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O que o chavismo nos ensina sobre o poder da resistência popular na defesa da democracia

Bem como na Venezuela, a luta no Brasil representa também a defesa da nossa soberania e da nossa independência
José Dirceu
Jacobin

Tradução:

Ainda me recordo, em abril de 2002, quando ouvi no rádio do carro a notícia da tentativa bem sucedida, conforme tudo indicava, do golpe de Estado contra Hugo Chávez. Sem vacilar disse: “se eu fosse venezuelano, pegava em armas para defender o governo e a revolução bolivariana”.

Fiquei chocado com a posição de alguns líderes da esquerda, mas os compreendi. Chávez, relembravam, dera um golpe militar com certo apoio popular, contra a traição de Carlos Andrés Peres – o CAP que, eleito presidente com um programa e promessas, submeteu-se ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e implantou um ajuste fiscal antipopular.

Não esquecia o Caracazo, quando o povo desceu dos morros e se revoltou em fevereiro de 1989. Anos depois, Chávez sabia o que fazia e já tinha o seu Movimento Revolucionário Bolivariano (MRB). Foi preso, fracassou na rebelião, mas plantou as sementes da sua vitória eleitoral em 1998. Na esquerda ficou a desconfiança que pesava contra Chávez, por ele ser militar e pela tentativa de golpe em 1992, sendo que nós mesmos, do Foro de São Paulo, tínhamos opiniões diferentes sobre ele e o seu MRB.


Autodefesa popular

Sua avassaladora vitória na Constituinte, a retomada da Petróleos de Venezuela, S.A. (PDVSA), a reforma agrária, a fundação do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), não deixavam dúvida. Chávez era um dos nossos, um líder latino-americano, que fazia jus a Simon Bolívar.

O livro Construindo a Comuna, de George Ciccarello-Maher, é oportunidade rara para conhecermos uma experiência radical, democrática, política, cultural, socioeconômica: as comunas, uma forma de organização de revolução democrática, participativa, e com conteúdo radical, que dependendo da correlação de forças e do meio social, pode constituir apenas um coletivo político, ser produtiva, de autodefesa, armada. É política, cultural, é poder popular.

“Surgidas entre 1980 e 1990 como forma de autodefesa contra gangues, estas são as guerrilhas que foram contra a própria polícia repressora de pobres e negros.”

O livro traz lições para nós brasileiros, que enfrentamos entre 2013-16 as mesmas estratégias de desestabilização e sabotagem; os mesmos métodos, as formas de organização, as táticas e instrumentos que levaram ao golpe institucional em 2016 e à prisão de Lula em 2018.

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Lá houve resistência. Primeiro, em 2002, quando, impedindo o golpe, as comunas e coletivos tiveram papel decisivo para convocar e garantir que o povo apoiasse Chávez. Aqui faltou esta resistência popular e organizada. Ali houve não só o apoio de parte das forças armadas depois da renúncia forçada de Chávez, mas também da maioria do povo, que lhe deu sucessivas vitórias eleitorais e ainda elegeu Maduro em 2013.

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Lá, como aqui, a direita derrotada nas urnas apelou para a desestabilização e sabotagem do país entre 2014-16, período que este livro cobre. Manifestações, panelas, trincheiras em fogo, locaute econômico, todos apoiados pelas classes médias e pelos EUA. É o caminho para lutar neste contexto que o livro descreve, o apoio externo de ONGs e fundações, a criação de grupos políticos de direita como o Vem Pra Rua e MBL brasileiros; lá a “operação liberdade” e a Juventud Activa Venezuela Unida (JAVU), apoiadas pela agência governamental Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), pelo International Republican Institute (IRI), National Endowment for Democracy (NED), entre outros. Eles financiaram e treinaram a oposição na Venezuela.

Outro paralelo – para além dos panelaços e da violência nas ruas contra petistas, nossas bandeiras, sedes e símbolos –, foi o uso das redes sociais e das fake news, ocultando a responsabilidade da oposição pela violência e pela falta de gêneros de primeira necessidade.

Foi antes da vitória de 2015 que a oposição tentou uma insurreição fracassada, mas acabou por desorganizar a economia, já fragilizada pela queda do preço do petróleo e pelo boicote e posterior bloqueio norte-americano, em um país totalmente dependente do petróleo e das importações. Com Chávez morto e a crescente insatisfação popular, o resultado era previsível. Assim, após duas vitórias em 2013, o PSUV perdeu a maioria na Assembleia Nacional em 2015.

Bem como na Venezuela, a luta no Brasil representa também a defesa da nossa soberania e da nossa independência

Juvenal Balán

As mudanças efetivadas em benefício do povo pobre, da revolução e do pensamento bolivariano, são mais profundas e estão enraizadas no povo




Quando as favelas se organizam

O livro estuda, revela e conta a história das comunas, do poder popular, da autodefesa, do povo organizado, das novas formas cooperativas ou coletivas de produção e controle popular. Surgidas entre 1980 e 1990 como forma de autodefesa contra gangues, estas são as guerrilhas que foram contra a própria polícia repressora de pobres e negros. Durante o processo revolucionário elas transformaram-se em poder popular, formas de produção e organização popular.

Para nós, que já sofremos um processo semelhante, é decisivo compreender como e porque a revolução bolivariana, apesar da gravidade da crise econômica, paralisação parcial do sistema econômico, bloqueio quase total pelos EUA, sobreviveu e se mantém. Será apenas pelo apoio militar ou deve-se às raízes do chavismo?

As mudanças efetivadas em benefício do povo pobre, da revolução e do pensamento bolivariano, são mais profundas e estão enraizadas no povo, aquele mesmo que desceu dos morros libertando Chávez em 2002, que apoiou a validação do processo político e econômico na Venezuela. Um povo que resistiu a uma tentativa de golpe e outra de insurreições nas ruas, que construiu as comunas, que foram decisivas para mobilizar e organizar a resistência.

“A Venezuela, sem o chavismo e seu povo, já teria tido o mesmo destino do Iraque e da Líbia.”

Entre 2014 e 2018, foram as comunas e o povo chavista que enfrentaram a direita armada nas ruas e nas barricadas, que lutaram contra a tentativa de dividir o exército e dar um golpe militar, que votaram na Constituinte de Maduro. Sem eles, Maduro e o exército não teriam resistido à direita, que conta com o apoio dos EUA, da Europa e do Grupo de Lima, assim como do Brasil de Jair Messias Bolsonaro. A Venezuela, sem o chavismo e seu povo, já teria tido o mesmo destino do Iraque e da Líbia.

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O livro é leitura obrigatória para nós, brasileiros, que seguramente enfrentamos um processo similar e fomos derrotados, em 2013-18. Bolsonaro, seu PSL, MBL, VPR, seus milicianos, não deixarão o poder sem resistência. Isso, sem considerar que as Forças Armadas, a milícia, o aparato policial-judicial estão a serviço das elites rentistas e, assim como lá, igualmente contam com o apoio dos EUA.

Aqui estamos vivendo o desmonte não só dos avanços sociais da era Lula como do próprio Estado Nacional. A luta na Venezuela e aqui representa também a defesa da nossa soberania e da nossa independência, a defesa da democracia, sempre a primeira vítima desses golpes, como estamos vivenciando com Jair Bolsonaro.

José Dirceu foi líder estudantil e guerrilheiro urbano na ditadura. Na democracia foi advogado, deputado, ministro da Casa Civil e um dos principais arquitetos do Partido dos Trabalhadores. Lançou recentemente sua autobiografia pela editora Geração.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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José Dirceu

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