“Há dez anos tua adolescência foi notícia
marcaram com faca as tuas pernas porque não quisestes
gritar ‘Viva Hitler’ nem ‘Abaixo Fidel’
Eram outros tempos e outros esquadrões
mas aquelas tatuagens encheram de assombro
um certo Uruguai que vivia no mundo da lua
Agora aniquilaram em Recife
teus vinte e sete anos
de amor templado y pena clandestina”
Fragmento do poema “Muerte de Soledad Barrett” de Mario Benedetti, em sua homenagem em 1973.
Foto Reprodução Facebook
Jovem foi agredida por três homens por usar camisa com a frase ‘Ele não’
Soledad Barret foi a lutadora mais sul-americana que viveu e resistiu em nossas terras. Nasceu em um berço paraguaio de luta. Seu avô Rafael era um jornalista, escritor e militante anarquista de origem espanhola. Devido à ditadura de Higinio Moríginio (a quarta de muitas no Paraguai), a família decidiu se refugiar na Argentina.
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O pai de Soledad, Alejandro Barret, estudou na Escola Naval argentina. Apesar de ser um aluno destacado, não chegou a iniciar a carreira militar. Segundo a pesquisadora uruguaia Virginia Martinez, no próprio ato de graduação militar Alex negou-se a fazer a saudação à bandeira argentina, em repúdio à guerra da Tríplice Aliança em que, junto ao Brasil e Uruguai, o país destruiu o Paraguai. Cinco anos depois, a família voltou para terras paraguaias. Soledad cresceu e sua formação a levou a militar desde cedo .
Ainda sob repressão no Paraguai, a família de Soledad voltou a se exilar. Foram para Montevidéu, onde a adolescente participou ativamente de atividades culturais e em solidariedade à situação em seu país.
Com 17 anos, em 1962, com a chama da revolução cubana já acesa e consolidada, e os Estados Unidos aumentando o controle e a vigilância sob a região, Soledad foi sequestrada, no Uruguai, por uma milícia de extrema-direita, anticomunista e anti-semita (sua mãe era de origem judia).
O Uruguai era dos poucos países da região que possuía embaixadas de países comunistas na época e, portanto, era objeto de intervenção da CIA, como ficou demonstrado em pesquisas de historiografia recente.
“Viva Hitler, Abaixo Fidel”, foi o que a milícia tentou forçá-la a dizer. A jovem se negou. Como castigo, os homens talharam com faca uma suástica em cada coxa de Soledad. Após o atentado terrorista, foi para Moscou e logo para Havana, onde recebeu treinamento militar. Na ilha, conheceu o marinheiro brasileiro José Maria Ferreira de Araújo, com quem tem a filha Ñasaindy de Araújo Barret. José voltou para o Brasil e teve seu desaparecimento forçado em 1970, após ser levado ao DOI/CODI.
Soledad voltou de Cuba quando soube do desaparecimento de Araújo. Se integrou ao grupo de seu companheiro, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O grupo enviou a militante para Recife, onde um tempo depois conheceu cabo Anselmo.
O cabo era um agente duplo e entregou Soledad e seus companheiros à ditadura brasileira, que realizou o que ficou conhecido como Massacre da Granja São Bento. Soledad Barrett foi assassinada junto aos seus companheiros José Manuel, Pauline Reichstul, Evaldo Ferreira, Jarbas Pereira e Eudaldo Gomes.
O poeta e escritor Mario Benedetti e o músico e comunicador Daniel Viglietti, amigos de Soledad dedicaram ambos um poema e uma música à jovem revolucionária. Benedetti escreveu o poema quando soube do assassinato de Soledad.
“…a segunda vez como farsa miserável”
Na quarta-feira (10), após o primeiro turno das eleições, uma jovem de 19 anos que usava uma camiseta com a frase #EleNão, foi agredida com socos por um grupo de homens que talhou uma suástica na sua barriga. Certamente pelo medo induzido pelos mais de 50 ataques após o primeiro turno das eleições, incluindo um homicídio, por parte de eleitores declarados do candidato de extrema-direita Bolsonaro, a jovem decidiu abandonar a procura por justiça.
Vídeos, mensagens, respostas em posts do facebook, sustentam que a menina foi quem talhou a suástica no próprio corpo. Não vou compartilhar o que vi, mas a reação existe. Adivinhem o que foi dito sobre Soledad Barrett em 1962? A imprensa cogitou que foi ela mesma quem talhou as suásticas nas pernas. Quase dez anos depois, Soledad foi assassinada durante a ditadura brasileira.
Os questionamentos e a negação do fato fascista contra uma menina de 19 anos é feito em um país em que uma mulher é assassinada a cada duas horas. Uma cifra que aumenta. Em 2016, foram assassinadas 4.201 mulheres, em 2017, 4.473.
Ninguém registrou o que Soledad, com 17 anos, respondeu ao esquadrão fascista que mandou ela dizer “Viva Hitler, abaixo Fidel”, mas sei que Mário e Daniel e as e os militantes de toda a América Latina têm absoluta certeza que Soledad Barret gritou na cara dos fascistas: “NUNCA!!”.