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Donald Trump (Foto: Reprodução / Facebook)

De volta à Casa Branca, Trump vai dizimar obstáculos para garantir reinado sem limites

Trump volta à presidência dos EUA ressentido e convicto de que as instituições do país devem servir exclusivamente a ele
Iñigo Sáenz de Ugarte
El Salto
Madri

Tradução:

Guilherme Ribeiro

Em sua carreira política não muito longa para um homem de 78 anos, Donald Trump não deixou de surpreender. A conquista desta quarta-feira supera todas as anteriores. Sua vitória nas urnas lhe permite voltar à Casa Branca quatro anos após ser derrotado por Joe Biden. Esse tipo de retorno é sem precedentes na história política estadunidense moderna. É preciso voltar ao século 19 para encontrar algo semelhante, com a vitória de Grover Cleveland em 1892.

Claro que também é difícil encontrar muitos políticos parecidos com este promotor imobiliário nova-iorquino. Seus três casamentos e sua vulgaridade não o impediram de receber o apoio total dos ultraconservadores evangélicos. Suas ideias divergentes da cultura conservadora na economia, em relação ao comércio exterior, não o privaram do voto da maioria dos eleitores republicanos, que, no fim das contas, valorizam que Trump fará o que lhes importa: reduzir impostos.

Um disparo de fuzil quase pôs fim a seus planos nesta campanha e por pouco não lhe arrancou a cabeça. Passou de raspão pela orelha, mas um desvio de um centímetro poderia ter mudado a história do país. “Muita gente diz que Deus salvou minha vida por uma razão”, disse Trump ao celebrar sua vitória na noite passada. “A razão foi restaurar este país, repará-lo. Vamos cumprir essa missão juntos”. Esse “juntos” é discutível. O futuro presidente sabe muito bem o que aconteceu em seu primeiro mandato. Agora, não permitirá que nenhum membro de seu governo ou assessor altere seus planos. Será feito o que ele disser.

Um dos elementos singulares da trajetória de Trump é o pouco que ele mudou desde os anos em que nem ele mesmo pensava que poderia ter sucesso caso se envolvesse na política, quando pouquíssima gente o conhecia fora do estado de Nova York. Tudo isso mudou com um programa de televisão, que o criou como figura pública nacional. “O Aprendiz” era um reality em que jovens aspirantes a gênios dos negócios competiam diante de um único juiz, Donald Trump. Os criadores sabiam o que tinham que fazer. “Nosso trabalho naquela época consistia em fazer uma engenharia reversa do programa para que ele não parecesse um completo idiota”, disse um membro da equipe de produção aos autores do livro “Lucky Loser”.

Essa mesma sensação de ilusão — uma fantasia difícil de acreditar — existiu quando ele apresentou sua candidatura às primárias republicanas para as eleições de 2016. Contra as previsões de quem cobria as primárias há décadas, Trump foi o vencedor da competição interna e depois das eleições presidenciais. Alguns ingênuos acreditaram que Trump se moderaria ou se adaptaria às estruturas tradicionais do sistema político estadunidense. Não poderiam estar mais equivocados.

O mesmo efeito de incredulidade teve sua chegada à Casa Branca, que iniciou um período caótico de governo que acabou arrasado pela pandemia. Trump se revelou como o pai protetor da desinformação como forma de fazer política quando se negou a reconhecer sua derrota nas urnas para Biden em 2020. O ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 demonstrou o preço que as democracias podem pagar se aqueles que desprezam as instituições democráticas têm sucesso. Naquele momento, parecia que o futuro de Trump havia sido descartado de forma definitiva, ao se tornar claro e visível a todos que ele se tornara um perigoso inimigo da democracia. Mais uma vez, foi uma previsão errada.

Em 2022, com as eleições legislativas, ele chega talvez ao ponto mais baixo de seu prestígio entre os conservadores. Candidatos promovidos por ele — alguns realmente excêntricos — são derrotados. Até os meios de comunicação de Rupert Murdoch registram seu declínio.

No auge do descrédito, o tabloide conservador The New York Post, que sempre o apoiou, coloca seu anúncio de que ele concorrerá às primárias na parte inferior da capa com a manchete “Homem da Flórida faz um anúncio” e envia a notícia para a página 26. “Seus níveis de colesterol são desconhecidos, mas sua comida favorita é um bife bem passado com ketchup. Ele declarou que seus méritos para o cargo incluem ser ‘um gênio estável’. Trump também foi o 45º presidente”, dizia o texto, escrito apenas com a intenção de zombar dele.
Foi outra miragem. Trump transforma essas primárias em um passeio. O Partido Republicano está em suas mãos e se tornou uma plataforma para seu benefício pessoal.

