Pesquisar
Pesquisar
Foto: fhwrdh / Flickr

Socialismo utópico, científico e a evolução da estrutura capitalista segundo Engels

Burocracia estatal não é eficiente para administrar a economia de forma centralizada, o que torna obsoleta a noção de socialismo como uma economia estatizada
Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul
Lima

Tradução:

Ana Corbisier

As primeiras noções de socialismo, ou de uma sociedade socialista, surgiram no século XIX. Seus expositores iniciais, Fourier (os falanstérios) e Cabet (as comunas), idealizaram uma economia baseada na propriedade dos meios de produção pela sociedade e no trabalho de todas as pessoas aptas.

Leia também | Dicionário Marxismo na América: um resgate histórico de memórias combatentes

Fourier tentou, em vão, que alguma pessoa generosa financiasse seu projeto, e Cabet, com seu dinheiro, estabeleceu uma comunidade icariana nos Estados Unidos que fracassou pelas dissensões entre seus membros, que terminaram expulsando-o. Frederico Engels denominou genericamente estes modelos e outros similares de socialismo utópico e sobrepôs a eles outro que chamou de socialismo científico, que deveria resultar da evolução dialética da sociedade capitalista. Expôs sua tese em seu artigo “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, publicado em Londres, em abril de 1892.

O socialismo revolucionário de Engels

Neste artigo, Engels afirma que a concentração do capital leva à formação de grandes empresas que se encarregam da maior parte da produção e do mercado sem poder, no entanto, evitar as crises de sobreprodução que se agigantam. Em certo momento, o Estado pode expropriar essas empresas, com uma atividade já socializada na prática, mas não o Estado capitalista, e sim outro Estado, assumido e dirigido pela classe operária que, com seu trabalho nas empresas, cria a riqueza social.

Leia também | Engels: Defensor do proletariado, Marx foi o homem mais odiado e caluniado de seu tempo

Cito suas afirmações em tal sentido:

“Alguns destes meios de produção e de comunicação são já por si tão gigantescos, que excluem, como ocorre com as estradas de ferro, toda outra forma de exploração capitalista. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, já não basta tampouco esta forma; os grandes produtores nacionais de um ramo industrial unem-se para formar um truste, uma agrupação destinada a regulamentar a produção; determinam a quantidade total a ser produzida, dividem-na entre eles e impõem assim um preço de venda fixado de antemão. Mas, como estes trustes desmoronam assim que ocorre o primeiro problema mais grave nos negócios, levam com isso a uma socialização ainda mais concentrada; todo o ramo industrial se torna uma única grande sociedade anônima, e a concorrência interior cede lugar ao monopólio interior desta única sociedade.”

[…]

“Nos trustes, a livre concorrência se torna monopólio e a produção sem plano da sociedade capitalista capitula ante a produção planejada e organizada da nascente sociedade socialista.”

[…]

“Para isto já não há senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios, tome posse destas forças produtivas, que já não admite outra direção senão a sua.”

[…]

“O modo capitalista de produção, ao transformar mais e mais em proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada país, cria a força, que se não quer perecer, está obrigada a fazer essa revolução. E, ao forçar cada vez mais a conversão em propriedade do Estado dos grandes meios socializados de produção, indica por si mesmo o caminho pelo qual essa revolução vai ocorrer. O proletariado toma em suas mãos o poder do Estado e começa por transformar os meios de produção em propriedade do Estado.”

Como evoluiu realmente a sociedade

Esta visão de Engels da sociedade de seu tempo, nos países capitalistas com maior desenvolvimento capitalista, não se baseava em uma análise exaustiva da realidade social, no que diz respeito às relações de produção e às forças produtivas, nem estava respaldada por dados estatísticos.

Embora a acumulação e a concentração do capital levaram no fim do século XIX à formação de grandes consórcios nos países capitalistas mais desenvolvidos –trustes, carteis– esta concentração não compreendia a maior parte da atividade econômica. No final do século XIX, as médias e pequenas empresas e numerosas empresas grandes que mantinham sua independência continuavam produzindo muito mais da metade do PIB. Essa concentração tinha dado lugar à formação de oligopólios, mas não de monopólios. No entanto, devido à influência das ideias do socialismo social-democrata e da conveniência de uma parte do capitalismo, crescia a tendência a entregar ao Estado os serviços de transporte ferroviário e algumas empresas produtoras de armamentos e outros bens.

