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Foto: US Campaign for Palestinian Rights / X

Atos contra Netanyahu no Congresso dos EUA expõem declínio da narrativa sionista

Manifestantes carregaram bonecos do presidente Joe Biden com sangue nas mãos e um de Netanyahu identificado como "criminoso de guerra"
Jim Cason, David Brooks
La Jornada
Nova York

Tradução:

Beatriz Cannabrava

Milhares de manifestantes coreando “Palestina livre, livre” e portando cartazes exigindo um cessar-fogo e o fim do apoio dos EUA à guerra de Israel em Gaza cercaram o Capitólio nesta quarta-feira (24) enquanto o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, oferecia um discurso no plenário de ambas as câmaras de um Congresso dividido que demonstrou a crescente oposição ao que muitos chamam de genocídio e maior solidariedade com o povo palestino.

“Fim à assistência militar dos EUA a Israel”, diziam várias faixas de dois metros de altura carregadas por manifestantes ao marcharem ao redor do famoso edifício central da legislatura. Dentro, manifestantes com camisetas amarelas demandando um cessar-fogo imediato se levantaram nas galerias no início do discurso de Netanyahu, enquanto a única legisladora palestina-americana, Rashida Tlaib, estava sentada na câmara levantando um cartaz que dizia “criminoso de guerra” de um lado e “culpado de genocídio” do outro.

Este foi o quarto discurso de Netanyahu no Congresso, mas o primeiro em que a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, que tipicamente preside os discursos bicamerais em sua função como presidente do Senado, não compareceu ao evento. Além disso, havia dezenas de assentos desocupados da bancada democrata, que fizeram um boicote ao evento.

Fim do monopólio da narrativa sionista

O ato foi notável sobretudo como uma demonstração de quão profundamente a guerra de Israel em Gaza está rompendo o monopólio da narrativa sionista que tem prevalecido nesta capital por décadas, reduzindo o apoio ao governo em Tel Aviv. Um dia antes, mais de 500 jovens judeus americanos ocuparam o andar térreo de um dos edifícios do Congresso para protestar contra a presença de Netanyahu e o apoio de Washington à sua guerra, declarando “não em nosso nome”.

Na quarta-feira, centenas mais foram presos por bloquearem a rua e tentarem invadir o evento convocado por líderes legislativos de ambos os partidos para homenagear um homem que a Corte Internacional de Justiça acusou de ser um criminoso de guerra.

Waleed Shahid, estrategista democrata e porta-voz do grupo progressista Justice Democrats, relatou que 127 dos 259 legisladores democratas em ambas as câmaras do Congresso boicotaram o discurso do governante israelense, um aumento dramático dos 50 no total que se recusaram a participar em 2015.

Netanyahu, “criminoso de guerra”

O senador Bernie Sanders e a ex-presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, entre outros, não compareceram à sessão. “Acho que, em Netanyahu, temos alguém que é um criminoso de guerra, um demagogo”, comentou Sanders em uma conversa com repórteres após o discurso. “Acho que é um mentiroso e que, para salvar sua pele política em Israel – onde é nada popular -, está preparado para criar uma fome de centenas de milhares de crianças em Gaza.”

Os manifestantes carregaram enormes bonecos de papel machê, alguns do presidente Joe Biden com sangue nas mãos e um de Netanyahu com uma etiqueta identificando-o como “criminoso de guerra”. Entre os manifestantes estavam familiares de judeus que pereceram no Holocausto junto a palestino-americanos cujas famílias foram assassinadas pelos israelenses em Gaza.

Relações com Trump

Em seu discurso no Congresso, Netanyahu identificou entre o público famílias de reféns do Hamas e soldados israelenses com antecedentes judaicos e muçulmanos ao tentar projetar Israel como um estado democrático diverso. Apesar dos vereditos da Corte Internacional de Justiça contra ele e seu governo, amplas evidências de vídeo e testemunhos de sobreviventes, o primeiro-ministro se atreveu a declarar que “praticamente nenhum civil” morreu em Gaza. Elogiou repetidamente o presidente Biden como um aliado vital de Israel, mas nunca mencionou pelo nome a vice-presidente Harris, que é virtualmente a candidata presidencial democrata.

