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“Crise entre Evo e Arce pode resultar em uma rebelião popular; Evo é um animal político e está encurralado”

Ex-ministro do governo de Evo Morales, Juan Ramón Quintana, alerta para uma possível rebelião popular impulsionada pela crise entre Evo e Arce e o declínio econômico da Bolívia
Gustavo Veiga
Página 12
La Paz

Tradução:

Ana Corbesier

Em entrevista ao site Página/12,  Juan Ramón Quintana, ex-ministro da Bolívia analisa os modelos de gestão militar e critica a impunidade com que são geridas as relações entre o governo e as forças armadas no país andino-amazônico. Ele comenta sobre a tentativa de captação das forças armadas pelo presidente Luis Arce, reflete sobre os erros cometidos durante o governo de Evo Morales na gestão militar e alerta para uma possível rebelião popular impulsionada pela crise econômica e a incontornável crise entre Evo e Arce. Por fim, ele sublinha o papel estratégico dos Estados Unidos na disputa geopolítica pela América Latina, especialmente pela riqueza de recursos naturais bolivianos.

Confira a entrevista:

A vida de transcorre mais tranquila do que quando era ministro da presidência de Evo Morales. Sua atualidade como acadêmico — é sociólogo e, além disso, militar na reserva — também está longe daquele asilo que durou quase um ano na embaixada do México durante o golpe de Estado de 2019 na Bolívia.

Trabalha em um livro sobre a história do Comando Sul, em pesquisas para a CLACSO, dá palestras de formação política para a militância do Movimento ao Socialismo (MAS) e em seu tempo livre desfruta de sua família em Vila Tunari, departamento de Cochabamba, na Bolívia.

Missão Verdade: Como ficou a frente militar depois que um grupo de altos oficiais liderados pelo general Juan José Zúñiga tentou derrubar o presidente Luis Arce?

Juan Ramón Quintana: Gostaria de dizer que há um antes e um depois deste movimento. Não se pode explicar o depois sem o antes. Há três modelos de gestão do tema militar. O modelo neoliberal, o do caudilhismo nacionalista e o modelo patrimonialista de Arce. Quando se realizou o golpe de 2019, com a reconfiguração que propôs o general Williams Kaliman, o protagonismo foi tanto cívico como militar. Depois veio a pandemia e isto deu mais impunidade às forças armadas, que Arce estendeu até limites insuspeitos. Zúñiga é um subproduto da expectativa patrimonialista de Arce.

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Por quê?

Diria que esta relação surge da amizade e por serem compadres. Com Zúñiga começou a pesar mais o capital que representa a arma da inteligência, de onde provém este general. Arce tenta a captação das forças armadas e isso é muito nítido em seus discursos sobre temas militares. Seus discursos eram feitos pela equipe de inteligência de Zúñiga e aumentavam as teorias conspirativas. Neste contexto, passou a ocupar um espaço muito importante, como um dos braços em que se apoiou o presidente. O outro é o braço da política policialesca do ministro de Governo, Eduardo Del Castillo. Isso leva a uma derivação autoritária de Arce.

Em que se baseia para dizer isto?

Na impunidade com que são geridas as relações com as forças armadas e a polícia. Havia um pacto carnal de Arce com Zúñiga e há outro de Del Castillo com a Polícia.

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Mas os partidários de Arce dentro do MAS poderiam afirmar o mesmo de Evo com o general Kaliman, que poucos meses antes do golpe de 2019 declarou que “a força militar morrerá anticolonialista” e depois o traiu.

Quando Evo governava houve um componente desestabilizador que vinha de fora e que cooptou Kaliman muito no fim. Fez seu pronunciamento quase envolvido pela estrutura que tramava o golpe. Mas na gestão de Evo mantivera uma linha apegada a velhos cânones de competência profissional.

Zúñiga fez o Exército retroceder ao século 19. Há centenas de oficiais que têm ódio dele por isso. Quebrou em mil pedaços a meritocracia. Nas forças armadas ainda existem seguidores de Kaliman, Zúñiga, García Meza e até banzeristas.

Por que sobrevivem as ideias destes militares sediciosos que participaram de golpes de Estado em diferentes décadas?

Porque em 40 anos não receberam uma modernização democrática. Há uma inércia caudilhista muito forte, com uma tendência depreciativa do mando político. Não se sentem parte da modernização estatal que o governo de Evo encarnou. Seu sentimento é de marginalidade e oportunismo. A convivência foi perigosa e acumularam políticas conceituais dadas sempre pelo Comando Sul; este é seu único projeto estratégico.

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O senhor, como ex-militar e assessor de Evo em temas castrenses durante sua presidência, tem algo de que se autocriticar?

Eu sempre lembrava Evo e Álvaro (o ex-vice García Linera) que com as baionetas se pode fazer tudo, menos sentar-se em cima delas. No governo fizemos reformas epidérmicas e pensávamos que isso bastava. Mas cometemos erros na gestão política do tema militar. Por que não foram reformadas as forças armadas na Constituição do Estado Plurinacional? Pelo risco de que houvesse um golpe.

Mas a ameaça continua vigente vários anos depois. Ocorreram em 2019 e há algumas semanas.

Eu diria que se há um resultado da crise que acaba de ocorrer é o divórcio entre Arce e as forças armadas. O segundo dado é a tendência absurda, arrogante, do ministério de Governo pela incapacidade de compreender as consequências desta satanização dos militares.

O ministro Del Castillo gerou feridas muito profundas nas forças armadas e elas estão digerindo uma revanche. A quem ocorreria expô-las como se fossem vulgares delinquentes? Foi longe demais.

E o fez em companhia dos comandantes da Polícia que mantêm uma história conflituosa com os militares. Em 2003 morreram, entre soldados e policiais, uns trinta, quando se enfrentaram no chamado fevereiro negro durante o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada. Eu diria que a Polícia tem muito mais condições golpistas que as forças armadas.

E, ao ser dirigida por um político como Del Castillo, recebe mais equipamento e melhor pagamento do que os militares. Isso faz que se esteja cultivando um enfrentamento que vejo mais viável do que um próximo golpe de Estado.

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A relação entre Arce e Morales está definitivamente rompida?

É irreconciliável. O projeto arcista é de captura estatal e passa por aniquilar Evo. Por isso não concordo com García Linera. Não se pode comparar os dois. Afirmei que o evento Zúñiga foi um episódio isolado e, se olharmos bem, foi um golpe deliberado. Sim, acho também que Evo exagerou com o tema do autogolpe. Não soube explicar direito.

O que pensa que sucederá no curto e no médio prazo na Bolívia?

O árbitro deste país é a economia. E se a crise se aprofunda, os movimentos sociais vão tomar as ruas. Arce está em uma corrida obsessiva para destruir Evo porque teme que se voltar à presidência poderá detê-lo. É inevitável uma rebelião popular atiçada pela crise econômica. Mas esta rebelião seria impossível sem Evo. Ele é um animal político e está encurralado.

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Por último, que papel desempenham os Estados Unidos neste panorama?

A Bolívia sintetiza a disputa pela América Latina. Expressa a voracidade de uma luta geopolítica por toda a região. Aqui há recursos naturais, lítio, água doce e os gringos já não se importam em respeitar as regras. Estão jogando tudo na Bolívia e não vão cuidar das formas.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Gustavo Veiga

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