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Voltei a ler nos últimos meses alguns livros de Arthur Koestler. Quase esquecido, Koestler foi em meados do século passado um dos escritores mais famosos e polêmicos do mundo.
Miguel Urbano Rodrigues*
Nascido em Budapeste numa família de judeus, o seu interesse pelo sionismo levou-o a viajar para a Palestina aos 20 anos. Dessa experiência resultou, em 1946, o romance Os Ladrões da Noite (Thieves in the Night, no original inglês) inspirado na fundação dos primeiros kibutzim, colonatos estabelecidos em terras compradas dos árabes ainda na época do império Otomano. Eram revolucionários românticos esses precursores de Israel vindos da Europa, da América, da Ásia e da África. A ação do livro transcorre durante o mandato britânico na Palestina, um estranho tempo de transição. A maioria, de formação marxista, sonhava com a sociedade socialista perfeita. Na comuna da Torre de Ezra não circulava dinheiro nem havia propriedade privada e parte do coletivo acreditava ingenuamente na possibilidade de relações fraternas com os árabes que seriam beneficiados pelo convívio pacífico com uma cultura mais avançada tecnicamente.
Mas nem todos eram revolucionários na comuna de Ezra, e ali eram identificáveis os germes das perversões que iram manifestar-se tragicamente no Estado de Israel.
Uma das personagens, angustiada, interroga-se sobre o que será, quando levado à prática, o projeto de colonização judaica na Palestina idealizado por Theodor Herzl.
O livro só foi publicado quando Koestler ia completar 40 anos.
Nas duas décadas anteriores a sua vida fora a concretização de uma aventura permanente e fantástica.
Sempre imprevisível e versátil, aos 31 anos tinha participado de uma expedição polar, aderira ao Partido Comunista Alemão, defendia com paixão a União Soviética, e continuava a ser sionista.
Em l937, quando cobria para o News Chronicle a Batalha de Málaga, foi preso pelo exército de Franco, encarcerado numa prisão de Sevilha, e condenado à morte.
A sentença não foi executada e dessa experiência resultou O Testamento Espanhol (na edição portuguesa), uma meditação simultaneamente ideológica e existencial que prenuncia a sua ruptura com o Partido.
Nas vésperas da II Guerra, é preso em França e internado num campo de concentração dos Pirenéus. É ai que escreve parte de O Zero e o Infinito (Darkness at Noon,na edição inglesa), o romance que o tornaria mundialmente conhecido.
Essa segunda prisão, a que em breve se seguiria uma terceira, é fonte de inspiração de La Lie de la Terre (Scum of the Earth no original inglês), ensaio pungente sobre o sofrimento no campo de horrores.
Nos anos de Paris, antes da guerra e imediatamente depois, conviveu intimamente com escritores como Albert Camus, Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que romperam com ele após a publicação de O Zero e o Infinito.
Foi amante de mulheres famosas. Segundo Georges Orwell, a ele se ajusta a expressão tarado sexual. Espancava a segunda mulher e alguns dos seus biógrafos afirmam que cometeu crimes de violação. Neurótico, experimentou múltiplas drogas alucinógenas.
Mas a sua sexualidade atormentada não ajuda a compreender o processo que fez do revolucionário marxista um anticomunista fanático, colaborador da CIA, tal como Orwell.
À Palestina voltou muitas vezes, e em todos os livros e artigos que escreveu sobre Israel transparece a sua opção sionista.
A publicação em 1974 – tinha então 69 anos – de The Thirteen Tribe (Os Cazares, a 13ª Tribo e as origens do judaísmo moderno, na edição brasileira – foi, portanto, recebida como bomba política e literária. Em Israel, os historiadores desancaram o autor. De escritor amigo, admirado pelos governantes e pelo mundo académico, Koestler passou a vilão, a falsificador da história.
A tese do livro não é original. Em muitas universidades da Europa e dos EUA tinham sido publicados desde o século XIX trabalhos sobre o judaísmo dos Cazares, um povo turco de olhos claros que, depois de se fixar no baixo Volga e nas estepes do Mar Cáspio, desempenhara um importante papel nas lutas entre Bizâncio e o Califado. As fontes a que Koestler recorre para chamar a atenção para a diáspora Khazar, após a invasão da Europa pelos Mongóis de Batu Khan, eram conhecidas.
