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Na ONU, líderes progressistas do Sul Global desafiam ordem imposta pelo Ocidente

Pedro se uniu ao tom crítico de Lula e denunciou: países ricos gastam trilhões com guerra mas não tem dinheiro para enfrentar catástrofes climáticas
David Brooks
La Jornada
Nova York

Tradução:

Líderes de alguns dos países mais poderosos da América Latina e da África tomaram o pódio ante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira para demandar mudanças fundamentais a um sistema econômico e político global que continua investindo em guerras enquanto continua fracassando em cumprir com suas próprias promessas para abordar a pobreza e a desigualdade, e a mudança climática. 

O crescente poder de governo que rechaçam a agenda neoliberal das últimas décadas se manifestou nas primeiros horas da sessão de abertura do debate de alto nível anual ante a Assembleia Geral, com diversos líderes do sul global deixando entrever que estão dispostos a desafiar a ordem internacional encabeçada por o auto proclamado líder mundial Estados Unidos através de iniciativas impulsadas dentro de outras associações multilaterais tal como os BRICs, o G77 e inclusive o G20 entre outras.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva – Brasil é tradicionalmente o primeiro país em ocupar o pódio ao começar a sessão – começou declarando que “mantenho minha confiança inquebrantável na humanidade” ao pintar uma crise ambiental sem precedentes que “bate às nossas portas, destrói nossos lares, todas as cidades, todos os países e impõe danos e sofrimento a nossos irmãos, principalmente os pobres”. 

Lula assinalou que a crise da mudança climática é acompanhada por outra dentro do atual sistema de livres mercado: “os 10 multimilionários mais ricos têm mais riqueza que 40 por cento da humanidade”, e acaso que “há uma falta de vontade política daqueles que governam o mundo para alcançar a igualdade”.

Lula, que é único líder do sul global que tem programada duas reuniões com o presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, durante esta semana, ofereceu uma não muito sutil ameaça de que quando ele, em nome do Brasil, tome a presidência do G20 em dezembro; “não vamos deixar de fazer um esforço para pôr a luta contra a iniquidade em todas suas dimensões no fundo da agente internacional”. Concluiu que “com o motor de construir um mundo justo e um planeta sustentável, o presidente do G20 coordenará a inclusão social e a luta contra a fome, o desenvolvimento sustentável e a reforma das instituições do governo global”. 

Desde este primeiro dia das sessões de debate de alto nível que durarão uma semana na ONU ficou claro a falta de consenso sobre como abordar crises urgentes, por exemplo, a guerra na Ucrânia, com os Estados Unidos insistindo que o mundo necessita enviar mais fundos e armas à Ucrânia e colocar esse conflito no centro de tudo e outros argumentando que há outras crises urgentes que deveriam ser atendidas aqui.

Pedro se uniu ao tom crítico de Lula e denunciou: países ricos gastam trilhões com guerra mas não tem dinheiro para enfrentar catástrofes climáticas

Foto: Gustavo Petro – Reprodução/Twitter
Petro: “Não estamos pensando em como expandir a vida nas estrelas, mas sim como acabá-la em nosso próprio planeta"

“Não têm 100 bilhões de dólares para entregar aos países para defendê-los de inundações, tormentas e furacões”, declarou a presidente Gustavo Petro, da Colômbia, em referência a um compromisso não cumprido de países ricos, ao tomar seu turno ante a Assembleia Geral. “Mas sim têm (fundos) em um só dia para que se matem russos e ucranianos entre si. Agora não se necessitam 100 bilhões de dólares, se necessitam 3 trilhões de dólares para superar a crise climática e a conta sabe a cada segundo”. 

Petro, em talvez o discurso mais feroz e lírico do dia, também expressou sentir-se compartilhado por muitos outros países em torno às exortações de Washington a alinhar-se com os Estados Unidos atrás da Ucrânia. “Não estamos pensando em como expandir a vida nas estrelas, mas sim como acabá-la em nosso próprio planeta. Nós temos nos dedicado à guerra. Nos convocaram à guerra. À América Latina a chamaram para entregar máquinas de guerra, homens para ir aos campos de combate. Se esqueceram que aos nossos países os invadiram várias vezes os mesmos que hoje falam de lutar contra invasões. Se esqueceram que as mesmas razões que expressam para defender Zelensky são as mesmas razões com as que se deveria defender a Palestina”. 

