Conteúdo da página
TogglePoucas horas após a realização das eleições na Venezuela, os EUA reconheceram a vitória da extrema-direita e de seu candidato Edmundo González. Antony Blinken declarou-o vencedor das eleições, afirmando: “Dadas as provas esmagadoras, está claro para os Estados Unidos e, mais importante, para o povo venezuelano, que Edmundo González Urrutia ganhou a maioria dos votos nas eleições presidenciais venezuelanas de 28 de julho”.
Mas, após alguns dias, os EUA recuaram no seu reconhecimento inicial. Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, ao ser questionado se o governo dos Estados Unidos reconhecia o opositor Edmundo González como presidente interino (como ocorreu em 2019 com Juan Guaidó), respondeu: “Por enquanto, não vamos dar esse passo. Hoje estamos em estreito contato com nossos parceiros da região, especialmente Brasil, México e Colômbia, para encontrar uma solução”.
Acusação de fraude eleitoral é jogo Venezuela x EUA – e o prêmio é o petróleo venezuelano
Neste ponto, os EUA entendem que o golpe planejado fracassou, não haverá mudança de governo, e é possível que adotem uma postura mais pragmática e pretendam renegociar e relaxar mais as sanções econômicas, em troca de algumas concessões políticas. Embora também seja possível que a declaração de Miller seja um movimento tático e que Washington continue jogando duro. Mas também pode se tratar de uma mudança de rumo estratégico, à luz do equilíbrio de poder no terreno e na região.
Diante dessa mudança inesperada dos EUA, circula a provável conjectura de que, diante do primeiro aviso de Blinken, confirme-se a frase de Nicolás Maduro: “Se os EUA cometerem o erro de não reconhecer os resultados oficiais e reconhecerem Edmundo González como vencedor, poderíamos conceder os direitos de exploração de petróleo e gás aos países dos Brics“. “Se essa gente lá do norte e seus associados no mundo cometerem o erro de suas vidas, então, esses contratos de petróleo e esses contratos de gás que já estavam assinados passarão para nossos aliados dos Brics”. Por sua vez, Maduro lembrou que os “maiores investimentos em petróleo e gás na Venezuela vêm dos Brics, ao mesmo tempo em que destacou que este bloco tem um portfólio de oportunidades que é atraente para a nação caribenha”. Daí a mudança dos EUA.
Maduro concluiu, declarando: “O mundo já não depende da elite governante em Washington. Há outro mundo e esse mundo está aberto com todas as suas possibilidades políticas, diplomáticas, culturais, econômicas, financeiras, comerciais, espirituais; e a Venezuela está aberta ao mundo”.
Por que os países emergentes veem uma possibilidade de mudança nos Brics?
Lembremos que o termo Brics foi cunhado em 2001 pelo economista britânico Jim O’Neill, embora em suas origens a letra final S, que corresponde à África do Sul, não estivesse incluída, pois foi incorporada dez anos depois. O Brics se refere à primeira letra, inicialmente, de cinco países. Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O objetivo desses países é unir-se para buscar um sistema mundial mais equilibrado e justo nas relações econômicas e numa reforma do sistema financeiro atual. Mas por que esses países se unem? Eles têm mercados emergentes (são chamadas economias emergentes) com grande potencial de crescimento. Porque são 25% do Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, 43% da população de todo o planeta, 20% do investimento em todo o mundo.
Na XV Cúpula dos Brics, realizada em Joanesburgo, África do Sul, de 22 a 24 de agosto de 2023, decidiu-se incluir no bloco o Egito, a Argentina, a Etiópia, o Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos a partir de 2024, sendo agora chamados por alguns de Brics11. E, depois disso, pelo menos 23 países solicitaram formalmente ser membros dos Brics, entre eles: Arábia Saudita, Argélia, Argentina, Bahrein, Bangladesh, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Honduras, Indonésia, Irã, Cazaquistão, Kuwait, Nigéria, Palestina, Senegal, Tailândia, Venezuela, Vietnã.
Brics, Celac e desdolarização: as ameaças à hegemonia dos EUA na América Latina
O maior sucesso, até agora, dos Brics foi a criação de um novo Banco de Desenvolvimento para o financiamento de Projetos de Infraestrutura e mudanças climáticas em nações em desenvolvimento, com 50 milhões de dólares. O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos Brics conta com 100 bilhões de dólares. Atualmente, 32,8 bilhões de dólares seriam destinados a financiar 96 projetos aprovados. O NBD tem a característica de financiar projetos em moedas dos membros. Entre 2016 e 2023, foram aprovados projetos financiados em renminbi (rmb, moeda chinesa), dólares e zar, a moeda da África do Sul. Em rmb foram financiados 9 projetos por um valor de 4,2 bilhões, em zar há 4 projetos por 11,3 bilhões. Em dólares há 55 projetos por 4,2 bilhões de dólares em Brasil (18), China (3), Índia (16), Rússia (11) e África do Sul (7).
