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Um uruguaio vítima de campo de concentração nazista

Niko Schwarz

Tradução:

Niko Schvarz*

Ainda é fecundo o ventre que pariu a essas bestas”

Bertold Brecht

tatuagem-de-nc3bameros-nos-campos-de-concentrac3a7c3a3o-nazistaEm minha muito, muito distante juventude, tinha um grande amigo e companheiro de militância, um ano e meio mais novo, que possui uma característica única entre todos os de nosso grupo: tinha gravado no antebraço esquerdo um número, em tinta negra indelével, que conservou durante todos aqueles anos e ainda a mantém.

Era o número que marcava sua identidade no maior campo de concentração nazista, o de Auschwitz, na Polônia, em que esteve refluído durante vários anos. Creio que não há nenhum outro uruguaio nessa condição. O número é 186650, e seu nome é Francisco Balkanyi, nascido em Montevideu (no Pereira Rossel), em 3 de outubro de 1928, filho único de uma família de imigrantes judeus-húngaros integrada por Ernest Balkanyi e Eta Rosemberg.
A família regressou a Europa por ocasião da crise de 1930 e foram surpreendidos pela guerra mundial. Quando os nazistas ocuparam a Hungria em 1944, Francisco foi parar com seu pai ao mencionado campo de concentração e sua mãe a outro. Em janeiro de 1945, quando a ofensiva soviética se aproximava de Auschwitz, os prisioneiro, Francisco inclusive, foram transferidos para o campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha, onde permaneceu até sua libertação em abril de 1945, uns dias antes das tropas soviéticas conquistarem Berlim. Seus pais também foram libertados y há de se destacar que essa foi uma das poucas famílias no mundo que sobreviveram integralmente a Auschwitz. Posteriormente Francisco voltou ao Uruguai onde permaneceu até antes do golpe de Estado indo então para São Paulo, Brasil. Desde então temos mantido contato permanente através de cartas ou por meio, intercambiando experiências políticas e informações de carácter familiar.
Tudo isso veio à tona porque três jornalistas uruguaios: Daniela Blush, David Pérez e Martín Tocar, acabam de realizar um estudo titulado “Sobreviventes do horror”, que foi publicado no suplemento Revista Domingo do diário “El País de 7 de junho com o seguinte subtítulo: “O fim da Segunda Guerra Mundial pressupôs a libertação dos campos de concentração; e isso, a revelação de um inferno sobre a terra. Três protagonistas relatam”. Um deles, que inicia a reportagem, é precisamente Francisco Balkanyi, entrevistado por David Pérez. Relacionado a este fato, meu amigo me enviou de São Paulo um documento de valor inestimável.
Trata-se de um grosso volume mimeografado titulado “Memórias do Holocausto”, elaborado por Patrícia Monken Gomes sob a orientação de Bernardo Kucinski e editado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com declarações de sobreviventes dos campos de concentração nazistas. O trabalho está dividido em uma série de capítulos: Os guetos; Os campos de concentração; A solidariedade nos campos; O antisemitismo hoje; Os sobreviventes cinquenta anos depois; Interpretações sobre o passado. Em todos eles aparecem declarações e opiniões de Francisco Balkanyi, junto com outros quatro sobreviventes. O volume contém também uma cronologia, copiosas referências bibliográficas e uma ilustrativa série de mapas. Na nota para imprensa aparecem também as declarações de outros dois sobreviventes do holocausto: Isaac Borojovich e Basia Taube.
A informação publicada no Uruguai, no concernente a Balkanyi, é uma síntese muito resumida do conteúdo do livro. Inicia assim: “Ha 70 anos o uruguaio Francisco Balkanyi (86 anos) sobrevivia ao horror de Auschwitz. Roubou casca de batata para comer e teve que cobrir-se com cadáveres para não morrer congelado”. Depois acrescenta a seguinte declaração que consta do livro: “Em oito meses de 80 quilos passei a pesar 42. Era pele e osso. Se minha libertação tivesse ocorrido 15 dias depois não teria sobrevivido”.  