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Organização AIDS Healthcare Foundation protesta contra a Gilead no último mês de julho (Foto: AIDS Healthcare Foundation)

R$ 237 mil por medicamento anti-HIV é apartheid no acesso à saúde e afeta Sul Global, diz ativista

Thabo Makgoba, da África do Sul, é uma das vozes que lutam por um preço justo ao lenacapavir, profilaxia revolucionária — e inacessível — contra o HIV criada pela farmacêutica Gilead
Ed Holt
IPS
Munique

Tradução:

Ana Corbisier

Ativistas e especialistas exigem que uma intervenção inovadora contra o vírus que provoca a Aids, aclamada como “o mais parecido a uma vacina contra o HIV”, esteja disponível no mais breve prazo e a um custo acessível para todos aqueles que dela necessitam, enquanto o fabricante enfrenta protestos por seu preço exorbitante.

Os ativistas levaram sua exigência a uma manifestação massiva durante a 25ª Conferência Internacional sobre a Aids, realizada na cidade alemã de Munique entre 22 e 26 de julho, com a participação de mais de 10 mil pessoas entre delegados governamentais, especialistas e representantes da sociedade civil.

Na conferência foi apresentada um estudo que demonstra que o lenacapavir, um fármaco atualmente à venda pela biofarmacêutica estadunidense Gilead por mais de 40 mil dólares por ano como tratamento para o HIV, poderia ser vendido por apenas 40 dólares anuais como profilaxia prévia à exposição (PrEP) para ajudar a prevenir a infecção pelo vírus.

Os grupos comunitários que trabalham na prevenção, assim como os especialistas e figuras destacadas em organizações internacionais que lutam contra o HIV, fizeram um apelo à empresa para que garanta que o preço seja fixado de forma a ser acessível nos países de renda baixa e média, onde se encontram 95% das infecções por HIV.

“Não exageramos quando dizemos que o lenacapavir é revolucionário. Poderia mudar a vida de algumas populações. Devemos buscar que seja produzido genericamente e fornecido a países de renda baixa e média para as pessoas que precisam dele”, disse Helen Bygrave, assessora em enfermidades crônicas para a Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Durante a conferência, foram apresentados os dados de um ensaio sobre o lenacapavir, um fármaco injetável que se administra duas vezes por ano. Os resultados foram anunciados pela Gilead em julho e demonstraram que o medicamento proporcionou uma proteção de 100% a mais de 5 mil mulheres na África do Sul e em Uganda.

Muitos especialistas e líderes de comunidades que ajudam a administrar intervenções contra o HIV conversaram com a IPS durante e depois da conferência e descreveram o fármaco como realmente “revolucionário”, que não só tem uma eficácia espetacular, como também oferece discrição e facilidade relativa de administração.

Este último ponto é chave para combater o estigma vinculado às intervenções para a prevenção do HIV em algumas sociedades e o diferencia de outras intervenções, como PrEP por via oral.

No entanto, advertiram quanto a seu difícil acesso e se antecipou que seu custo seria a principal barreira.

Revolucionário, mas inacessível

O Lenacapavir está atualmente aprovado somente como tratamento para o HIV a 42 mil dólares por pessoa por ano (o equivalente a 237 mil reais).

Se poderia esperar que como intervenção de PrEP fosse vendido a um preço muito menor; aliás, um resumo apresentado em Munich demonstrou que poderia custar apenas 40 dólares por ano por cada paciente.

Em uma declaração publicada depois das manifestações, a Gilead comunicou que estava desenvolvendo “uma estratégia para facilitar o acesso amplo e sustentável a nível global”, mas que era cedo demais para dar detalhes sobre o preço.

Leia também | Saúde Pública: Governo cubano inicia distribuição de pílulas para prevenir HIV

Segundo os críticos, a Gilead não foi transparente em sua declaração. A empresa falou de estar comprometida com o estabelecimento de preços acessíveis para países de alta incidência e recursos limitados, em vez de países com renda baixa e média especificamente.

Além disso, existem temores de que o preço a que finalmente se torne disponível como PrEP seja tão alto que estará fora do alcance dos países que mais lutam contra a epidemia por HIV.

“O Cabotegravir, um medicamento de PrEp injetável que se administra a cada dois meses, está sendo adquirido pelo MSF para os países de baixa renda por 210 dólares por pessoa por ano. Não achamos que [o preço do lenacapavir] seja mais alto que isso; esperamos que esteja mais próximo dos 100 dólares por pessoa por ano”, afirmou Bygrave.

Acrescentou que “foram feitas perguntas à Gilead acerca do preço do lenacapavir e a empresa deu respostas bastantes vagas”.

“A sociedade civil deve pressionar continuamente a Gilead sobre esta questão porque, sem esta pressão, não acredito que a Gilead faça o que é correto”, disse Bygrave, que fez parte dos protestos na conferência contra a determinação do preço da Gilead.

Alguns oradores da conferência apresentaram uma série de demandas à firma.

Ações para pressionar a Gilead

Winnie Byanyima, diretora-executiva de UNAIDS, solicitou à Gilead a outorga de uma licença aos fabricantes de genéricos para que produzam o medicamento a um custo mais acessível por meio de mecanismos como o Banco de Patentes de Medicamentos (MPP, em inglês), um programa apoiado pela ONU que negocia acordos sobre genéricos entre os titulares das patentes e as empresas farmacêuticas de genéricos.

