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ToggleNão há ideologia que resista a fatos, desde que não sejam distorcidos como acontece o tempo todo – não em período eleitoral. Na década de 1970, o mantra de idealistas defensores de igualdade e fraternidade era “Socialismo ou Barbárie”.
Pois ela chegou com tudo, como se vê no crescente número de seres humanos a perambular pelas ruas como zumbis sem ter onde cair vivo ou morto. Conheça seu Osni, até recentemente morador de um ponto de ônibus no bairro Perdizes. Ele é o típico subproduto de um sistema que se impõe a ferro, fogo e desinformação em massa sua ideologia bandida.
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O Brasil é uma grande nação. A cada ano que passa, sua pujança se reafirma com a quebra de recordes na safra de alimentos, assim como na exportação de aço, petróleo cru e uma infinita lista de commodities, cujo destino é o hemisfério norte – EUA e Europa preferencialmente.
Junto com a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, ruiu a União das Repúblicas Socialistas, URSS, retardando o sonho de uma sociedade capaz de trabalhar e dividir o fruto de seu suor de forma igualitária. Desde então, os Estados Unidos – junto com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – dominam a economia mundial segundo a concepção estrita do capitalismo – mesmo que a China tenha o maior mercado consumidor da Terra.
Só que o triunfo do capitalismo não significa melhoria na condição de vida da população. Muito pelo contrário, como se vê dia a dia. Medalha de ouro na exportação de alimentos, o Brasil já tem 33 milhões de famélicos, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia. Pindorama voltou ao patamar dos anos 90 – logo depois do “fim do comunismo”.
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Às vezes, a máquina de propaganda é mais eficiente do que canhões. A máxima nazista/ianque, segundo a qual a repetição da mentira a torna verdadeira, é que nem o pop: não poupa ninguém. Jornal, rádio, TV, cinema, web… tudo reforça, direta ou indiretamente, a primazia do capitalismo para o desenvolvimento da espécie.
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Diabo por todos
Observem a cena. Uma parada de ônibus transformada em habitação por um sem teto. De tanto vagar a esmo pela cidade — preferencialmente no bairro classe média de Perdizes, em São Paulo – o homem cansou. E resolveu se ajeitar ali mesmo, onde ao menos teria uma cobertura para as noites de chuva.
O frio é aplacado por sacos de lixo vazios. Seu Osni vive há 11 anos na rua. Entre os badulaques colecionados, chama a atenção embalagens de alimentos e sucos, produtos de consumo, como se fossem novos. Nem o sem teto escapa da ideologia do consumo.
Amaro Augusto Dornelles
Seu Osni montou uma casa improvisada em um tecnológico ponto de ônibus no centro de São Paulo
Recentemente, a Guarda Civil Metropolitana foi chamada para desalojar o ancião – de 60 anos – do ponto de ônibus. Alguém reclamou da ocupação e a polícia foi fazer ‘o rapa’. É como ensina a ideologia hegemônica: “Cada um por si e o diabo por todos”.
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Certa noite, uma menina que passeava com o cachorro viu outra moça – do outro lado da avenida – ao lado da parada do ônibus. Agarrada em seus livros, olhos arregalados, ela olhava para seu Osni, que mexia em seus pertences, debaixo do abrigo. Ela me pediu para acompanharmos a moça até o ônibus passar e lá fomos nós. O velhinho olhava para nós e sorria, alheio a tudo.
Eu já vinha observando aquele senhor há meses, pois moro na proximidade. Ele anda pelas ruas falando sozinho, invariavelmente sorrindo. Não perdi a oportunidade de conversar com ele, no meio do rebuliço todo de seu despejo:
Perdido no Inferno
– Meu senhor, a Guarda Metropolitana está levando todas suas coisas, pra onde o sr. vai?
– Não sei pra onde, acho que vou pro céu.
– Mas o sr. quer morrer logo? Só não vá apressar as coisas. Mas como é que o senhor veio morar nesta parada de ônibus, qual é sua idade?
– Tenho 60 anos. Eu morava com a minha mãe, aqui perto (imediações da av. Afonso Bovero, bairro Perdizes). Não é ‘que ela não queria’ que eu morasse com ela. Mas as despesas ficaram pesadas pra ela, que é uma pessoa de idade, tem 92 anos. Então eu tive que ir pra rua.
– Sua mãe não tem condições de sustentá-lo. Mas não daria pra pelo menos o sr. dormir no apartamento?
– O problema foi dinheiro. Chegou uma hora em que ela alugou o apartamento e foi morar com a minha irmã.
– Há quanto tempo o sr. mora na rua?
– Há uns 11 anos.
– Vive do que?
– Eu vivo da minha aposentadoria, de R$ 1.270. Eu trabalhei como encarregado de expedição na fábrica do meu pai.
Estas duas frases representam a síntese do capitalismo selvagem no Brasil. Um homem que trabalhou, aposentou-se e recebe alguns tostões a mais do que um salário mínimo – hoje na faixa de R$ 1.200 – suficientes para ele morar na rua – ou na parada de ônibus, nesse caso.
– Mas o senhor vai viver onde a partir de hoje?
– No inferno, estou perdido. Não quero ir para esses abrigos.
Usou, joga fora
Duas integrantes da Guarda Municipal informaram que a Assistência Social levaria o idoso, com seus pertences, para algum abrigo nessa região. Demais informações poderiam ser obtidas no Serviço Social da Subprefeitura de Perdizes, que funciona junto com a da Lapa. Mas não é bem assim que as coisas funcionam.
Uma hora depois da remoção, seu Osni já estava sentado no banco da parada, conversando com duas moças. Ninguém pode ser obrigado a fazer o que não quer — como é o caso dele, que não quer nem ouvir falar de abrigo social.
No serviço social referido, as informações só podem ser fornecidas pela assessoria de imprensa. Depois de alguma insistência, alguns profissionais aceitaram falar “genericamente”. “Posso falar da maneira como as coisas funcionam quando ocorre a limpeza das vias públicas”, disse a funcionária pública.
– Mas pessoas são consideradas sujeira?
– Não! Estou dizendo que quando acontece a limpeza das vias públicas e coincide dessas pessoas viverem lá é chamado o serviço social, para fazer o cadastramento delas. O Serviço de Abordagem entrevista quem vive na rua, para saber se eles querem auxílio da assistência social ou não. Eles permanecem no local, para verificar se a pessoa tem para onde ir, se precisam de comida, para depois direcioná-las para o centro de acolhimento. Esse é o procedimento normalmente normal.
Outro integrante do Serviço Social conta que há uma equipe – com assistentes sociais e psicólogos – treinada, para conversar com as pessoas, criar vínculos, fazer um possível encaminhamento aos serviços de acolhimento oferecidos.
“Logicamente não podemos obrigar ninguém a ficar no albergue”, diz ele, ao acrescentar que quando alguém se recusa a ir para o serviço de acolhimento, “a gente dá o cobertor, levamos para a Tenda – tem no terminal da Lapa e em várias regiões da Lapa – para tomar sopa”. São dadas vacinas e, caso as pessoas estejam debilitadas, são encaminhadas ao PS da Lapa ou outro hospital, da rede de assistência.
Toda a referida estrutura não foi suficiente para saber onde o seu Osni foi parar. Encontrei-o três horas mais tarde, sentado à soleira de uma padaria, sorridente como sempre. Com seu dinheirinho da aposentaria, fruto do trabalho de uma vida, só vivendo na rua. Nada mais capitalista. Usou, joga fora.
Amaro Dornelles é colaborador da Diálogos do Sul.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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