Petro enfatizou que as guerras e a mudança climática também estão relacionadas com a outra grande crise de migração sem precedentes. “O êxodo dos povos para o norte mede com excessiva exatidão a dimensão do fracasso dos governos. Este ano que passou foi um tempo de derrota dos governos, de derrota da humanidade”, afirmou. 

Esse “fracasso” ante os desafios globais continuou na mensagem de outros. O presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, que ofereceu uma parte de seu discurso como presidente do G77, assinalou que na recente reunião desse agrupamento “mais de 100 representante das 134 nações que integram o grupo, levantaram suas vozes para demandar mudanças que não podem ser adiados mais no injusta, irracional e abusiva ordem econômica internacional, que aprofundou, ano após ano, as enormes desigualdades entre uma minoria de nações muito desenvolvidas e uma maioria que não consegue superar o eufemismo de ‘nações em desenvolvimento”.

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Continuou: “Não estamos pedindo esmolas nem rogando favores. E G77 reclama direitos e continuará demandando uma transformação profunda da atual arquitetura financeira internacional, porque é profundamente injusta, anacrônica e disfuncional. Porque foi desenhada para lucrar com as reservas do Sul, perpetuar um sistema de dominação que aumenta o subdesenvolvimento e reproduzir um modelo de colonialismo moderno”. 

Ficou claro que estas demandas, as quais Cuba, entre outros, apresentou de forma repetida ante a ONU durante décadas, agora gozam de maior energia e poder com a nova liderança de países como Brasil, Colômbia, África do Sul e outros do Sul global. Em seu discurso, Lula sublinhou os fracassos dos países ricos de outorgar os 100 bilhões de dólares anuais prometidos para abordar os efeitos da mudança climática. “No ano passado, o FMI disponibilizou 160 bilhões… para países europeus e só 34 bilhões aos africanos”.  

O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, fez eco dessas críticas, declarando que “podemos gastar tanto em guerra, de fato trilhões se gastam em guerras, mas não podemos gastar mais para atender as necessidades básicas de milhares de milhões de pessoas ao redor do mundo”. 

A ordem econômica baseada em mercados livros, deixaram claro vários, não tem a solução para os grandes problemas enfrentados pelo planeta, e alguns indicaram que em parte é fonte desses problemas. “o mercado nos ajudará algo, mas não se lhe pode pedir soluções a um mecanismo que fica sem humanidade, quando foi este mecanismo o que produziu o problema. Fundos privados, sim, mas serão limitados por sua própria lógica. O esforço de fazê-lo virá dos fundos públicos e estes estão hoje tão debilitados pela dívida. A grande batalha de nossa geração, defender a vida para nossos filhos e netos, só pode ser financiada totalmente a partir do público, a partir o de todos e todas”, declarou Petro. 

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Ao render seu informe anual ante a Assembleia Geral, o secretário geral da ONU, Antonio Guterres pareceu estar de acordo com grande parte dessas avaliações de uma mudança na chamada ordem internacional. Mostrando um mundo “à borda da ruptura” por divisões entre norte, sul, leste e oeste sem precedentes desde o fim da Segunda Guerra Mundial quando nasceu essa instituição, e diante de fracassos em cumprir com promessas e compromissos para abordar a mudança climática e as metas de desenvolvimento social, Guterres declarou que “o mundo mudou… Não podemos abordar os problemas de maneira efetiva se nossas instituições não refletirem o mundo como ele é. Em lugar de solucionar problemas [as instituições] arriscam a tornar-se parte do problema”.

De fato, o secretário geral se atreveu a dizer que as mudanças necessárias ante a crise da mudança climática são as que se expressam nas ruas. “Aos que estão marchando: vocês estão no lado correto da história. Estou com vocês”, disse em referência à marcha e ações dos últimos dias aqui e em outras partes do mundo exigindo um fim aos combustíveis fósseis. 

Segundo Biden, EUA buscam mundo mais seguro e que FMI melhorou “a vida de todos os povos”

O presidente Joe Biden utilizou seu discurso ante a Assembleia Geral na ONU para defender a causa da Ucrânia e promover apoio para a ordem internacional econômica e política existente, embora tenha reconhecido ante seu público cada vez mais cético a necessidade de “atualizar” o sistema global que os Estados Unidos têm dominado para poder abordar os problemas de fome, pobreza, mudança climática e novas tecnologias. 

