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Processo contra diplomatas chineses presos pela ditadura pode ser encerrado após 58 anos

Em abril de 64, delegação acusada de “ameaça comunista” teve bens confiscados e foi expulsa do Brasil, dando origem a ação judicial pendente até hoje
Guilherme Ribeiro
Diálogos do Sul
Bauru (SP)

Tradução:

Em 3 de abril de 1964, uma delegação com nove diplomatas chineses que visitavam o Brasil foi presa por apresentar uma suposta “ameaça comunista”. A justiça alegou que as agulhas de acupuntura que traziam consigo eram artefatos homicidas e que pipas seriam mísseis direcionados ao assassinato de autoridades.

Além dos itens, pertencia à equipe também 49,2 mil dólares, 189 mil cruzeiros, 2,2 mil francos suíços, 138 libras, 3 rublos e 3 kopeks, destinados à compra de algodão e a realização de uma exposição China-Brasil, já autorizada pelo Governo Brasileiro. Todos os pertences foram apreendidos. A ação contra a comitiva chinesa foi o primeiro grande incidente diplomático com o qual a ditadura buscava uma evidência para justificar o golpe. Na justiça brasileira, foi originado o processo n. 34.582/65, pendente até hoje, 58 anos depois.

Leia também: Golpe de 1964 foi também golpe contra direito de indígenas e camponeses à terra

Ciente do fato e a partir de informações obtidas com membros que atuaram na Comissão Nacional da Verdade, João Vicente Goulart, filho do ex-presidente Jango, no último dia 30 de março impetrou habeas corpus para encerrar definitivamente o caso, declarar a extinção da punibilidade e determinar a devolução dos recursos apreendidos.

Segundo o advogado do caso, Victor Neiva, a China tem um princípio de não interferência na política interna de outros países, o que demanda grande importância em finalizar o problema: “Essa acusação para eles é muito grave, todos eles se tornaram heróis nacionais, é uma questão de honra”, explica Neiva.

Na época, os representantes foram condenados em primeira instância a dez anos de prisão e expulsos do país no ano seguinte, sem que o recurso fosse julgado. Além da quantia em dinheiro confiscada até hoje, a rigor ainda são válidas as ordens de prisão e os diplomatas estão impedidos de entrar no país.

O processo só pode ser finalizado em âmbito brasileiro e nenhuma autoridade tomou a iniciativa, comenta Neiva: “É um absurdo que a justiça militar não tenha se dignado nem mesmo a pronunciar a prescrição, legitimando que até hoje se reafirme a fake news de suposta ameaça comunista”. Ele acredita que pode ter havido uma deliberação na época de engavetar e esquecer o processo: “Embora entendam isso como uma questão relevante para a China, o Brasil resolveu fingir que isso não existia”, aponta.

Em abril de 64, delegação acusada de “ameaça comunista” teve bens confiscados e foi expulsa do Brasil, dando origem a ação judicial pendente até hoje

Comissão Nacional da Verdade
Além da quantia em dinheiro confiscada, a rigor ainda são válidas as ordens de prisão e os diplomatas estão impedidos de entrar no país

Durante o governo Dilma, chegou-se a condecorar os chineses da delegação injustamente acusada, uma forma de pedido de desculpas para tentar equacionar o impasse diplomático. No entanto, as medalhas estão engavetadas na Embaixada do Brasil em Pequim, observa Neiva. Em 2014, a Comissão da Verdade do Rio realizou uma audiência pública para expor a verdade sobre o caso e contribuir para a reparação moral dos cidadãos chineses. O encontro contou com a exibição de um vídeo com o depoimento de Ju Quingdong, um dos nove diplomatas hostilizados. A seguir, confira a transcrição do depoimento, divulgada pela Comissão Nacional da Verdade, e logo após o vídeo:

