Pesquisar
Pesquisar
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Lima Barreto, 13 de maio e a questão racial no Brasil

Enquanto não enfrentarmos o racismo enquanto base que estrutura as diversas relações da nossa sociedade, não conseguiremos desconstruir essa mazela
Verbena Córdula
Diálogos do Sul Global
Salvador (BA)

Tradução:

No dia 13 de maio de 1881, nascia Afonso Henriques de Lima Barreto, que posteriormente tornou-se o célebre escritor Lima Barreto, que infelizmente faleceu muito jovem, aos 41 anos de idade, em 1922. É autor de diversas obras, tais como “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Aventuras do Dr. Bogoloff”, “Clara dos Anjos”, entre outros. Barreto é uma referência da Literatura Brasileira para quem curte ler um bom romance, uma boa obra de humor, ou bons contos, mas sem perder de vista aquela “mirada social”. Neste texto referir-me-ei ao romance “Clara dos Anjos”, buscando realizar uma reflexão acerca da visão deste autor sobre a mulher negra do início do século 20.  

Clara dos Anjos é um dos personagens mais marcantes na obra de Lima Barreto, e é também o título de um de seus romances mais importantes. Trata-se de uma jovem negra que vive no subúrbio do Rio de Janeiro no início do século passado. E sua história mostra as experiências e as lutas enfrentadas pela população negra em uma sociedade dominada pela elite branca, cuja mentalidade e comportamentos reproduzem a ordem escravista

Leia também | Violência policial e racismo explícito: ainda estamos “sobrevivendo no inferno”

A personagem é descrita pelo autor como uma mulher jovem de grande beleza e sensibilidade, mas também como alguém que enfrenta a marginalização e o preconceito racial desde cedo. Filha de um carteiro e uma dona de casa, Clara cresce em um ambiente de pobreza e desigualdade, tendo a ingenuidade como uma de suas características mais ressaltadas. Clara é retratada por Barreto como uma pessoa bondosa e generosa que busca o amor e a aceitação em um mundo cruel e indiferente. Essa inocência é frequentemente explorada por aqueles que a rodeiam, especialmente por Cassi Jones, um jovem branco, malandro e sedutor, que não mede esforços para iludir mulheres pobres, seduzindo-as com promessas de amor e felicidade.

9ª Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro, na praia de Copacabana. Rio de Janeiro (RJ), 30/07/2023 (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

O autor, Lima Barreto, apresenta esse rapaz como um jovem malcriado pela mãe, Dona Salustiana, uma pessoa altamente preconceituosa, para quem as jovens negras e pobres não serviam para o casamento, concepção que transmitiu desde cedo para o seu filho, o que retrata com bastante veracidade o contexto daquela época (e, em muitos casos, os dias de hoje). Isso fez de Cassi um aproveitador. Neste sentido, a relação entre Clara e Cassi é marcada pela manipulação e pela traição dele em relação a ela; e a personagem Clara acaba sofrendo as consequências devastadoras de sua ingenuidade (quem quiser saber os detalhes, deve ler a obra). Apesar de tudo, Lima Barreto mostra a personagem como uma jovem que luta para manter sua dignidade e integridade. 

Leia também | Racismo e mídia hegemônica: combater problema exige mais que “imagens fortes” nas redes

A jornada de Clara dos Anjos é uma metáfora muito interessante, que denuncia muitas das problemáticas enfrentadas pela população negra naquele contexto, no Brasil pós-abolição, as quais, infelizmente, não são muito diferentes na atualidade, sobretudo porque as desigualdades e as injustiças ainda perpassam a existência da maioria desse grupo social, em especial a mulher negra. A partir e através da história de Clara, o escritor Lima Barreto nos brinda uma visão profunda, mas também comovente, das experiências negras em nosso país, no contexto em que ele viveu. Barreto explora temas como identidade racial, discriminação e desigualdade social, através da personagem citada, que é um testemunho da resistência e, principalmente, da humanidade das pessoas negras, em sua constante luta contra as opressões.

Ações paliativas

Historicamente, o Brasil se nega a discutir a questão racial a partir de uma perspectiva profunda. Isso significa afirmar que, enquanto não compreendermos e enfrentarmos o racismo enquanto a base que estrutura as relações políticas, econômicas e ideológicas da nossa sociedade, não conseguiremos desconstruir essa mazela. Combater o racismo a partir da perspectiva da violência racista individual, institucional, cultural, é importante, mas é preciso compreender, sobretudo, que a estrutura histórica da nossa organização econômica está baseada no racismo. Por isso, o combate a essa mazela precisa partir dessa compreensão, ou estaremos apenas “enxugando gelo”. 

E quando digo isso, me refiro às iniciativas incipientes dos governos federal, estaduais e municipais, que em vez de buscarem o enfrentamento da questão racial reformulando suas políticas econômicas, principalmente, realizam ações meramente simbólicas, como a criação do Ministério ou de Secretarias da Igualdade Racial, que não têm sequer recursos para funcionar minimante. O governo do Presidente Lula, por exemplo, faz isso. A existência do Ministério da Igualdade Racial está longe de representar uma política significativa de combate ao racismo. Quando vemos o orçamento destinado a essa pasta, isso fica muito evidente. Ademais, esse ministério não tem prerrogativas importantes, a exemplo do combate a uma das maiores expressões do racismo à brasileira, que é o encarceramento em massa da população negra. Qual a política de Estado que visa resolver esse problema? De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2022 havia 442.033 negros encarcerados no país, ou seja, 68,2% do total das pessoas presas, o maior percentual já registrado.

Leia também | Revolucionário, Lima Barreto foi o jornalista mais crítico à República Velha

Combater o racismo exige muito mais do que estamos fazendo.

E voltando a Lima Barreto, esse romance, Clara dos Anjos, é, sem dúvida, um contraste bastante nítido em relação àqueles discursos que festejavam (e ainda o fazem) o 13 de maio de 1888 como um marco libertador da população negra no Brasil. Do ponto de vista jurídico, sim, não podemos negar que foi um marco, mas as nossas existências transcendem a ordem jurídica. A Lei Áurea, como a maioria das Leis referentes à escravidão no Brasil, e as iniciativas recentes de combate ao racismo que não transcendem a superficialidade, são meras ações paliativas. Tudo o que o racismo não precisa para deixar de existir.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

LEIA tAMBÉM

praca-de-maio-indice-de-avos-que-permitiu-encontrar-137-netos-completa-40-anos-na-argentina
Praça de Maio: "Índice de avós", que permitiu encontrar 137 netos, completa 40 anos na Argentina
Morre Gustavo Gutiérrez, teólogo peruano fundador da Teologia da Libertação
Morre Gustavo Gutiérrez, teólogo peruano fundador da Teologia da Libertação
Marcelo Pérez, padre indígena assassinado no México, sofreu ameaças e não recebeu proteção
Marcelo Pérez, padre indígena assassinado no México, sofreu ameaças e não recebeu proteção
A evolução do Direito como norma e relação social
A evolução do Direito como norma e relação social