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ToggleA legalização do aborto pode ser vista a partir de diversos pontos de vista, sob a luz de uma infinidade de argumentos que abordam questões referentes aos direitos humanos, à saúde pública, à liberdade individual e também em relação à igualdade de gênero. Mas, aqui neste texto, quero abordar o tema considerando, principalmente, o sistema econômico, neste caso, o capitalismo, pois a proibição de abortar está intrinsecamente ligada à perpetuação de um ciclo de pobreza, o qual resulta em grande oferta de mão de obra (barata). Essa lógica é particularmente benéfica para a dinâmica capitalista, que depende de um exército de trabalhadores para manter a produção em constante movimento e os lucros em ascensão.
Para os movimentos feministas, em geral, a luta pela legalização do aborto está intimamente ligada à defesa da autonomia das mulheres sobre seus corpos e à garantia de condições justas para todas as pessoas, independentemente de sua classe social, raça ou condição econômica. Dessa forma, nós, mulheres, devemos ter o direito de decidir sobre nossos próprios corpos, incluindo a escolha de interromper uma gravidez, uma vez que manter o controle sobre a reprodução é essencial para a liberdade e autonomia feminina, e, neste sentido, a proibição do aborto interfere diretamente nesse direito fundamental.
Questões de classe e de raça
Segundo esse argumento, o Estado não pode ditar o que uma mulher pode ou não fazer com seu corpo, assim como não deve interferir em decisões tão pessoais, e íntimas. Assim, a legalização do aborto garantiria que nós, mulheres, tivéssemos o poder de fazer escolhas informadas sobre nossa saúde reprodutiva.
Os movimentos feministas também apontam que a criminalização do aborto afeta, desproporcionalmente, as mulheres em situações de vulnerabilidade social, econômica e racial. Quando o aborto é ilegal ou restrito, as mulheres de classe média e alta podem ter acesso a procedimentos seguros e privados, enquanto as mulheres mais pobres (no caso brasileiro essas seriam majoritariamente negras), que não têm acesso a serviços de saúde de qualidade, são forçadas a recorrer a métodos inseguros, os quais são, na maioria das vezes, arriscados, e levam muitas dessas mulheres a óbito.
De acordo com estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) publicado há 2 anos, 73 milhões de abortos induzidos acontecem anualmente em todo o mundo, e que procedimentos inseguros são a principal causa de morte e sequelas entre as mulheres. Ainda segundo o estudo, seis em cada 10 das gestações não planejadas acabam em abortos e, desses, 45% não são feitos de forma correta. Além disso, quase todos esses procedimentos inadequados e inseguros acontecem em países em desenvolvimento. O estudo completo levou em conta 17 países da África, da América Latina e do Caribe.
Esse olhar mostra como a proibição do aborto perpetua as desigualdades de classe e de raça, tornando a legalização dessa prática uma questão de justiça social e de igualdade de gênero. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho no Brasil foi de 53,3%, enquanto a dos homens foi de 73,2%, o equivalente a uma diferença de 19,9%. Ademais, a taxa de informalidade delas era de 39,6%, enquanto a dos homens 37,3%. No caso de mulheres pretas ou pardas, essa última taxa subia para 45,4%.
Ao assegurar a garantia do acesso universal ao aborto legal e seguro, o Estado estará promovendo uma maior igualdade entre homens e mulheres, especialmente em uma sociedade onde as mulheres, em média, têm menor poder econômico e social, e, como vimos, no caso das mulheres negras, menos ainda.
A preocupação com a saúde e com a segurança das mulheres que precisam abortar é outro argumento central dos movimentos feministas. Segundo a OMS, os abortos inseguros são uma das principais causas de morte materna em países onde o aborto é ilegal. A legalização, portanto, permitiria às mulheres acesso a serviços de saúde adequados, onde os procedimentos seriam realizados por profissionais capacitados, o que reduziria significativamente os riscos à saúde das mulheres e as mortes associadas a abortos clandestinos.
Reprodução da força de trabalho
Outro argumento levado acabo pelos movimentos feministas diz respeito ao perigo de um retrocesso no que se refere à conquista de direitos reprodutivos. Caso o aborto continue a ser restrito ou ilegal, essa proibição não é apenas uma violação dos direitos das mulheres, mas, sobretudo, uma sinalização de que o país pode estar caminhando para a revogação de outros direitos civis e sociais conquistados, a duras penas, ao longo do tempo. A legalização do aborto é vista, portanto, como uma forma de proteger os avanços alcançados por nós, mulheres, e garantir que o progresso em direção à igualdade de gênero não seja descontinuado.
Estou de acordo com todos esses argumentos supracitados, mas, aqui nesta reflexão, quero chamar a atenção para uma questão, não debatida na mídia, quando se fala em legalização do aborto: a proibição dessa prática assegura aos capitalistas que nunca lhes faltará mão de obra barata. Considerando-se que no capitalismo o trabalho não é visto como um meio para a realização das necessidades humanas, mas como um recurso estratégico que deve ser abundante e de baixo custo, devemos ter em mente que população em constante crescimento significa maior quantidade de pessoas dispostas a aceitar empregos, muitas vezes em condições precárias.