Leia também | O Socialismo é a única saída, mas como? | Pt 1: Olhar o passado para construir o futuro

Quanto à classe operária, as expectativas de que esta se movesse por uma revolução à tomada do poder ficavam condicionadas ao seu crescimento e a que adotasse majoritariamente este propósito. Mas não se deram estas duas condições. 

Durante o século XX, a classe operária industrial parou de crescer no ritmo do desenvolvimento capitalista. Quando se distribuiu a produção dos bens e serviços pelos setores primário, secundário e terciário, a classe operária tradicional industrial, que constituía o setor secundário, foi se reduzindo numericamente até menos de 30% da massa operária empregada. Os trabalhadores do setor terciário, dedicado à produção de serviços passaram a ser mais de 60%, distribuídos por vários tipos de atividades a cargo sobretudo de médias, pequenas e microempresas; e os do setor primário, ocupado na agricultura e na pecuária, reduziram-se a menos de 10%.

Tampouco a classe operária aderiu majoritariamente à ideologia socialista revolucionária. Por volta do fim do século XIX, uma parte dela apoiou o socialismo reformista que participava das eleições para a formação dos poderes Legislativo e Executivo e propugnava a obtenção legal de certos direitos sociais; outra parte, a maior, manteve-se entre a indiferença e uma espera passiva do que o governo ou os sindicatos pudessem dar-lhes, e só uma minoria integrou os grupos comunistas.

Leia também | O Socialismo é a única saída, mas como? | Pt 2: Caminhos para evitar e para seguir

A ideia de uma mudança revolucionária foi assumida, em sua maior parte, por intelectuais, profissionais e estudantes universitários, que se entregaram à militância política com inteireza e sinceridade, pensando em contribuir na construção de uma nova sociedade sem exploração, apesar das dificuldades em sua vida pessoal e da perseguição empreendida contra eles pelos governos do feudalismo e do capitalismo.

Por que não chegaram a convencer a maior parte das classes trabalhadoras? 

Um fator importante foi o fato de que a mente dos operários estava quase totalmente dedicada ao trabalho e lhe era difícil assimilar uma ideologia libertadora cuja criação tinha exigido muitos anos de trabalho intelectual intenso. Quando certo número de operários aderiu ao marxismo seus companheiros de trabalho perceberam que podiam confiar neles e os colocaram na direção de suas incipientes organizações sindicais. A direção ideológica não procedia, no entanto, deles, e sim dos grupos dirigentes dos partidos ou grupos que tinham o marxismo como ideologia, quase todos intelectuais ou profissionais.

O abandono da via revolucionária

Ao terminar a Primeira Guerra Mundial, o movimento socialista, já dividido entre a socialdemocracia que participava da mecânica eleitoral e o partido bolchevique de Lênin, que rejeitava esta participação e se manifestava por uma revolução, avançou por estas vias predeterminadas.

A socialdemocracia alemã, depois da revolução de 1919, preferiu entender-se com uma parte do capitalismo e com ela fez aprovar uma Constituição reformista na assembleia de Weimar. 

Leia também | O Socialismo é a única saída, mas como? | Pt 3: Movimentos sociais X revoluções coloridas

Em troca, Lênin e o partido bolchevique tomaram o poder na Rússia por uma revolução, em novembro de 1917. Este país fôra até este momento um enorme império autocrático com um capitalismo que mal começava a desenvolver-se e uma população agrária de mais das duas terças partes do total submetida em sua maior parte à exploração feudal. Lênin e seu partido, que denominaram vanguarda da classe operária, implantaram ali o socialismo, estatizando a produção industrial e de serviços. Mas, ante o descalabro da economia por falta de dirigentes empresariais e da guerra que empreenderam contra este governo as potências capitalistas, Lênin e seu governo tiveram que reinstalar o capitalismo em 1922. Foi a Nova Política Económica. Só a partir do Plano Quinquenal de 1929 se socializou ali de novo toda a economia.

