teste para ver se ela é segura. Portanto, é uma vacina cuja eficácia não é ruim.

No entanto, precisamos entender melhor o que significam todos os dados levantados durante estes testes. Isso tudo foi apresentado de forma muito resumida. É importante que a gente tenha o artigo científico mostrando, exatamente, qual é a eficácia desta vacina no geral, a eficácia nos diferentes grupos, e é importante saber, quando for encaminhar e pedir a autorização da Anvisa, se todas estas questões estão claras. Isso vai ocorrer com todas as vacinas que solicitarem autorização à Anvisa. Podemos dizer que é uma boa notícia, mas precisamos de mais detalhes para saber se isso será suficiente para a autorização do uso no país.

Temos que ver também que esse total não é suficiente para vacinar toda a população, mesmo priorizando os grupos de risco até chegar ao restante dos brasileiros. A questão do tempo é fundamental em todo esse processo, pois devemos saber quanto tempo vamos levar para vacinar todos.

Deseja acrescentar algo?

Temos de destacar que mais importante do que dizer se a vacina é obrigatória ou não, devemos fazer com que as pessoas compreendam que se vacinar é um ato de cidadania e solidariedade. É, também, um ato de salvar vidas. Não tenham medo de se vacinar. Vamos recuperar o histórico brasileiro de que a população sempre teve uma excelente adesão às campanhas de vacinação. Eu não acredito que a população vai se recusar a isso.

Precisamos chamar atenção para a questão da vacina, mas sem abrir mão das demais medidas protetivas. Isso é diferente de dizer se as pessoas querem ou não se vacinar; trata-se de trazer a discussão para o outro lado, o lado positivo, da adesão, o lado de que o brasileiro, sim, é um povo que se preocupa com o outro e temos que resgatar o melhor de nossa tradição de solidariedade e de preservação da vida.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Veja também

Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Vitor Santos

LEIA tAMBÉM

Aborto, pobreza e mão de obra barata uma lógica vital ao capitalismo
Aborto, pobreza e mão de obra barata: uma lógica vital ao capitalismo
Fechar Hospital Nacional de Saúde Mental é ataque de Milei à memória histórica argentina
Fechar Hospital Nacional de Saúde Mental é ataque de Milei à memória histórica argentina
Agrotóxicos_Europa_UE_America_do_Sul
"Colonialismo químico": UE inunda América do Sul com agrotóxicos proibidos em solo europeu
Protesto contra Gilead por preço cobrado pelo lenacapavir, medicamento contra HIV
R$ 237 mil por medicamento anti-HIV é apartheid no acesso à saúde e afeta Sul Global, diz ativista