Senhoras e senhores, volta ao meu conhecimento a Comissão da Verdade. Sou uma das nove vítimas chinesas. Eu tenho 84 anos. Eu era funcionário da Agência de Notícias Xinhua, autorizado pelo governo brasileiro. Fui ao Brasil em Dezembro de 1961, como assistente do correspondente da Agência Xinhua, senhor Wang Wei Chen. A partir daí, até o início de Abril de 1964, quando houve o golpe militar, para levar no sentido jornalístico para aumentar a cooperação mútua e amizade entre o povo chinês e o brasileiro. Tudo o que fazíamos estava conforme a lei do Brasil, mas tudo mudou no dia 3 de Abril de 1964. Desde a manhã de 2 de Abril, o prédio de apartamentos onde estava situada a sucursal de Xinhua foi vigiado e controlado pela polícia. Até tarde, policiais cercaram o prédio na rua Senador Vergueiro. Tocavam a campainha para entrar pela porta. Gritavam em voz alta solicitando que abríssemos a nossa porta. Depois, policiais quebraram a porta de vidro do prédio e entraram à força. Após a entrada à força no apartamento, eu fui amarrado com os braços para trás, e forçado a ir com eles em todos os cômodos do apartamento. Eles batendo cruelmente em mim golpearam minha face com a coronha. Ao mesmo tempo, policiais obrigaram o senhor Wang Yaoting, Su Ziping e Ma Yaozeng, que moravam juntos comigo no mesmo apartamento, a se encostar na esquina da parede e nos apontava com arma e gritavam “recebemos a ordem para fuzilá-los imediatamente”. Não havia diálogo, só ameaças. Confiscaram o nosso dinheiro como prova de acusação. Essas atrocidades demoraram mais quatro horas e nossos corpos estavam cheios de feridas. Outros policiais faziam buscas em toda parte, tentando encontrar provas de crimes. Após a bárbara batida e saques, já eram nove horas da manhã. Fomos levados ilegalmente para DOPS, onde fomos outra vez batidos, e obrigados a ficar de pé. Policiais cerraram-me sozinho numa câmara de tortura, torturando e me obrigando a confessar. Usavam a ponta de cigarro para queimar minhas pernas e pisavam na minha barriga com sapato de couro. Durante a detenção e interrogatório ilegais, em conluio com agente de Comintern de Taiwan, fazia interrogatório secreto noturno. No entanto, continuamos encarcerados com controle e perseguição política, continuava a ser maquinado. Desde o dia 4 de Setembro de 1964, foram feitos sete julgamentos abertos durante seis meses. Devido à oposição da população brasileira e à justa solidariedade da opinião pública internacional, e sobretudo à defesa enérgica do Dr. Sobral Pinto, a verdade do caso se fazia cada vez mais clara, mas a justiça militar, através de longo julgamento, ainda nos condenou a cada um a dez anos de prisão, alegando o suposto crime de subversão. No final, o presidente da república brasileira decretou nossa expulsão. A China e o Brasil são dois países grandes e seus povos, tão grandiosos, historicamente temos sido grandes amigos. Este caso político sabotou as relações internacionais e feriu os sentimentos do povo chinês, deixou uma mágoa inapagável nas vítimas e em seus familiares. No entanto, o caso já passou meio século. Quarenta anos atrás, no momento das negociações sobre o estabelecimento das relações diplomáticas, a pátria brasileira manifestou que o caso foi politicamente errado e prometeu tomar providências para desfazê-lo, mas até agora não foi nada feito.  Hoje em dia, o relacionamento bilateral é sadio e os dois povos são amigos, e nessas circunstâncias, no ano de 1997, 23 anos depois do restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, quando eu visitava minha filha em Santiago do Chile, queria muito visitar o Brasil, onde vivi e trabalhei, e fui junto com minha senhora à embaixada brasileira em Santiago para fazer o requerimento do visto. Fomos informados que esperássemos a resposta de Brasília. Esperamos, mas finalmente não fui atendido. O povo chinês é amigo para com o povo brasileiro. Nos anos em que nós trabalhávamos no Brasil fomos calorosamente recepcionados e adotados por colegas da mesma profissão, e demais amigos dos diversos setores sociais. Mesmo durante a nossa prisão e julgamentos ilegais, muitos amigos apareciam, com coragem, defendiam a justiça e apoiavam a nossa justa luta contra a perseguição política. A eles ficamos sempre gratos e com saudades. Obrigado.

Depoimento de Ju Quingdong – Comissão Nacional da Verdade

De acordo com João Vicente Goulart, “Jango foi quem abriu os laços de amizade Brasil-China em sua histórica viagem [ao país asiático] em 1961, quando deu-se a renúncia [à presidência]”. Ainda segundo Goulart Filho, é “impressionante que, mesmo sendo hoje a China nosso principal parceiro comercial, não nos dignamos a resolver nossas pendências e conflitos diplomáticos do passado”.

A isso, Victor Neiva atribui responsabilidade às viúvas da ditadura dentro dos órgãos e que até hoje nos governam: “É sempre importante resolver nossas questões, nos afirmar como uma nação séria. A partir do momento que fazemos isso, temos mais espaço para construir melhores acordos”, explica.

Neiva esclarece que o habeas corpus é um processo com prioridade, com início na última instância, e não deve demorar para ser analisado. Finalizar a ação, segundo ele, oferece segurança jurídica ao Brasil, “o que é melhor para a gente enquanto nação em todos os aspectos”, conclui.


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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Guilherme Ribeiro Jornalista graduado pela Unesp, estudante de Banco de Dados pela Fatec e colaborador na Revista Diálogos do Sul.

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