Netanyahu nunca mencionou a palavra “palestino” enquanto caracterizava a luta de seu país como um “confronto entre a barbárie e a civilização”, antes de argumentar que, se os Estados Unidos acelerarem a entrega de armas a Israel, a guerra terminará mais rapidamente. Netanyahu deixou claro sua estreita relação com Donald Trump, a quem também elogiou repetidamente diante dos gritos felizes dos legisladores republicanos. O líder israelense viajará para a Flórida na sexta-feira (26) para se encontrar com o ex-presidente.

Netanyahu “sentiu” a pressão

Enfrentando um nível de protesto sem precedentes contra seu governo, em seu discurso Netanyahu atacou os manifestantes americanos, sugerindo que o Irã estava financiando os protestos e chamando os ativistas de “idiotas úteis” de Teerã. Mas o simples fato de que se sentiu obrigado a denunciá-los e justificar a posição de seu governo, rejeitar as conclusões da Corte Penal Internacional de que existe evidência de genocídio, só mostra como mudaram as circunstâncias políticas em torno da relação Washington-Tel Aviv.

O Partido Republicano dá total apoio à guerra de Israel e à ocupação de Gaza, assim como o presidente Biden até o momento. Mas o custo político e eleitoral para os democratas tem aumentado, especialmente entre os jovens que serão essenciais na eleição. Por isso, está sendo observado se com a candidatura de Harris haverá alguma mudança na política impulsionada por seu chefe. Alguns críticos estão circulando um vídeo de um discurso de Harris em março onde declarou que “dado o imenso sofrimento em Gaza, deve haver um cessar-fogo imediato”, diferente do que estava dizendo Biden. Mas os assessores da vice-presidente têm buscado assegurar que Harris apoia firmemente o Estado de Israel.

O presidente Biden e a vice-presidente Harris têm reuniões separadas agendadas com Netanyahu na quinta-feira – todos estarão atentos a qualquer mudança de roteiro.

Harris consolida o apoio como próxima candidata democrata

Menos de 24 horas após se lançar à presidência dos EUA, Kamala Harris consolidou o apoio da cúpula, a maioria dos legisladores e governadores e está por conseguir o número requerido de delegados à convenção nacional de seu partido convertendo-se virtualmente na candidata presidencial democrata em meio de um processo eleitoral sem precedente. 

No que é, e por muito, a contenda eleitoral menos usual em décadas, com um candidato como criminoso convicto o qual foi alvo de intento de assassinato e seu opositor retirando-se da batalha a pouco mais de 100 dias antes da eleição, e agora com a primeira mulher filha de imigrantes: um pai jamaicano e uma mãe da Índia, em postular-se, ainda não se pode prognosticar muito. 

Leia também | Biden renuncia à candidatura e endossa Kamala Harris para 2024

Mas com a torrente de apoios e endossos dos seus correligionários e também 81 milhões de dólares em doações nas últimas 24 horas, tudo indica que Kamala chegará à convenção como a favorita e sairá coroada oficialmente como a candidata democrata à presidência. 

O primeiro discurso de Kamala Harris

Em seu primeiro discurso como pré-candidata presidencial (não será até a convenção nacional onde será – se não houver mais surpresas- a candidata oficial) nesta segunda-feira, apresentou-se como a líder que busca levar seu país a um futuro mais promissor em contraste com a visão escura e reacionária que oferece Donald Trump. “Trump quer levar o país para trás, a um tempo em que muitos… não tinham liberdades e direitos plenos. Nós acreditamos em um futuro com mais brilho que oferece um lugar para todos os estadunidenses”, declarou diante do pessoal da campanha de Biden em Delaware, os quais agora trabalharam para ela. Já anunciou que as duas chefes da campanha de Biden, Jennifer O’Malley Dillon e Julie Chávez Rodríguez (a neta de César Chávez) permanecerão em seus postos. 

Sublinhou que nos próximos 106 dias antes da eleição “a pergunta que cada um de nós enfrenta é em que tipo de país queremos viver: um país de liberdade, compaixão e império da lei, ou um país de caos, temor e ódio…Temos o poder para responder a essa pergunta”.

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Biden se comunicou por telefone ao evento, ainda se recuperando de Covid, para declarar que “estamos nesta luta juntos, não vou a nenhum lugar”. Agregou em uma mensagem a quem endossou para substituí-lo como candidato “estou te observando, parceira” e ela respondeu “te adoro, Joe”. O ainda presidente do país prometeu oferecer um discurso ao vivo ante a nação nos próximos dias. 