Mas o prestígio do escritor fez de uma questão académica, debatida nos departamentos de História de algumas universidades, tema de manchetes na comunicação social.
Koestler ofendeu milhões de judeus ao contestar as origens étnicas do povo que se proclama descendente de Abraão e Moisés. No seu livro explosivo afirma que a maioria dos Asquenazes que criaram o Estado de Israel vindos da Europa Ocidental, dos EUA, da Polónia, da Rússia e outros países descende na realidade dos Cazares turcos.
A 13ª Tribo é um livro muito importante, mas sem qualidade, que não está à altura dos méritos literários do autor. Mal estruturado, repetitivo, erudito e redigido num estilo pesado, o seu êxito nasceu da indignação que o assunto suscitou no mundo judaico.
As veementes críticas de que foi alvo não impediram Koestler de continuar a defender o direito à existência de Israel. A negação da origem étnica dos pioneiros do sionismo não afetou minimamente a sua solidariedade com o povo do Estado implantado na Palestina com o patrocínio da Inglaterra e dos EUA.
Independentemente dos mitos invocados para justificar o regresso à Terra Santa, Israel tonara-se uma realidade no século XX. Repetir o romano Adriano e expulsar dali os judeus aparecia-lhe como um ato de barbárie.
Para Koestler, a legitimidade de Israel não provém da origem racial dos seus cidadãos, mas da decisão da ONU, em1947, de partilhar a Palestina em dois Estados, um árabe, outro judaico.
“Em resumo-escreve na l3ªTribo – os judeus da nossa época não tem em comum uma tradição cultural, mas apenas certos costumes e padrões de comportamento baseados numa herança social da experiência traumática do gueto e de uma religião que a maioria não prática, mas que lhes confere um estatuto pseudonacionalista”.
O livro de Koestler foi, aliás, rapidamente esquecido. Os lobbies judaicos contribuíram para isso, comprando milhares de exemplares das suas edições em várias línguas e destruíram-nos. É hoje uma obra difícil de encontrar, até nos alfarrabistas.
Mas, inesperadamente, transcorridos mais de três décadas, um historiador judeu retomou a tese de Koestler e desenvolveu-a em dois livros.
Shlomo Sand, professor de História na Universidade de Tel Aviv, reuniu uma documentação exaustiva e de qualidade e recorreu a conclusões da moderna arqueologia (inclusive israelense) para demonstrar no primeiro desses livros Comment le Peuple Juif fut Inventé (na edição francesa), que a grande maioria dos judeus Asquenazes descende realmente dos Cazares e que os antepassados dos sefarditas foram berberes judaizados do Exército de Tarik ibn Ziyad que invadiu a Espanha no século VIII. Na sua ofensiva contra os mitos do povo mosaico contesta a própria existência de Salomão e a autenticidade das ruínas do Templo de Jerusalém.
No segundo livro, sustenta que A Terra de Israel é outra invenção. Nem o Antigo Testamento nem o Talmude mencionam a expressão. Quando se referem à Terra de Canaã, não incluem nela Jerusalém, Hebron e Belém. A Israel bíblica era somente a Samaria. Nunca esta e a Judeia estiveram unidas num reino único.
Daniel Sassoon, professor de História Comparada da Universidade de Londres, judeu antissionista, identifica-se totalmente com a posição de Shlomo Sand e pulveriza como ele a mitologia nacionalista judaica.
O relato bíblico deixa aliás transparente que os judeus vindos do Egito foram um povo colonizador.
Destrói-os completamente – ordenou-lhes o Senhor, “prevendo que os Amoritas voltassem. “Passem pela espada todos os homens (…) Quanto às mulheres, crianças, gado e tudo o mais…podem tomá-lo para vós como pilhagem» (Deuteronómio 20).
Arthur Koestler não viveu o suficiente para tomar conhecimento de que a sua tese sobre os judeus Cazares como antepassados dos Asquenazes é assumida hoje por um prestigiado professor de História da Universidade de Tel-Aviv.
O avanço da doença de Parkinson e o agravamento de uma leucemia contra a qual lutara sem êxito fê-lo optar pelo suicídio em 1983. A sua terceira mulher acompanhou-o, tomando idêntica decisão.
*É jornalista e escritor. Serpa e Vila Nova de Gaia, março de 2016, especial para Diálogos do Sul