Enfim, no total, é possível que a plataforma Brics, em 2024, “conste de 11 países”. Após a ampliação, os Brics representarão 37% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial e 46% da população mundial. Há mais: “a expansão superará o PIB do G7 em termos de paridade de poder de compra em mais de 11 trilhões de dólares”, segundo o Grupo de Pesquisa e Análise Venezuelano Missão Verdade, em seu artigo “Um passo fundamental e decisivo: o essencial da 15ª Cúpula dos Brics”, e Pepe Escobar em seu artigo “Brics11, uma virada estratégica“.
Da mesma forma, em termos geopolíticos, o escritor Aníbal García Fernández, em seu artigo “Geopolítica dos Brics“, aponta: “Os Brics mais Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita estariam controlando 41% das reservas comprovadas de petróleo, 53,1% das reservas comprovadas de gás natural e 40,4% das reservas de carvão. No que diz respeito aos minerais, a entrada da Argentina nos Brics implica que o grupo some 32,1% das reservas de lítio. Destaca-se que a China controla 77% da produção mundial de baterias de lítio, possui em seu território 80% das reservas mundiais de terras raras e produz 56% do aço mundial. Os Brics também são uma potência exportadora de produtos agrícolas. A China é o primeiro exportador, o Brasil o terceiro, a Índia o quarto e a Rússia o quinto”.
Quais são as ameaças que os EUA veem nos Brics?
- O doutor Rubén Figueroa, acadêmico de Geopolítica da Universidade Católica do Chile, comenta: “Os Estados Unidos entendem que a expansão dos Brics na América Latina poderia aprofundar os interesses da China e da Rússia na região”, como os países mais desenvolvidos dos Brics.
- Por sua vez, Ernesto Waissman explica: “Os Estados Unidos estão observando os movimentos na América Latina, e os Brics não serão exceção, não gostam da ideia de sua expansão na América Latina”.
- Os países Brics compreendem 40% da população mundial, que chega a mais de 3,1 bilhões de pessoas. Nos Brics coexistem países com diferentes graus de desenvolvimento e diferentes estratégias.
- Os Brics são, portanto, o campo contrário ao Ocidente, seja expresso politicamente, por meio da aliança Estados Unidos (países anglo-saxões), União Europeia, ou militarmente, com a OTAN, ou economicamente, com as organizações econômicas internacionais de origem estadunidense, como o FMI, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio. A direção estratégica do bloco é uma estreita cooperação para contrbalançar, de forma eficaz e bem-sucedida, a arquitetura financeira internacional dominada pelos Estados Unidos.
- A agenda dos Brics, que conseguiram consolidar sua posição no cenário político e econômico mundial, leva à redução do domínio dos EUA e do mundo ocidental em geral e ao estabelecimento de uma nova realidade multipolar.
- Após a crise financeira de 2008, a economia mundial apresentou desafios complexos de recuperação, e os países emergentes (com a China à frente) tinham forças que podiam impulsionar, como efetivamente ocorreu, a recuperação econômica mundial. No entanto, dado seu peso na economia global e a incidência que tiveram nos primeiros anos após a crise, os Brics solicitavam mudanças no sistema financeiro internacional, fundamentalmente no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial (BM). Em termos gerais, as reformas estão direcionadas a modificar a estrutura de cotas e de governança do FMI e do BM, e eram exigências reiteradas dos membros do bloco.
- Entre as reformas alcançadas com o FMI destacam-se:
- Aumento das cotas dos 188 países em Direitos Especiais de Saque (DES) (477.000 milhões, equivalentes a cerca de USD 659.000 milhões).
- Uma redistribuição de mais de 6% das cotas relativas aos países de mercados emergentes.
- Quatro países de mercados emergentes (Brasil, China, Índia e Rússia) se incorporaram entre os 10 principais países membros do FMI.
- Entrada do yuan chinês (CNY) no grupo de moedas que o Fundo Monetário Internacional toma como referência para calcular o valor de seus DES, equivalente a uma moeda virtual com a qual a instituição internacional gerencia seus pagamentos.
- Merece menção especial o Mecanismo de Cooperação Interbancária dos Brics, por meio do qual, durante os últimos 13 anos, os bancos membros assinaram acordos de ação multilateral em áreas como crédito em moeda local, desenvolvimento sustentável e financiamento de infraestrutura, e finanças responsáveis. Essa realidade se traduziu em uma sólida força motriz para a cooperação financeira dos Brics e a facilitação do comércio e do investimento.
- Em suma, os Brics retornam ao conceito de soberania como valor e à não intervenção como princípio amparado no respeito ao direito internacional e à Carta das Nações Unidas, segundo os quais a aplicação de medidas coercitivas unilaterais, amplamente utilizadas pelo Ocidente contra países que incomodam seus interesses, não tem lugar.
Quais vantagens teria a Venezuela dentro dos Brics?
- a) Como já intuíamos acima, busca-se reformar a governança das instituições financeiras de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial), pois são instâncias controladas por um grupo restrito de países desenvolvidos (Estados Unidos e Europa Ocidental), que detêm o maior poder de participação, voto e decisão.