Nancy Pelosi divulga apoio a Kamala Harris

Na segunda-feira (22), a ex-presidente da câmara baixa e matriarca da cúpula do partido, Nancy Pelosi, se somou a crescente lista de legisladores democratas que endossaram Harris. De fato, Harris já goza do apoio explícito da maioria dos legisladores democratas de ambas as câmaras do Congresso e todos os 23 governadores desse partido. 

Por sua vez, a campanha informou que nas últimas 24 horas arrecadou 81 milhões em contribuições, uma cifra recorde em um só dia, ressaltando que grande parte foi de milhares de indivíduos, incluindo muitos que aportaram pela primeira vez.  

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Além disso, Harris está a caminho de obter o apoio comprometido da maioria dos quase 4 mil delegados que se requer para ser coroada como candidata, algo que se formaliza tradicionalmente na Convenção Democrata quadrienal que este ano está programada de 19 a 22 de agosto em Chicago. No entanto, os líderes do Comitê Nacional do partido anunciaram ainda na segunda-feira que esse processo de seleção de candidato/a se realizará de maneira cibernética em 7 de agosto – algo que parece ser uma tentativa de fechar a porta aos que propõem uma convenção nacional “aberta” onde se poderia debater a seleção do candidato. 

Reset eleitoral

Por ora, segundo analistas e outros observadores, de certa maneira se inicia uma nova contenda para a presidência estadunidense a menos de quatro meses da eleição programada para 5 de novembro.

A campanha de Harris agora enfrenta o desafio imediato de mobilizar bases desencantadas com Biden, com uma maioria dos democratas expressando durante meses que desejavam outro candidato, já que não confiavam na capacidade física e mental do presidente. Confia-se que Harris logrará entusiasmar o voto das mulheres, já que foi proeminente na defesa do direito das mulheres de controlar seus corpos, como também a setores minoritários tanto afro-estadunidenses como latinos. Vários agrupamentos destes setores já endossaram Harris nos últimos dias, incluindo, por exemplo, a central operária AFL-CIO e organizações afro-estadunidenses. 

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Ao mesmo tempo, Harris também tem que superar quanto antes o descontamento sobretudo entre jovens gerado pelo apoio incondicional de Biden à guerra de Israel contra os palestinos em Gaza. Supõe-se que ela continuará apoiando essa posição. Todos – sobretudo os jovens – estarão observando se a mensagem será modificada ou reiterada por seu chefe, e como. 

Trump preferia Biden

Do lado dos republicanos, sabia-se que Trump e sua equipe preferiam que Biden continuasse como o candidato, e haviam construído sua estratégia ao redor disso. Agora, têm à frente não só uma mulher, mas no lugar de uma figura de idade avançada, uma política 19 anos mais jovem que o republicano. Trump e seu candidato à vice-presidência, J.D. Vance, já começaram a atacar Harris, culpando-a das políticas “fracassadas” de Biden sobre a economia e a fronteira, e também acusando que ela “encobriu” o deterioro físico e mental de seu chefe. 

Esta nova contenda, assinala o New York Times, agora é o primeiro concurso pela presidência desde 1976 sem um Clinton, Bush ou Biden nas fórmulas de candidaturas. Ao mesmo tempo, talvez a troca de candidato não modifique a dinâmica desta eleição – ou seja, apesar das novidades, não haverá algo novo. Alguns pesquisadores assinalam que Harris não ganha de Trump segundo as pesquisas deste ano, e que de fato tem uma alta taxa de desaprovação. 

Leia também | Republicanos mudam alvo da campanha eleitoral e passam a atacar Kamala Harris

Além disso, por ora tudo indica que será um ex-presidente republicano anti-imigrantes – criminoso convicto, acusado por mais de uma dúzia de mulheres de abuso sexual, um instigador de um intento de golpe de Estado e que até hoje recusou se comprometer a respeitar os resultados – contra a primeira mulher, filha de imigrantes – um pai jamaicano e uma mãe da Índia – que foi procuradora e senadora.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Jim Cason Correspondente do La Jornada e membro do Friends Committee On National Legislation nos EUA, trabalhou por mais de 30 anos pela mudança social como ativista e jornalista. Foi ainda editor sênior da AllAfrica.com, o maior distribuidor de notícias e informações sobre a África no mundo.
David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.

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