Contraditoriamente, dali em diante, a postulação de uma revolução –o leninismo– foi quase abandonada pelos partidos comunistas de outros países, que trataram de adaptar-se à mecânica eleitoral, votando em algum “burguês progressista” ou algum outro se não tivessem se inscrito no padrão eleitoral devido à proibição de fazê-lo ou por sua insuficiência numérica, exceto na China, devido às particulares condições deste país.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os partidos comunistas da França e da Itália, os mais numerosos do mundo capitalista, renunciaram definitivamente à revolução e se inseriram nos regimes democráticos de seus países com renovação eleitoral periódica da direção do Estado. Nos demais países capitalistas sucedeu outro tanto no quadro da Guerra Fria e do maccarthismo.

Leia também | Capitalismo, não socialismo, é o que faz maioria da população mundial viver na fome e miséria

Uma exceção a esta tendência foram alguns movimentos guerrilheiros animados por grupos marxistas que não obtiveram, no entanto, o apoio da maior parte dos trabalhadores e outros setores da população e foram derrotados ou controlados, salvo na Indochina onde seu propósito foi alcançar a independência nacional.

Nas décadas de oitenta e noventa do século XX, os governos comunistas dos países do Leste europeu foram erradicados por outros grupos políticos favoráveis ao capitalismo com o apoio de uma parte da população. Com o desaparecimento da União Soviética terminou também o financiamento de numerosos partidos comunistas dos países capitalistas que só podiam manter suas burocracias dirigentes com esta ajuda.

Ao terminar o século XX, os partidos comunistas tinham se transformado em grupos muito pequenos, sem influência na maior parte das classes trabalhadoras. Correlativamente, quase todas as organizações sindicais que tinham feito parte da Federação Sindical Mundial, uma organização inspirada pelo movimento comunista, desfiliaram-se dela e se inscreveram em uma central internacional afim ao sistema capitalista. 

Agora, para a classe operária, integralmente considerada, é estranha a noção de uma revolução social e esta não lhe interessa. Politicamente, os operários distribuem seus votos, como muitos outros votantes, induzidos pela alienação, entre partidos políticos emanados de outras classes sociais e até de aventureiros. Tampouco, a maior parte da classe operária tende a filiar-se a sindicatos, apesar de que estes poderiam trazer-lhe algumas melhorias. Prefere esperar que outros as obtenham e depois beneficiar-se com elas.

Leia também | Menos marxismo, mais ideologia burguesa: como CIA manipula esquerda ocidental há 70 anos

Afastados desta realidade social, os partidos e outros grupos comunistas residuais continuam guiando-se, não obstante, por certos slogans próprios do século XIX e da União Soviética com zelo ortodoxo e qualificando de réprobos e divisionistas seus oponentes. Se estas discussões tivessem ocorrido na União Soviética, os dissidentes da linha oficial teriam terminado seus dias fuzilados ou em uma masmorra. Tal militância e seus debates e ações não passam de um desperdício de energia e tempo, sem nenhuma incidência econômica ou social.

Evolução do capitalismo

Desde o século XIX, a sociedade capitalista continuou sua evolução dialética, como uma luta permanente de contrários, como Marx tinha descoberto, embora até agora só como uma acumulação de mudanças quantitativas e sem chegar ainda à formação de uma nova estrutura econômica. Junto à classe operária surgiram outros grupos de trabalhadores, dos quais o mais importante é a classe profissional a cargo da direção das empresas e da burocracia estatal.

Apesar de sua magnitude crescente, as crises econômicas periódicas não chegaram a abater o capitalismo que aprendeu a sobrepor-se a elas. Pelo contrário, o enorme desenvolvimento das forças produtivas, baseado em invenções e descobertas, na educação do povo, na crescente formação profissional dos trabalhadores e na acumulação de grandes massas de mais valia, continuou aumentando a produção e o consumo de bens e serviços. Uma parte da mais valia incrementou os direitos sociais e os serviços públicos administrados pelo Estado.

Leia também | Yuri Martins-Fontes: Marx teve lapsos eurocêntricos, mas com grandeza assumiu seu erro

O capitalismo novecentista, livre da intervenção estatal e sem direitos sociais, só subsiste como produção e comercialização informais, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

A estrutura capitalista agora

Já é impossível negar a descoberta de Marx de que a mais valia ou o valor agregado procede do trabalho, embora não só do trabalho dos operários, mas sim de todo trabalho comprometido na produção e na circulação.