Trump: mais dinheiro do que classe

Donald John Trump, 78 anos, 1,90m de altura, talvez um pouco menos sem saltos nos sapatos, quase sempre com mais de cem quilos, nascido em Nova York e residente na Flórida desde 2020, abstêmio e grande consumidor de hambúrgueres (sua comida favorita é um Big Mac, um sanduíche de peixe também do McDonald’s, batatas fritas e um milk-shake de baunilha, segundo seu genro), três casamentos, cinco filhos, um ego ainda maior que seu porte. Um homem obcecado com a opinião que os outros têm dele.

Na juventude, é um grande admirador de Richard Nixon, o presidente que mais influenciou a política norte-americana nas décadas seguintes. Dele, herda o ressentimento pessoal contra as elites da Costa Leste que ignoraram Nixon no início e o destruíram depois. E também o ressentimento contra a evolução de um país em que os brancos não são mais os únicos a deter as rédeas do poder. No fundo, ele quer que os EUA voltem a ser o país que eram antes, em um mundo diferente que não voltará. Antes que as mulheres e os negros reivindicassem seus direitos.

Não se pode entender Trump, conta Maggie Haberman – a jornalista do The New York Times que mais o conhece, por escrever sobre ele desde seus tempos como empresário em Nova York –, sem lembrar seus primórdios no distrito de Queens e seus primeiros passos seguindo os feitos de seu pai.

Apoiado inicialmente por empréstimos pessoais de Fred Trump, ele expandiu o poder da empresa familiar até alcançar o sucesso com a construção de um arranha-céu na Quinta Avenida de Nova York, que, inevitavelmente, levaria seu nome, a Trump Tower. Sempre com a ideia de que o objetivo é ser milionário, mas realmente importante é aparentar ser milionário para se misturar com as antigas fortunas de Manhattan, que sempre o viu como um arrivista do Queens com mais dinheiro do que classe.

“Seus principais interesses eram o dinheiro, o domínio, o poder, o assédio e ele próprio. Para ele, as normas e as leis constituíam obstáculos desnecessários, mais que freios à sua conduta”, escreve Haberman no livro O Camaleão. Como era comum nos anos 1980, Trump constrói seu império sobre uma montanha de dívidas, aproveitando-se do princípio de que, ao dever dezenas ou centenas de milhões a um banco, o risco não é só seu, mas também da instituição.

As regras existem para serem quebradas. Ele é capaz de manter contatos com a máfia de Nova York – naquela época, era quase impossível conseguir cimento e não ter problemas com sindicatos sem assegurar seu apoio – e também ganhar a confiança do poderoso promotor distrital Robert Morgenthau, cujos alvos nos tribunais eram peixes maiores que aquele empresário sem escrúpulos.

Para as jogadas sujas, ele conta com a ajuda inestimável do advogado Roy Cohn, que começou sua carreira como assessor do senador McCarthy nos anos 1950. Um personagem sinistro, com uma habilidade inata para navegar no sistema de poder corrupto da cidade. Trump nunca o esqueceu. Se Cohn estivesse vivo, eu ainda seria presidente, disse ele a colaboradores após sua derrota em 2020.

Em sua trajetória, ele sempre deixa claro que só se interessa pelo presente. Não se preocupa em pensar a longo prazo. A nostalgia é uma de suas características pessoais e políticas. “Trump também vive no eterno passado”, diz Haberman em seu livro. “Ele carrega constantemente uma lista de ressentimentos, ou quimeras de bons tempos perdidos, e tenta forçar os outros a revivê-los com ele no presente”.

Egocêntrico e irresponsável

Trump não esqueceu aqueles que o traíram em seu primeiro mandato. No início, ele estava ciente de sua falta de experiência política. Por isso, vangloriou-se de que nomearia “um governo dos melhores”. Se fossem militares aposentados com prestígio em círculos conservadores, valiam o dobro. O general James Mattis no Pentágono. O general H.R. McMaster como conselheiro de Segurança Nacional. O general John Kelly como secretário de Segurança Interna e, depois, chefe de gabinete. Rex Tillerson, CEO da Exxon Mobil, como secretário de Estado.

Todos acabaram fartos de sua maneira caótica de governar e de seu surpreendente desconhecimento do funcionamento da administração pública. Em apenas alguns meses, Tillerson já pensava em renunciar e disse, na presença de testemunhas, que Trump era “idiota”. Menos de um ano após sua demissão, falou abertamente que precisou explicar a Trump que algumas coisas que ele queria fazer eram ilegais ou violavam tratados internacionais. Descreveu-o como “um homem bastante indisciplinado, que não gosta de ler e que não gosta de ler os relatórios que preparam para ele”.

Trump, o “salvador”?