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Historicamente, o capitalismo tem se beneficiado da divisão sexual do trabalho, a partir da qual nós, mulheres, somos socialmente condicionadas a desempenhar papéis reprodutivos e domésticos, enquanto os homens dominam as esferas públicas e produtivas. Assim, a criminalização do aborto reforça a ideia de que mulheres são principais responsáveis pela reprodução e pela manutenção da força de trabalho. A consequência imediata dessa visão é a restrição da liberdade de escolha, bem como a perpetuação de um modelo — que embora oculte seus custos — sustenta a reprodução da força de trabalho sem que o capital tenha que fazer-se cargo dos custos sociais de uma maior divisão de responsabilidades familiares.
Para além desse aspecto, manter o controle sobre o corpo das mulheres faz do capitalismo controlador de suas capacidades de participar ativamente no mercado de trabalho. Ou seja: mulheres que não têm o direito de decidir sobre sua própria reprodução, frequentemente se veem forçadas a interromper suas trajetórias profissionais — e educacionais —, o que limita ainda mais o seu progresso econômico. Esse fato, por sua vez, assegura uma força de trabalho feminina que pode ser explorada de maneira mais controlada e subordinada.
Manutenção do status quo
Mas a questão vai mais além. A criminalização do aborto também reflete uma visão utilitarista do corpo feminino. O capitalismo precisa de trabalhadores para garantir sua continuidade, e sendo a mulher vista, primordialmente, como reprodutora da força de trabalho, forçar a maternidade não deixa de ser uma forma de garantir que o ciclo de reprodução dessa força de trabalho seja mantido. Assim, ser mãe se torna uma responsabilidade forçada, em vez de uma escolha, sendo um fator que molda a posição da mulher dentro da estrutura capitalista.
Dessa forma, não é conveniente para o capitalismo que mulheres possam interromper a gravidez. Com o aumento do número de pessoas disponíveis para o trabalho, o sistema garante que sempre haverá uma reserva de mão de obra barata, o que serve para pressionar os salários para baixo, bem como para aumentar a competitividade entre os trabalhadores.
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O crescimento demográfico das classes oprimidas, além de criar uma força de trabalho abundante e, em muitos casos, desprovida de opções melhores de vida, em um contexto onde a educação de qualidade e os cuidados de saúde são restritos, principalmente para essas classes, faz o aborto ilegal e inseguro aumentar o risco de desigualdade social e econômica, o que, paradoxalmente, pode ser vantajoso para a manutenção do status quo.
É que um sistema educacional deficiente, que não prepara para empregos mais qualificados, gera uma força de trabalho menos especializada, o que, por sua vez, facilita a criação de empregos subalternos e mal remunerados — justamente aqueles que os capitalistas têm como maior necessidade. Só para pensar um pouco: quem deve limpar os banheiros, os pisos? Quem deve ficar ao sol misturando cimento, areia e água para construir os grandes empreendimentos imobiliários? Quem deve servir as mesas dos restaurantes? Quem deve arrumar os quartos, limpar as piscinas dos hotéis, dos resorts…? Alguém precisa se encarregar do trabalho duro e, muitas vezes, sujo. E as elites não querem realizar essas tarefas. Logo, precisam de trabalhadores subalternizados para assumir esses postos de trabalho.
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Por outro lado, a criminalização do aborto também serve para reforçar um moralismo conservador, o qual, atrelado ao discurso de “valores familiares“, pode neutralizar outras lutas sociais. Desse modo, o foco na moralidade do aborto pode desviar a atenção de questões mais urgentes, como a exploração do trabalho, as condições de vida precárias e a desigualdade estrutural que o sistema capitalista perpetua.
Portanto, ao manter o aborto ilegal e, em muitos casos, inacessível às mulheres vulnerabilizadas, o sistema capitalista não somente assegura o crescimento populacional, mas também assegura uma classe trabalhadora que, em grande parte, viverá em condições de subordinação, precarização, o que facilita sua exploração e, ao mesmo tempo, maximiza o lucro. A grande oferta de mão de obra, resultante de uma população que cresce sem controle, beneficia um sistema que depende da abundância de pessoas dispostas a aceitar condições de trabalho precárias — inclusive semelhantes à escravidão —, o que se torna um pilar fundamenta à continuidade e perpetuação desse sistema perverso.
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Quando vemos os liberais — e as liberais, sobretudo porque se elas necessitarem e quiserem fazer um aborto, o farão, estando legalizado ou não — defenderem com tanta veemência a não descriminalização do aborto, temos que ter em conta o fato de que a criminalização dessa prática só favorece a quem tem dinheiro, seja mantendo seus “valores morais” e “religiosos”, seja mantendo suas contas bancárias recheadas, já que, de fato, impedir que as mulheres (pobres) interrompam uma gravidez lhes dá a certeza de que o ciclo de pobreza e de subalternização permanecerá intacto. Isso lhes garantirá a perpetuação no poder, através de uma riqueza construída a partir da superexploração de trabalhadoras e trabalhadores empobrecidos e sem estrutura para lutar por melhores condições de vida.