A política exterior dos EUA tornou-se uma espécie de “cubo mágico”. Num momento, o cubo está todo vermelho, com a equipe aparentemente pronta para desescalar tensões com Rússia ou China; e no momento seguinte, o cubo gira para outra conformação, com Washington esgrimindo sanções de gume muito afiado, estupidezes e shows de força militar. O que mais intriga é que o cubo um dia é tão agressivamente azul, e no dia seguinte já é, vermelho calmante.
É claro que os EUA visam a manter a primazia mediante sua própria e autodefinida ordem global; mas tem-se a impressão de que aquela “equipe” quer, ao mesmo tempo, fazer guerra de 5ª geração, e exigir – e esperar – cooperação dos próprios “adversários” em uns poucos pontos específicos de interesse dos EUA (como mudança climática, que é a pedra de toque a partir da qual os norte-americanos contam com um re-boot[1] [‘reiniciar’, como se recomenda para computadores travados (NTs)] a própria economia política).
Não surpreende que o resto do mundo coce a cabeça, sentindo que tais contradições não têm nenhum sentido, e boicotando simultaneamente qualquer sucesso que qualquer dos lados ainda espere obter.
Há quem especule que haja diferentes “equipes” manejando as cordas na Casa Branca, às vezes uma “equipe”, às vezes outra. Talvez haja aí alguma verdade. Mas talvez também, o erro esteja em nós tanto insistirmos, como obcecados, em ver a política exterior de hoje pelo prisma super convencional de um Estado que estaria perseguindo seus interesses nacionais em terra estrangeira.
É possível que estejamos testemunhando uma política exterior com raízes em algo diferente, de outra natureza, que não sejam interesses nacionais como se os entendem tradicionalmente.
Estamos talvez, lidando com uma “geopolítica da memória” que já não é limitada por qualquer estado específico, mas requer “legitimação moral” muito mais ampla, em termos geográficos. O ‘interesse nacional’, assim sendo, se centraria mais na gestão da revolução cultural, do que na lógica para relações bilaterais.
Uma das asas desse “pássaro” é evidente num monólogo potente (e controverso) trazido por Tucker Carlson, importante comentarista político [conservador] norte-americano, atualmente dedicado a explicar por que um dos partidos norte-americano está importando um novo eleitorado, para diluí-lo e, com ele, substituir o eleitorado existente – e já faz isso há décadas. Esse – garante Carlson – é o impulso dominante na política norte-americana. É “política de substituição” [ing. ‘replacement politics’, aspas no original].
Carlson oferece exemplos de estados dos EUA (como a Califórnia) que tiveram sua compleição política permanentemente alterada por efeito da mecânica da imigração. Insiste que há uma desvalorização do eleitorado existente: assim como o tal “dinheiro que cai de helicóptero”, “dinheiro fiat” (no bolso de cada cidadão), que é desvalorizado pelas prensas de imprimir dinheiro que cospem mais e mais moedas, também os votos do eleitorado existente podem ser politicamente desvalorizados mediante imigração excessiva. Até que o antigo eleitorado é finalmente substituído por novos eleitores que defendem lealdade à parte que os importou.
Não se trata de compaixão pelos imigrantes, diz Carlson, trata-se de poder.
Casa Branca
A política exterior dos EUA tornou-se uma espécie de “cubo mágico”.
O objetivo, Carlson continua, é “refazer” o eleitorado que se oponha aos legítimos interesses da maioria tradicional branca. Biden sugeriu a permanência desse remake quando, tendo exaltado sua agenda muito radical (na primeira conferência com a imprensa), questionou se, bem feitas as contas, ainda haveria Partido Republicano.
Esse objetivo posterior, Carlson afirma, é o núcleo da política atual, e cita a coluna do NYTimes: “Podemos substituí-los”: “O potencial ali está; a Geórgia é menos de 53% branca não hispânica”.
É processo que já tem décadas, Carson insiste. E tem mesmo.
O presciente The Revolt of the Élites de Christopher Lasch já previra, em 1994, uma revolução social que seria conduzida pelos filhos radicais da burguesia. Suas demandas seriam centradas em ideais utópicos: diversidade e justiça racial. Um dos insights chaves de Lasch mostrou-lhe que futuros jovens norte-americanos marxizantes entregariam a guerra de classes, aceitando, em troca, a guerra cultural.
Foi a era, além do mais, de Bill Clinton e Tony Blair, quando a esquerda [liberal (NTs)] norte-americana e europeia cortejava Wall Street com promessas de desregulação, e começara a lançar os alicerces de duradouro controle sobre o poder. Lasch já escreveu também sobre a próxima simbiose entre guerra cultural e Big Business (que hoje está em plena avançada).
Foi Obama, contudo, quem selou esse casamento com as euroelites. Obama também deu corpo à noção da ‘revolução woke (orig. ‘woke’ revolutionPolitics of Memory de Stanley Payne (aqui, ing.).
A ressonância daquela iniciativa sobre o que está acontecendo nos EUA é clara. Mas o que, afinal, está acontecendo aqui nos EUA, no nível mais profundo? Por que imitamos os europeus, como imagem especular?
No fundo, a meta é ampliar o apoio ao ‘moralmente correto’ da revolução “Acordai!”: ampliá-lo até que envolva uma elite europeia, já bem pré-preparada (pela memória política, como referido acima) para a guerra cultural – embora, lá, mais orientada para substituir “populistas” e nacionalistas europeus por adeptos do projeto imperial da União Europeia.