Kelly foi ainda mais direto. Não teve problemas em revelar conversas pessoais. Relatou que Trump lhe disse que queria ter “os generais de Hitler” sob seu comando, militares que obedecessem suas ordens sem questionar, por mais brutais que fossem. “Certamente, o ex-presidente está na extrema direita, é realmente um autoritário e admira os que são ditadores, ele já disse isso. Portanto, sim, ele se encaixa na definição geral do que é um fascista”, afirmou este mês.

A imprensa não aguenta que eu diga que é uma pessoa brilhante”, comentou Trump sobre Xi Jinping há uma semana em um comício. “Ele governa 1,4 bilhão de pessoas com mão de ferro”. Pensa o mesmo de Vladímir Putin e Kim Jong-un. São os tipos duros do planeta, e ele se coloca na mesma categoria. O que mais o irrita é que esses líderes não respeitam os Estados Unidos. “Ele achava que Obama era um verdadeiro idiota”, disse sobre Kim.

Sem obstáculos

Trump não está disposto a repetir os erros em nomeações de seu próximo governo. Exigirá lealdade absoluta e certamente não se importará com o que outros governos digem. Ele ameaçou impor tarifas sobre a importação de uma série de produtos. A maioria dos economistas afirma que isso causará um forte aumento da inflação. Para ele, não é uma questão econômica, mas de poder.

Assim como em sua época de empresário, Trump acredita que em toda transação econômica – seja entre pessoas, empresas ou estados – há um vencedor e um perdedor, alguém que engana e alguém que é enganado. Ele não acredita em relações comerciais em que ambas as partes saiam beneficiadas. Há anos, senão décadas, afirma que os EUA, a economia mais poderosa do mundo, são enganados por todos os outros países.

A retórica incendiária de Trump o acompanhou em todas as campanhas de que participou. Agora, sua linguagem está ainda mais vulgar e ameaçadora. Ele disse que Kamala Harris foi “uma vice-presidente de merda” ou que está “mentalmente desequilibrada”. Prometeu “deportações em massa”. Anunciou que fará uma grande purga na administração para expulsar todos os que não lhe forem leais e que prenderá os rivais políticos que, segundo ele, manipularem o sistema de votação para negá-lo a vitória.

Em uma pesquisa recente do The New York Times, 41% se mostram de acordo com a frase “as pessoas que se ofendem com os comentários de Trump levam suas palavras a sério demais”. Muitos de seus eleitores republicanos não acreditam que ele fará tudo o que promete e preferem focar na redução de impostos que ele garantiu colocar em marcha. Todos esses avisos sobre o perigo que ele representa para a democracia não os interessam tanto quanto seu bolso.

Ajudado por esse propagador de desinformação que é o dono do Twitter, Elon Musk, as mentiras e os boatos fazem parte de sua dieta básica, especialmente para realizar ataques xenofóbicos. Em 2016, declarou que os imigrantes que chegam do México são “estupradores”. Em setembro deste ano, disse que os imigrantes haitianos roubam cães e gatos para comê-los em uma cidade de Ohio. Um jornalista da Fox News perguntou depois se ele sabia que isso não era verdade. “Li isso em algum lugar”, respondeu, mas continuou: “E os gansos? E o que aconteceu com os gansos? O que aconteceu ali? Todos desapareceram”.

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Trump está convencido de que mentir é irrelevante. Seus partidários não o cobrarão por isso. Ele explora seus ressentimentos para mostrar que está disposto a fazer o que outros nunca fariam. Sua confiança em si mesmo se reflete em sua frase mais famosa das primárias de 2016: “Eu poderia me colocar no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém, e não perderia nenhum eleitor, certo? É realmente incrível”, disse duas semanas antes do início daquela disputa.

Oito anos depois, a frase continua válida e volta a ocupar a mente de qualquer observador dos Estados Unidos. Não importou quantas vezes ele desrespeitou elementos básicos do funcionamento da política estadunidense. Nas urnas, não pesaram os insultos grosseiros a seus rivais, nem o desprezo pelos meios de comunicação, incluindo, por vezes, alguns que o apoiavam. Tampouco importou que seus conhecimentos econômicos sejam limitados ou deixam muitos economistas perplexos. Trump voltou a ser o campeão da direita mais reacionária sem perder apoio entre os eleitores republicanos tradicionais.

O mundo todo está prestes a enfrentar mais quatro anos de um homem ressentido na presidência dos EUA, que acredita que as instituições devem servir exclusivamente a ele. Desta vez, em seu último mandato como presidente, ele não permitirá que ninguém o engane novamente. Os EUA voltarão a ter um rei quase 250 anos após terem renegado ao monarca Jorge III e expulsado os britânicos do país.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Iñigo Sáenz de Ugarte

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