- b) Por meio dos Brics, propõe-se uma firme oposição ao unilateralismo e ao protecionismo comercial; e aposta-se em gerar espaços de cooperação Sul-Sul, tendentes a fortalecer o multilateralismo.
- c) Por sua vez, a soberania e a não intervenção como princípios centrais nas relações internacionais, em virtude dos quais se evita a intromissão em assuntos internos. O Estado volta a estar no centro da discussão internacional, buscando o estabelecimento de uma ordem mundial mais justa, democrática e multipolar, baseada no respeito ao direito internacional.
- d) No caso específico da Venezuela, esta, como possuidora da maior reserva petrolífera mundial e da quarta maior reserva de gás, concentra um potencial nada desprezível que deve ser considerado na agenda energética global, incluindo a dos Brics.
- e) Assim como a presença de minerais estratégicos no Arco Mineiro, constitui um potencial a ser desenvolvido com vistas a contribuir para o desenvolvimento da indústria de tecnologia (onde o coltan desempenha um papel central) e na indústria da transição energética (cobre, prata, ouro, níquel, ródio, titânio, para citar apenas alguns), setores onde os Brics estão apostando na pesquisa e no desenvolvimento.
- f) Se a Venezuela conseguisse participar do Mecanismo de Cooperação Interbancária, subscrito pelo Banco de Desenvolvimento dos países Brics, reduziria sua exposição ao dólar, diminuindo o impacto das sanções associadas às restrições de uso da arquitetura de pagamento controlada pelos Estados Unidos, como a plataforma interbancária SWIFT, pois, com esse mecanismo, os bancos membros estendem créditos entre si em moedas locais, com o objetivo de fortalecer e desenvolver as relações comerciais e econômicas entre os bancos membros, incentivando a diminuição do risco cambial derivado do comércio transfronteiriço e reduzindo a dependência do dólar estadunidense. Atualmente, isso já está ocorrendo.
Então, para onde vão os Brics?
- Em direção à substituição do dólar estadunidense: uma das implicações de uma maior proximidade econômica entre Rússia e China foi a substituição do dólar estadunidense em suas transações intracomerciais. China e Rússia estão liquidando seu comércio utilizando suas próprias moedas, o rublo e o yuan.
- Em direção a uma moeda comum: isso não só impulsionará o comércio dentro dos Brics, mas também eliminará os altos custos de conversão de dólares nas transações internacionais. O primeiro passo já foi dado, com os países membros liderados por Índia e China realizando acordos comerciais mútuos em moedas nacionais, mesmo sem a introdução e circulação de uma moeda digital, apontando para um começo de desdolarização. Rússia e China estão na vanguarda deste movimento por seus interesses políticos. A Rússia está tentando evitar as sanções estadunidenses, enquanto a China está promovendo o renminbi como moeda alternativa.
- Em direção à expansão da estrutura financeira dos Brics: mas ainda resta a substituição do sistema de pagamento, Visa e Mastercard, e o fortalecimento do sistema de pagamento russo MIR. Até meados de 2022, mais de 145 milhões de cartões MIR foram emitidos em mais de 160 bancos. Quanto ao exterior, até o momento, os cartões MIR podem ser utilizados no Vietnã, Coreia do Sul, Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Ossétia do Sul e Abecásia. A China tem seu sistema de pagamentos UnionPay, Alipay. Em 2022, o UnionPay já havia tomado a maior fatia de mercado de pagamentos com cartão de débito (40,03%), superando a Visa, com mais de 20 milhões de lojas online fora da China.
- Em direção à substituição do sistema SWIFT & CHIPS: por exemplo, em 2022, a participação do dólar estadunidense foi de cerca de 42% das instruções de pagamento SWIFT, e o euro com 35% e o renminbi chinês com apenas 2,1%. Apesar dessa participação dominante do SWIFT, a Rússia criou uma alternativa, o “Sistema para a Transferência de Mensagens Financeiras (SPFS)”, que é utilizado por 52 organizações financeiras internacionais, 23 bancos estrangeiros, de 12 países, incluindo China, Índia e Irã. A China também criou sua própria câmara de compensação como resposta, sob a forma do “Sistema de Pagamento Interbancário Transfronteiriço (CIPS)”. A Moeda Digital do Banco Central da China (CDBC) foi introduzida em 2021, e em 2022, as transações atingiram cerca de US$ 13,7 bilhões.
Leia também | Cannabrava | O que é melhor para o desenvolvimento do Brasil: Europa ou Brics?
Finalmente, restam algumas perguntas a serem resolvidas, assumidas, esclarecidas e enfrentadas. É o momento dos Brics? Os Brics podem triunfar sobre o FMI e o Banco Mundial? Os Brics devem rivalizar com os EUA? Como evitar que os Brics se tornem satélites da China ou da Rússia? China e Rússia são países emergentes? Entre muitas outras.