O “Reset” (substituir uma base manufatureira que agoniza, por automação e High Tech) é parte constitutiva desse plano de “Rotação do Poder”. A agenda do Reset, de Davos, especifica em detalhes a necessidade de novas ferramentas para disciplinar o povo. Os que escolham manter-se distantes, ou renegar a nova indulgência política (i.e., os movimentos “Acordai!”), serão provavelmente “condenados e ritualmente descartados”, conforme as empresas organizem-se pelas novas regras ideológicas ASG (Ambientais, Sociais e de Governança) (ing. “regras ESG: Environmental, Social and Governance).
Já está acontecendo com os não portadores de Passaporte Vacinal, que já encontram dificuldades para participar da vida pública, para viajar ou para trabalhar (trabalho que só se admite na modalidade home office). Um sistema de ajuda financeira estatal é correspondente lógico inescapável do Passaporte Vacinal, e virá a seu tempo. O círculo já está praticamente fechado, em teoria, contra qualquer dissidência.
O aspecto de política exterior dessa suposta “revolução” deve ficar bem claro. O nacionalismo russo ou chinês, ou de fato qualquer soberania, são per se ameaça existencial a uma “revolução” concebida para eliminá-los ambos.
Rússia e China podem ser ofendidas e caluniadas livremente, como se fossem o generalíssimo Francisco Franco reencarnado;[2] mas na ausência de mais ampla adesão europeia à validade moral de “substituir-se”, em nome de injustiças históricas, uma população fundadora, a mudança seria vista, na melhor das hipóteses, como frágil.
Num dia, a “equipe” age agressivamente (no caso da Rússia); mas também retrocede, quando a agressão ameaça a Europa (no caso do risco de eclodir guerra quente pela Ucrânia) –, porque “a equipe” ainda não recebeu o tácito endosso moral dos líderes europeus para seu experimento doméstico sem precedentes. Em resumo, o experimento “Rotação no Poder” é o rabo abanando o cachorro da política exterior dos EUA.
Se tudo isso parece um pouco fábula delirante, é porque é. E fracassará, muito provavelmente.
O estresse imposto à coesão societal dos EUA pelo lançamento de uma revolução cultural de tipo woke (os Movimentos “Acordai: Vidas negras/mulheres/ o ‘verde’/ o-a ‘jovem’/ o-a ‘idoso’/ o-a ‘homossexual’ etc. importam!” pode vir a se provar forte demais.
A Revolução Cultural Chinesa, lançada por Mao (como parte de sua campanha de 1966, para afastar rivais do Partido), muito rapidamente se converteu em movimento decentralizado, semicaótico de Guardas Vermelhos, estudantes e outros grupos que partilhavam ideias e programas, mas agiam com excessiva independência na relação com a liderança central do Partido.
Já há sinais de que ativistas norte-americanos nos movimentos de rua começaram a condenar, por charlatanismo, os próprios líderes: Obama pelas primeiras deportações; e Pelosi pelo imoralismo espetaculoso que manifestou no desfecho do caso George Floyd: “Assim, mais uma vez, muito obrigada, George Floyd, por sacrificar a própria vida pela justiça”. (Absurdo. George Floyd não escolheu morrer. E nada “sacrificou”: foi sacrificado.)
Como terminará? Ninguém sabe.
Em Demônios, Dostoievsky nos faz lembrar, contudo, o quanto os liberais seculares russos dos anos 1840s, gentis, sensíveis, bem-intencionados, prepararam o caminho para a geração dos anos 1860s, de crianças radicalizadas, enlouquecidas de tanta ideologia, empenhadas em destruir o mundo e executar pai e mãe. Revoluções têm o costume de ‘comer’ os próprios filhos.[3]
Na Europa, a fúria contra a absoluta incapacidade da liderança institucional da União Europeia para tratar uma série de questões, de vacinas até o ‘dano de guerra’ já ativo em partes da economia europeia (com intermináveis lockdowns), fala mais de uma Europa que bate cabeça à procura de algum (qualquer!) líder efetivo, com a visão necessária para conduzir o continente por trilha que o afaste do abismo. Há algum por aí? Até agora, ninguém sabe, ninguém viu.*******
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[1] 22/3/2021, “Economia global ‘mascarada-de-verde’: delírio que pode derrubar tudo”, Alastair Crooke (ing., SCFBlog Bacurau Homenagem ao Filme) NTs.
[2] Referência a Politics of Memory, Stanley Payne, aqui (ing.), que comenta um projeto de lei, apresentado pelo governo socialista da Espanha, em janeiro de 2020, para formalização de uma “Lei da Memória Histórica e Democrática” (que geraria uma “comissão da verdade”), que processe e julgue os feitos e crimes da ditadura franquista, baseado em projeto de lei assemelhada, encaminhado pelo Governo socialista de Zapatero, na Espanha, em 2007 [NTs].
[3] Referência a uma frase muito repetida como se tivesse a ver com a Revolução Francesa e se aplicasse ao período do Terror (1793-1794). Mas é comentário de um belga, quase dez anos antes da Revolução Francesa. Mallet du Pan, protestante liberal que apoiou de início a Revolução de 1781-1782 dos liberais belgas contra a República de Genebra (cidade-estado) e depois se voltou contra ela (mais sobre isso aqui, fr.). A frase original e a citação incorporam o mito grego aparentemente imortal de Cronos (Saturno) que devora os próprios filhos, devoração de um dos quais Goya pintou entre 1819–1823 [NTs, com informações da Wikipedia].
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