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Imagem: Freepik

Os arquetípicos do fascismo (e seus antídotos) segundo Umberto Eco

Listar alguns antídotos contra o eterno fascismo não é difícil. Torná-los prática política, educacional, constitutiva de uma sociedade, são as questões cruciais, pontua Umberto Eco
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Umberto Eco avança na análise dos diversos formatos e manifestações do fascismo que, de tão antigas, criaram seus próprios arquétipos, impregnando-se nas mais diferentes estruturas sociais.

Os quatorze arquétipos do fascismo

1. O culto da tradição como uma das bases do fascismo: O tradicionalismo, ainda mais velho que o próprio fascismo, possui como paradigma que todas as mensagens originais contêm pelo menos um germe de sabedoria, um quê de alguma “verdade” dita primitiva. Com isso ele visa claramente estabelecer uma impossibilidade para avanços no saber! O culto da tradição, principalmente a religiosa, mas também a política, impõe que a verdade já foi anunciada de uma vez por todas e somente nos restaria continuar a interpretar sua obscura mensagem. De todo modo, ao cultuar a tradição, o fascismo o realiza de uma maneira sincrética.  Apanha conceitos de doutrinas e ideologias diferentes, municiando-se da artificialidade dessa reunião, mesmo que teoricamente sejam incongruentes entre si.

2. O tradicionalismo como recusa da modernidade: se por um lado os fascistas adoram a tecnologia, por outro, o seu elogio da modernidade não passa de coisificação, dado que são adoradores de máquinas, não de ideias. No século 20, a recusa do modernismo camuflou-se com a condenação do modo de vida capitalista (Mussolini, na Itália). Acontece que esta condenação era tão somente uma roupagem, urdida em conjunto com os grandes capitalistas, já que se tratava de afastar o “fantasma” do comunismo.

O fascista do século 20 e 21 opõe-se até mesmo ao Iluminismo e à idade da razão, vistos como pontos de partida para a “depravação” moderna. Por este caminho, o arquétipo fascista esteia-se no irracionalismo.

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3. Culto da ação pela ação: Trata-se de um fruto necessário do irracionalismo. A ação torna-se bela em si e deve ser realizada sem qualquer reflexão. O fascismo de ontem, de hoje e de sempre odeia “a cultura”, dado ser ela em si, uma atitude de crítica. A suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi e será um sintoma do fascismo.

4. O banimento da crítica: Na medida em que o espírito crítico opera distinções e distinguir é sinal da modernidade, para o fascismo a crítica é sempre lida como desacordo ou traição, não importa o partido político em que o viés fascista se manifeste.

5. A diversidade: quando o fascismo cresce, ele busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. Logo, é essência do mesmo a xenofobia, a piores demonstrações de racismo.

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6. O fascismo aproveita-se da frustração individual ou social: a característica dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por crises econômicas, pela humilhação política, pela falta de representatividade de seus agentes (os políticos), assustadas pela pressão de grupos sociais inferiores. E essa ampla classe média consiste e consistirá na maioria do auditório fascista.

7. O patriotismo: para aqueles que se sentem privados de qualquer identidade social, o fascismo lhes diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: terem nascido em um mesmo país. Esta é precisamente a origem do “patriorismo”. O fascismo carrega o viés de que os únicos agentes que podem conferir autenticidade ao “nacional” serão os inimigos da nacionalidade, sejam eles internos ou externos. Daí a obsessão pelo complô, pelo golpe, pelas invasões de outros países, pelas guerras. Para levar os “nacionalistas” aos extremos, os defensores do fascismo precisam se sentir sitiados e o modo mais rasteiro e facilmente sentido são novamente, a xenofobia e o racismo.

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8. A doutrina do “faccio” romano: se os adeptos do fascismo se sentirem humilhados pela riqueza ostensiva ou pela força do inimigo, a doutrina do “faccio” leva-o a supor que pode vencê-lo. É por isso que, os regimes fascistas se fortalecem com a visão de que os inimigos, quer internos, quer externos, sejam ao mesmo tempo, fortes e fracos demais

9. Para o fascismo não há luta pela vida: vale a vida pela luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo, a vida uma guerra permanente.