“As instituições que construímos juntos no fim da Segunda Guerra Mundial são um fundamento duradouro de nosso progresso, e os Estados Unidos estão comprometidos em sustentá-las”, declarou Biden. “Nem sempre era perfeito, mas trabalhando juntos, o mundo logrou progresso notável e inegável que melhorou as vidas de todos os povos”. 

No primeiro dia de uma semana de discursos ante a Assembleia Geral dos mandatários e outros representantes dos 193 países membros, o presidente estadunidense reconheceu que “demasiadas pessoas estão ficando para trás” no sistema atual no mundo, e repetiu uma série de compromissos que expressou anteriormente para reformar o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial de Comércio entre outras instituições multilaterais. Também reiterou que solicitaria ao seu Congresso mais fundos para esses esforços, embora a maioria dos assistentes aqui seguramente recordem a sua promessa de outorgar 12 bilhões de dólares para abordar a mudança climática que resultou apenas em um bilhão.

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Mas o mais notável no discurso de auto proclamado líder mundial foi seu reconhecimento que muitos na comunidade internacional estão perdendo fé no sistema mundial existente. “Os Estados Unidos buscam um mundo mais seguro, mais próspero para todos os povos porque entendemos que nosso futuro está ligado ao de vocês. Deixem-me repetir: sabemos que nosso futuro está ligado ao de vocês”. 

No entanto, esta convocatória a renovar a cooperação internacional sob a liderança dos Estados Unidos não é necessariamente compartilhada. É notável a ausência de todos os outros mandatários dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – o epicentro do poder da ONU – esta semana durante o debate do alto nível anual (França, Reino Unido, Rússia e China só enviaram seus chanceleres ou outros representantes) . E embora Biden se viu obrigado uma vez mais a expressar apoio para ampliar o número de membros permanentes do Conselho de Segurança, não ofereceu identificá-las nem propor um calendário para lográ-lo. 

O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, o qual discursou várias horas depois de Biden, apelou à ONU que deixasse de falar e fizesse uma ação para ampliar o Conselho. 

O outro objetivo principal de Biden neste foro foi consolidar o apoio cambaleante da Ucrânia contra a operação russa. “Se abandonarmos os pontos centrais [da Carta da ONU] para apaziguar um agressor, poderá qualquer Estado membro desta instituição se sentir confiante de estar protegido?”, declarou Biden. “Se permitirmos que a Ucrânia seja dividida, estará segura a independência de qualquer nação? Respeitosamente sugeriria que a resposta é não. Temos que enfrentar esta agressão desnuda hoje e dissuadir potenciais agressores amanhã”. 

O presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, que subiu ao pódio um par de horas depois de Biden e quem também falará ante o Conselho de Segurança, declarou que se a Rússia não for freada na Ucrânia, ameaçará outros países e por isso sugeriu que todos devem apoiar a defesa de seu país. Rechaçou apelos à negociações de paz que não sejam encabeçadas pela Ucrânia. 

Tanto a liderança dos Estados Unidos como a viabilidade da ONU como instrumentos para abordar alguns dos principais desafios que o mundo enfrenta estão em debate aqui. Houve só poucas ovações ao discurso de Biden, nem todos na grande sala da Assembleia Geral se levantaram em apoio a Zelensky. O próprio secretário da ONU, Antonio Guterres, comentou que não só há consensos, mas sim que nunca se viu tão dividida a comunidade internacional desde a fundação da ONU. 

Como assinalaram vários analistas, nem os Estados Unidos nem a ONU podem mostrar que conseguiram êxito, ou pelo menos alguns avanços, em cumprir com suas próprias promessas de frear conflitos, controlar a mudança climática ou atender à crescente desigualdade mundial. 

Mas talvez haverá surpresas já que faltam dezenas de discursos, foros, ceias, festas e encontros entre a cúpula da comunidade internacional reunida nesta semana em Nova York, algo além da competição no concurso de retórica e imagem na velha e um pouco deteriorada sede da ONU.

Jim Cason e David Brooks | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.

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