Outros, como a oradora principal Helen Clark, presidenta da Comissão Global sobre Políticas de Drogas, afirmou que estas intervenções devem ser consideradas “bens globais comuns e deve-se encontrar maneiras de torná-las acessíveis para todos”.

“A indústria farmacêutica foi beneficiária de um grande investimento público para pesquisa. No que diz respeito ao HIV/AIDS, beneficiou-se da mobilização de cientistas e comunidades comprometidas que defenderam o investimento em pesquisa, desenvolvimento e tratamentos. À primeira vista, a noção de que as empresas podem então obter importantes lucros e não compartilhar a propriedade intelectual criada é incorreta”, afirmou.

Outros foram ainda mais longe e acusaram algumas firmas farmacêuticas de fazer parte da criação de um sistema global de fato de dois níveis para o fornecimento de medicamentos.

“As empresas devem compartilhar seus medicamentos. Não podemos aceitar um apartheid no acesso aos medicamentos em que se considera que a vida dos habitantes do Sul global não tem o mesmo valor que a vida dos habitantes do Norte”, disse Thabo Makgoba, arcebispo da Igreja Anglicana da sul-africana Cidade do Cabo e ativista contra o HIV, em uma conferência de imprensa promovida pela UNAIDS durante a conferência.

Algumas pessoas que trabalham com populações-chave enfatizaram a necessidade de obter todas as aprovações necessárias e fixar o preço do lenacapavir a um nível acessível o quanto antes para salvar vidas.

“É excelente contar com inovações e obter novas ferramentas importantes na luta contra o HIV. Mas a pergunta é: quanto tempo levará para dá-las a quem delas necessitam? Até agora, são meramente um grande anúncio, como um quadro pendurado, que se pode ver, mas na realidade não se pode tocar”, comentou para IPS Anton Basenko, presidente do Diretório da Rede Internacional de Pessoas que Usam Drogas (Inpud, em inglês).

“Devemos proporcionar às comunidades os recursos e as ferramentas de que necessitam para levar a cabo seu trabalho que é vital”, acrescenta.

Prevenção ao HIV e ao estigma

Diferentes apelos foram feitos depois que os ativistas ressaltaram o potencial excepcional do lenacapavir. Não só sua eficácia é surpreendente, como também a relativa facilidade e discrição de sua administração, razão pela qual os especialistas estão entusiasmados.

Em algumas regiões, o estigma em torno da prevenção do HIV (como PrEP por via oral) por tomar comprimidos diários, foi identificado como uma importante barreira para a aceitação de intervenções contra o HIV.

Alguns especialistas de saúde sobre HIV que participaram da conferência disseram à IPS que tinham visto casos de mulheres saindo da clínica com frascos de comprimidos que, nem bem ouviram o som das pastilhas ao agitar o frasco, jogaram-nas no cesto de lixo fora do estabelecimento.

Isso porque o ruído dos comprimidos faria que outros notassem que os estavam tomando e isso deixaria aberta a possibilidade de discriminação ou até de violência de gênero.

“A falta de aceitação e adesão à PrEP por via oral entre as mulheres e jovens se deve a uma série de fatores, como o estigma e a preocupação de serem vistas com um frasco enorme de pastilhas. E o que aconteceria se você está em uma relação e seu parceiro vê o frasco e começa a perguntar se você o está enganando ou alguma outra coisa?”, disse Sinetlantla Gogela, defensora da prevenção contra o HIV na Cidade do Cabo.

Em diálogo com a IPS, a ativista assegurou que “qualquer mulher poderia ir e receber uma injeção de lenacapavir duas vezes ao ano; ninguém precisaria saber e esta mulher não teria que pensar sobre tomar as pastilhas todos os dias; poderia simplesmente seguir com sua vida”.

“Este medicamento poderia mudar a vida delas completamente. Sem dúvida ia querer se estivesse disponível”, garantiu.

Dívida dos países pobres

As preocupações quanto ao acesso ao lenacapavir a um preço acessível para os países de renda baixa e média aparecem em um contexto de níveis recorde de dívida nos países pobres o que, segundo especialistas, poderia ter um impacto negativo grave sobre a epidemia por HIV.

Um informe recente do grupo de campanha Debt Relief International mostrou que mais de 100 países estão lutando para pagar suas dívidas, para o que fazem cortes no investimento em saúde, educação, proteção social e medidas relativas à mudança climática.

Os diferentes oradores que falaram durante a conferência advertiram repetidamente que se deve resolver estas dívidas para garantir a continuação de programas contra o HIV, com ou sem o lenacapavir. Muitos deles solicitaram o alívio imediato da dívida dos países.

“Deve-se reestruturar a dívida africana para que os países possam ter acesso aos medicamentos de que necessitam”, afirmou Byanyima, a máxima responsável pela UNAIDS, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS.

“Cancelem as dívidas; estão asfixiando os países do Sul global e nos negam aquilo de que necessitamos para a saúde. Deixem-nos respirar, por favor”, exclamou Makgoba.

IPS, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ed Holt

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