O Equador é o terceiro país com mais casos de coronavírus na América Latina: 3.646 casos e 180 mortes até o dia 5 de abril. Apenas o Brasil, que tem uma população 12 vezes maior, e o Chile têm mais casos. Dentro do país, Guayaquil, o principal porto e a maior cidade, é a mais afetada pela pandemia, e concentra 70% dos casos. A cidade tem a maior taxa de mortalidade do país pela covid-19 e a mais alta da América Latina: 1,35 mortes para cada 100.000 habitantes, acima da taxa de São Paulo (0,92).
Muitos de nós vimos as cenas dantescas de corpos jogados nas ruas, cadáveres sendo queimados e abutres voando sobre Guayaquil. A ministra do Interior, María Paula Romo, o Embaixador na Espanha, Cristóbal Roldán, o filho dele Juan Sebastián Roldán, secretário particular do presidente e o mesmo presidente Moreno falam sobre não se deixar levar por notícias falsas e campanhas organizadas contra eles. Será que o The Guardian, The New York Times, a CNN, BBC Mundo, RT Notícias, Telesur, Telemundo, El País, Página12, La Jornada e muitos outros meios de comunicação internacionais, além de toda a mídia nacional, estão espalhando notícias falsas sobre o Equador?
As autoridades locais dão, a cada dia, mais evidências da sua incapacidade. A prefeita de Guayaquil, Cynthia Viteri, do partido de direita Madera de Guerrero, contrariando as ordens das autoridades nacionais, enviou veículos municipais para bloquear a aterrizagem de um avião da Iberia que fazia um voo humanitário. O avião vinha apenas com a sua tripulação previamente testada para o coronavírus para repatriar europeus. Diante da ilegalidade e atentado contra o Direito internacional, a reação nacional e internacional foi muito grande. Dois dias depois, ela declarou que tinha covid-19
Reprodução Twitter
A cidade de Guayaquil, que concentra 70% dos casos de coronavírus no Equador, tem entregue caixas de papelão para recolhimento de mortos
O governador da província de Guayas [gobernador no Equador é uma figura nomeada pelo presidente], onde fica Guayaquil, que recolheu 400 corpos em um fim de semana, em vez dos normais 100, disse: “Talvez tenhamos um toque de recolher completo de 24 horas durante três dias”. Ele disse “talvez” porque não tem autoridade para fazê-lo. O “talvez” dele criou grandes multidões nos mercados e lojas porque as pessoas pensavam que em três dias ninguém poderia sair de casa por qualquer razão.
O presidente Moreno, que há quase três anos traiu as forças políticas que o elegeram e o plano do governo que ganhou na eleição, mostra total incompetência e falta de direção; ele basicamente se esconde, ninguém sabe com certeza onde ele está. Aparentemente, ele se encontra nas Ilhas Galápagos. O vice-presidente, que ele colocou a cargo da emergência, também não governa, mas tenta figurar no meio da tragédia – demonstrando a público sua enorme ignorância – a fim de ganhar sua candidatura à presidência na próxima eleição, em fevereiro de 2021. Eleição em que os “melhores cérebros” da direita, através dos seus operadores no Conselho Nacional Eleitoral, querem adiar sob o pretexto da pandemia. Ou que esta seja feita sem fundo eleitoral, em cujo caso, adivinhe quem poderá gastar em propaganda legal e provavelmente ilegal também.
A ministra do Interior, Romo, acusa os cidadãos de indisciplina, esquecendo convenientemente não só dos desempregados, dos trabalhadores precários e os informais, que não têm salário e não recebem o dia se não trabalham, nem comem; mas também a parte dela constituída pela elite que organizou festas e batizados, quando a presença do vírus na cidade já era conhecida, tornando Samborondón, o distrito mais rico do país, localizado junto a Guayaquil, o distrito proporcionalmente mais infectado do Equador. Festas em que infectaram os trabalhadores contratados para cozinhar, servir, limpar, etc. Os moradores das mansões e condomínios de alto padrão de Samborondón tinham, têm e terão, obviamente, o melhor atendimento de saúde público e privado. Não são os corpos deles os que cobrem as ruas.
Todos os funcionários de governo escondem a subnotificação de pessoas infectadas, doentes e mortas. Uma série de pessoas estão, de improviso, a cargo das instituições críticas desta pandemia. A anterior Ministra da Saúde demitiu-se em meio à crise, denunciando a falta de recursos e o fato de pessoas sem preparação terem sido colocadas em posições-chave na área da saúde. O atual faz declarações confusas e recusou, com apenas 10 minutos de antecedência, uma entrevista com a CNN.