Estamos assim diante de uma estrutura capitalista modelada pela evolução social, na qual as mudanças quantitativas se traduzem principalmente em direitos dos trabalhadores e da sociedade em conjunto, mudanças obtidas em sua maior parte pela ação direta e indireta dos grupos de inspiração marxista.

As classes sociais integrantes desta estrutura cumprem funções que se complementam para existir: 1) os capitalistas de todos os níveis detectam, definem e criam as necessidades da sociedade, juntam os recursos, técnicos, financeiros e organizativos para satisfazê-las e lançam no mercado a produção dos bens e serviços correspondentes que os consumidores e usuários podem escolher e adquirir de imediato; 2) os trabalhadores, de direção e execução, contribuem com sua força de trabalho, sem a qual seria impossível a produção e a circulação. Trata-se, na realidade, de duas funções estabelecidas pela evolução social para satisfazer as necessidades da sociedade. Nesta associação de fato, cuja unidade é a empresa, cada grupo fica obrigado a executar as tarefas que lhe corresponde com eficiência, melhorando seus resultados e sem causar danos, o que, dir-se-ia, a sociedade deseja, como usuária e consumidora dos bens e serviços produzidos. 

Leia também | O que marxismo nos ensina sobre nacionalismo e internacionalismo para a causa operária

As condições da participação da força de trabalho emanam de sua capacidade criadora do valor e dão lugar às remunerações e outros direitos complementares trabalhistas e de Seguridade Social, à estabilidade no trabalho e a receber as ajudas de desemprego, direitos que, por sua importância estrutural, têm a qualidade de irrenunciáveis e indisponíveis. Sobre ambos grupos se ergue o Estado como um poder de regulamentação, controle e participação no produto.

A este modelo chamou-se Economia Social de Mercado e é geral agora, com diversos graus de extensão dos direitos sociais. Mantem-se pela consciência e vontade das maiorias sociais de que assim deve ser, frente às tentativas de alguns grupos capitalistas de reduzir (eles dizem flexibilizar) os direitos sociais para aumentar a parte de mais valia que lhes cabe.

Uma noção de socialismo perimida 

A noção de socialismo como uma economia estatizada ficou obsoleta.

A experiência histórica demonstrou que a burocracia estatal, tanto nos países socialistas como nos capitalistas, não é apta para cumprir a função indicada a cargo do capitalismo. 

Leia também | Por que alguns marxistas não consideram modelo chinês como socialismo?

Reclusos em seu apego aos regulamentos e a suas rotinas e alguns dominados pela propensão à arbitrariedade e à corrupção, são estranhos aos burocratas, incômodos ou prejudiciais a sua posição a iniciativa e o poder da vontade necessários para identificar e satisfazer as necessidades da sociedade que as empresas privadas podem efetuar com eficácia e oportunidade.

Por esta causa, as empresas estatais só alcançam a eficiência se forem administradas com técnicas de competitividade e, em geral, na produção de bens e serviços de grande importância estratégica ou social.

O futuro imediato

Poder-se-ia dizer, como conclusão, que por conveniência e consciência, quem vive de seu trabalho deve cuidar de seu status legal e impedir os retrocessos que implicam quase sempre a perda de certos direitos adquiridos e, pelo contrário, obter novos direitos sociais para todos, cobertos com uma parte crescente da mais valia, mas sem afetar a capacidade de crescimento da produção, enquanto a sociedade avança para uma mudança qualitativa cujas características ainda não se vislumbram.

Leia também | Num mundo em que a esquerda renuncia ao socialismo, para onde vamos?

É pertinente recordar aqui a conclusão a que Marx chegou depois de estudar a evolução dialética da sociedade: “Uma sociedade não desaparece nunca antes de que sejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não a substituem jamais antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade.”


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

LEIA tAMBÉM

Paulo Cannabrava Filho
Um olhar ao passado: aos 88 anos de Paulo Cannabrava, relembramos sua carta a Vladimir Herzog
E_preciso_salvar_Abril_Henrique_Matos
50 anos da Revolução dos Cravos: a faísca africana, os inimigos da mudança e a força operária
Frei Betto
Frei Betto | Precisamos rever ideias, abrir espaço às novas gerações e reinventar o futuro
Racismo_Mídia
Racismo e mídia hegemônica: combater problema exige mais que “imagens fortes” nas redes