10. O “elitismo de massas”: o elitismo é típico de qualquer ideologia reacionária. No curso da história, todo elitismo aristocrático ou militarista implicou em desprezo pelos fracos. Já o fascismo prega um “elitismo popular”. Logo, todos os cidadãos pertencem ao melhor dos povos, os membros dos partidos, são os melhores cidadãos. E todo cidadão deve pertencer ao partido. Embora o líder fascista saiba que seu poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela pressão e pela força, sabe igualmente que sua força se baseia na debilidade das massas populares, tão fracas que têm necessidade e merecem um dominador. Ao se organizar, o fascismo cria estruturas em que um líder despreza seus subordinados, do mesmo modo em que seja desprezado pelo chefe. Isto reforça o “elitismo de massa. ”

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11. “A criação de heróis”: cada membro de uma organização fascista é educado para tornar-se um “herói”, um ser exemplar. No fascismo de sempre, o heroísmo é norma, na justa medida em que este culto se liga a um outro: o da morte! O fascista espera impacientemente sua morte e enquanto esta não chega ele assassina “banalmente” outros mortais.

12. “O sexismo dos preconceitos”: como tanto a guerra permanente quanto o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o fascista deriva a sua vontade de poder para jogos sexuais. Aí está a origem do machismo, da intolerância para com os homossexuais, a base de uma “cultura” de estupro dos seres imediatamente inferiores ao macho: a mulher.

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13. O populismo qualitativo: no populismo qualitativo, os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e o “povo” é concebido como uma entidade de personalidade monolítica, que somente expressa uma vontade comum a qual tem em seu líder o único intérprete. E os cidadãos, tendo perdido o poder de delegar, não agem mais, sendo chamados exclusivamente para assumirem o papel de “povo de massa”. O populismo qualitativo hoje é disseminado pelas televisões e redes sociais, locais em que a resposta e a participação de um grupo selecionado de “influencers” pode ser apresentada e aceita como “a voz do povo”. O fascismo, em virtude de seu “populismo qualitativo” opõe-se aos “pútridos partidos parlamentares”. Por isso, cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade democrática, pode-se sentir nele o cheiro do fascismo.

14. A utilização de uma linguagem empobrecida: o fascismo fala sempre uma nova língua, língua onde o léxico é pobre, a sintaxe elementar, tudo é simplificado e “popular”, um excelente instrumento voltado a limitar o surgimento de qualquer tipo de raciocínio complexo ou crítico.

Antídotos antifascistas, segundo Umberto Eco

Ao mesmo tempo em que solta o seu grito de alerta, Eco também conclama ser nosso dever, enquanto homens livres, desmascarar o fascismo e apontar sempre o dedo em riste para cada uma de suas formas, em qualquer lugar onde apelos fascistas surjam à luz do dia. E, nesse sentido, a liberdade e a liberação transformam-se em tarefas diuturnas, das quais não poderemos descurar sob pena do avanço da barbárie.

Listar alguns antídotos contra o eterno fascismo não é difícil. Torná-los prática política, educacional, constitutiva de uma sociedade, são as questões cruciais, pontua Umberto Eco.

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Um destes contravenenos, talvez o mais importante, seria o pensamento crítico, a reflexão sobre o próprio pensar, a formatação de um pensamento modesto e, finalmente, a popularização do pensar filosófico, por si só questionador.

Buscar a razão sempre, dado que o problema da irreflexão é que aqueles que se conduzem por códigos e regras são os primeiros a aderir e a obedecer. Aquele que não pensa por si mesmo possui um eu que não fundou raízes, é um ninguém. São seres humanos que se recusam a serem pessoas, mas sim, ralé.

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Já no dizer de Karl Jaspers, psiquiatra e filósofo alemão, “ser ninguém é pior que ser mau; esse ser ninguém se revela inadequado para o relacionamento com os outros, porque os bons e os maus são, no mínimo, pessoas. É isto que faz da banalidade do mal, do fascismo, o pior dos males: espalha-se rapidamente sem necessidade de qualquer ideologia, ou apesar de qualquer que seja o viés ideológico”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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