O governo decidiu priorizar a dívida externa antes da vida e gastou – em 25 de março, em meio à crise pandêmica – parte de sua escassa liquidez no pagamento de 100% dos títulos da dívida externa que são negociados a 35% no mercado. Gastou 325 milhões de dólares, essenciais para respiradores, exames, equipamentos para profissionais de saúde, e para garantir uma renda mínima para os milhões de pessoas pobres que não têm salário e que, para ganhar o seu sustento diário, escolhem todos os dias entre a fome e o vírus. Isto foi feito um dia antes do FMI declarar que todos os pagamentos foram suspensos. Ministro das Finanças, quem são os detentores da dívida?
Um governo negligente, indolente, profundamente incapaz, quase deixou os cidadãos entregues à sua sorte. Felizmente, médicos, enfermeiros, policiais, agricultores, trabalhadores rurais, todos aqueles que produzem alimentos, assim como aqueles que limpam, transportam e comercializam alimentos e bens de primeira necessidade ainda estão trabalhando. Sem máscaras, porque já não há, e com pouca roupa de proteção. Isto tem sido denunciado sistematicamente pelos profissionais da saúde em redes sociais, em todos os cantos do país. Pelo menos 27 médicos e 5 enfermeiras morreram nesta crise. O viceministro da Saúde anunciou no dia 5 de abril que tem 1.600 profissionais da saúde infectados, no dia 6 de abril o ministro da Saúde disse são 460.
A capacidade dos serviços funerários da província de Guayas é certamente insuficiente. Isso pode ser explicado pelo déficit de serviços públicos promovido pelos cortes do governo, mas também pela “greve” dos serviços privados por medo da contaminação, ao receberem cadáveres que não foram identificados como infectados pelo novo vírus, e por autoridades incapazes de tomar medidas para resolver a situação, como a nacionalização das casas funerárias. A última medida da prefeitura é entregar caixões de papelão!
Tudo isto está acontecendo, apesar de no dia 24 de março Guayaquil ter sido declarada zona de segurança nacional, sob o comando do comandante das Forças Armadas, o governador Pedro Pablo Duarte, o comandante das forças armadas, Luís Lara, e o vice-ministro da saúde, Ernesto Carrasco.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez um apelo às autoridades equatorianas lembrando que o cuidado com os restos mortais faz parte do direito à dignidade humana.
Em todo o mundo, quem está salvando os doentes nesta pandemia? Os funcionários públicos dos serviços públicos de saúde. Mais ainda os daqueles sistemas que não foram enfraquecidos ou desmantelados por políticas de austeridade neoliberais. E ainda melhor quando todo o Estado é forte e competente, como na China, como na Coreia do Sul. O atual governo equatoriano não só priorizou as isenções fiscais para os mais ricos sobre o orçamento do Estado, que foi sistematicamente reduzido (36% menos gastos com a saúde, o que envolveu a demissão de cerca de 3.500 médicos, incluindo todos os cubanos do Programa Mais Médicos, todos eles muito necessários agora), mas também demonizou e tratou os funcionários públicos como criminosos, demitiu-os, baixou seus salários. E, neste momento, em meio à pior crise epidemiológica da história do país, está ameaçando baixar ainda mais seus salários, e tudo isso enquanto paga os títulos da dívida, não esqueçamos.
A Defensoria do Povo (Ombudsman) exige a demissão imediata de Paul Granda, diretor do Instituto Equatoriano de Seguridade Social (IESS), por contratos irregulares. O IESS tentou comprar suprimentos médicos a um preço excessivamente alto de uma empresa suspeita por ter mudado a sua razão social no dia anterior a oferta.
Guayaquil, que há 40 anos é governada pelo Partido Social Cristiano, partido tradicional de direita, era apresentada pelos seus prefeitos como uma cidade com um modelo bem-sucedido. Aquele modelo apenas cobria com cimento, asfalto e grandes obras de infraestrutura rodoviária, a pobreza da urbe mais desigual do Equador. Uma cidade com 48% de necesssidades básicas insatisfeitas, muitas favelas onde as pessoas têm acesso a água privatizada só duas vezes por semana, uma cidade onde 35% da população não tem esgoto e onde quase metade das pessoas não tem trabalho com carteira assinada.
Renda mínima cidadã? Nunca pensaram nisso. Subvenções para os trabalhadores pobres, informais e precários? Falou-se de 60 dólares por mês para aqueles que ainda não recebem qualquer outro benefício, como o equivalente ao Bolsa Família, mas isto ainda não foi implementado. Aqueles que vivem diariamente e não estão morrendo de fome após mais de duas semanas de isolamento é porque algum conhecido, amigo ou algum serviço privado está cuidando deles. Não esperem quase nada das autoridades públicas, estão ocupadas pagando dívidas e fazendo campanha eleitoral.
Edição: Luiza Mançano
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