Conta que em 2 de maio de 1944 chegou a Auschwitz junto com seus pais em um trem que transportou prisioneiros relacionados para trabalho forçado. Ele tinha 15 anos e meio. Sua complexão física permitiu escapar do destino de seus avós maternos, mandados imediatamente para os crematórios. Depois formula essa declaração sobre a tatuagem que passou a ser a marca de sua identidade por toda a vida: “Assim que cheguei me tatuaram em um dos braços o número 186650, que até hoje levo com orgulho”. Passou a trabalhar na construção de uma fábrica de produtos químicos, onde tinha que carregar grandes pesos. Debilitou-se, e como diz a nota, “viver deu lugar a sobreviver”. Aqui entra ao relato sobre as cascas de batatas nestes termos: “De noite esquivava o guarda e ia à cozinha para roubar cascas das batatas que os nazistas jogavam no lixo. Minha mães lavava os pratos com uma água que tinha mais verduras que a sopa que nos davam”. Foi depois enviado para uma plantação de cebolas e relata: “Os dois meses  em que trabalhei ali me permitiram sobreviver. Plantava uma e comia outra. éramos vigiados por um prisioneiro que gozava de alguns privilégios e que não lhe interessava delatar-nos”.
Logo sobreveio o avanço das tropas soviéticas que expulsou os ocupantes nazistas da Polônia, determinando a evacuação dos campos de concentração e as chamadas “marchas da morte”. Balkanyi relata: “em 28 de janeiro de 1945, os sobreviventes partimos junto com um grupo de nazistas na época do mais frio inverno. Caminhávamos 24 horas de Auschwitz a Katowice. Ali nos colocaram em vagões abertos. Viajamos uma semana como gado. Tive que me cobrir com cadáveres para não morrer de frio. De 200 judeus que entraram só uns 20 chegamos vivos a Alemanha”.
Na Alemanha foram parar no campo de concentração de Buchenwald. Porém já os nazistas estavam em debandada e a libertação chegou em 11 de abril de 1945. Francisco lembra que reencontrou seus pais que tinham se instalado em Cakovec, hoje República da Croácia. A esta altura reitera que a sua foi uma das poucas famílias que sobreviveu integra ao horror do campo de concentração de Auschwitz.
Algum tempo depois Francisco resolveu voltar a sua pátria de nascimento, o Uruguai. A data do regresso a Montevidéu foi 1948. Casou-se com Rebeca com quem tem três filhos. Aqui esteve durante esses anos e durante toda a década de 1950 e anos posteriores, que foi quando manteve contato com ele. Uns quantos anos depois ele foi pra São Paulo, onde se encontra atualmente com sua família, seus filhos e seis netos.
Um texto de David Pérez no “El País” está ilustrada com fotos de Francisco, o negócio de seu pai Ernest, seu documento de identidade e seu braço tatuado que se mantém tal e qual.
O livro “Memórias do Holocausto”, contém dados muito valiosos referentes a Balkanyi (que é o que li em detalhe). Por exemplo: em sua exposição no capítulo sobre os campos de concentração, diz na página 52, que ao chegar a Auschwitz, em 2 de maio de 1944, passaram diante de Mengele em pessoa. Conta que seu pai e ele ficaram juntos e sua mão foi levada para outro campo onde seu trabalho consistia em ordenas as roupas de todos os que tinham sido cremados. “Foi algo terrível para ela, um sofrimento inaudito”, anota na página 54.Também se refere a alegria que tiveram ao receber por primeira vez depois de muitos meses uma carta de sua mãe e saber que estava viva.
Conta que tinham que trabalhar das 6/30 da manhã, suportar o inverno sem abrigo, temperaturas de 5 até 10 graus abaixo de zero. Descreve o esquálido das comidas, os castigos frequentes (“tratavam de torturar o máximo possível”), a vigilância estrita, as cercas de arames eletrificados, a forma com que se empenhavam para conseguir algo mais de comida, bem como as mostras de recíproca solidariedade entre os presos. Também são muito interessantes as referencias a como se inteiravam dentro do campo das notícias sobre a guerra contra os nazistas, a abertura da segunda frente e o avanço das tropas solícitas.
O capítulo dedicado à solidariedade nos campos de concentração é particularmente comovedor. com exemplos múltiplos e muitos gráficos. Figura também o testemunho de Francisco (páginas 85 e 86). Também suas reflexões sobre a luta contra o antisemitismo que perdura ainda hoje e sobre a interpretação dos acontecimentos vividos, no capítulo final.
Creio, em conclusão, que é de vital importância manter viva a memoria dos horrores do holocausto porque, como disse Bertold Brecht, ainda é fecundo o ventre que pariu a essas bestas.
*Colaborador de Diálogos do Sul, de Montevideu 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Niko Schwarz

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