O governo de Joe Biden, legisladores estadunidenses, meios nacionais e agrupamentos de direitos humanos entre outros estão apelando por um julgamento contra Vladimir Putin por “crimes de guerra”, mas enfrentam um grave problema: Estados Unidos não reconheceram e até ameaçaram com represálias a instância internacional encarregada desse julgamentos, a Corte Penal Internacional, em Haia, Holanda.
Na segunda-feira passada (4), Biden chamou novamente seu homólogo russo de “criminoso de guerra”, “um tipo brutal” e declarou que deveria enfrentar “um julgamento por crimes de guerra”. Agregou que é necessário arrecadar “todos os detalhes para que isto possa ser, para ter um julgamento de tempo de guerra”.
Mas o mandatário estadunidense seguramente sabe que Estados Unidos não podem por si só levar um caso ante a Corte Penal Internacional (CPI) já que é um dos poucos países que não firmaram o acordo que deu vida a essa instância..
Outros políticos que repetem quase todos os dias seu apelos por um julgamento do russo por crimes de guerra, algo que se tornou um estribilho na retórica estadunidense, ou não estão sabendo que seu país não ratificou o acordo internacional para ser parte da CPI ou pretendem outra coisa ao proclamar seu grande respeito pelo direito internacional apesar de sua história de só aplicá-lo de maneira unilateral contra seus inimigos e rechaçar sua jurisdição sobre estadunidenses e seus aliados.
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Alguns usam um grande talento para dar volta a esse incómodo fato. O New York Times, em um amplo editorial na quarta-feira, insistiu em um grande esforço de documentação sobre possíveis crimes de guerra na Ucrânia para preparar um possível julgamento. O periódico opinou que “aqueles responsáveis devem ser nomeados, suas ações detalhadas, e se for possível, os culpados devem ser encarcerados”.
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Assinalou que segundo o tribunal de Nuremberg, iniciar uma “guerra de agressão… é o crime internacional supremo”, e que tudo indica que essa deve ser a acusação contra Putin. Não menciona que nenhum mandatário estadunidense teve que prestar contas à CPI pelo mesmo tipo de crime, com o caso mais recente do Iraque.
Recomendou que o governo de Biden deveria buscar a forma de cooperar com essa instância, sem sublinhar que Estados Unidos não são parte desse tribunal.
Outros simplesmente evitam mencionar o fato de que Estados Unidos não só recusam se sujeitarem à jurisdição do mesmo tribunal que deseja que julgue seus adversários, mas atacaram diretamente seus promotores e juízes.
A CPI é o único tribunal internacional permanente com um mandato para investigar e procurar justiça em casos de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão. Por enquanto, são 123 países os que ratificaram o chamado Estatuto de Roma, e com isso são definidos como Estados parte da assembleia da CPI.
O apoio à CPI por parte de Washington tem sido esquizofrénico. Embora o governo estadunidense tenha sido um dos autores principais do Estatuto de Roma, no final Washington foi um de só sete países que votou contra quando 120 nações adotaram esse instrumento internacional em 1998 para criar a CPI considerada uma pedra angular do direito internacional moderno.
The White House – Flickr
EUA têm participado como “observador” nos processos do Tribunal de Haia, desde que acusados não sejam estadunidenses ou colaboradores
Pouco mais tarde, em 1999, o presidente Bill Clinton promulgou um lei que contém proibições sobre outorgar apoio financeiro estadunidense à CPI como também contra a extradição de qualquer cidadão estadunidense a um país estrangeiro que pudesse entregar tal indivíduo à CPI. Em 31 de dezembro de 2000, Clinton autoriza a firma dos Estados Unidos no Estatuto de Roma – no último dia possível – mas nunca a submete ao Senado para sua ratificação.
Em 2002, a CPI está pronta para iniciar suas funções a partir de 1º de julho. Mas no meio desse mesmo ano, o então subsecretario de Estado John Bolton envia uma carta ao secretário geral Kofi Annan declarando formalmente que Estados Unidos não têm a intenção de ratificar o Estatuto de Roma.
Três meses depois, o presidente George W. Bush promulga uma lei que contém vários medidas que não só proíbem a cooperação com a CPI, mas até ameaças. Por exemplo autoriza o uso da força militar para libertar qualquer cidadão estadunidense sob detenção por esse tribunal e proíbe toda cooperação financeira para apoiar a CPI.
No entanto, uma emenda a essa lei permite que Estados Unidos ofereçam assistência a esforços para levar ante a CPI estrangeiros acusados de genocídio, crimes de guerra e de lesa humanidade. Desde então, Estados Unidos têm participado como “observador” nos processos ante a CPI e têm cooperado no traslado de vários acusados para enfrentar justiça ente esse tribunal (sempre e quando não sejam estadunidenses ou colaboradores).
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Mas em 2018, John Bolton, agora como Assessor de Segurança Nacional da Casa Branca sob Donald Trump, anuncia em um discurso que seu governo “utilizará todos os meios necessários” para proteger cidadãos estadunidenses e aliados de seu governo contra toda investigação e processo legal da CPI. Ameaçou aplicar sanções financeiras, proibições de viagem e até promover acusações criminais contra qualquer juiz ou promotor da CPI, ou de qualquer entidade ou outro governo que se atrevesse assistir à CPI em investigar estadunidenses, em torno a guerra estadunidense no Afeganistão.
O secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, cumpriu estas ameaças e revogou o visto de uma promotora da CPI em março de 2019, e ameaçou fazê-lo com todos os oficiais desse tribunal que se atrevessem a investigar estadunidenses. Em junho de 2020, Pompeo anunciou que seu governo havia autorizado por ordem executiva sanções econômicas contra aqueles funcionários da CPI “diretamente envolvidos em esforços da CPI para investigar pessoal estadunidense ou pessoal aliado”. Em setembro desse ano, Estados Unidos impuseram sanções econômicas e de viagem contra o promotor da CPI, algo denunciado pelo CPI como “ações sem precedentes contra uma instituição judicial internacional”.
Foi só em abril que essas ordens executivas e medidas atacando oficiais da CPI foram anuladas pelo presidente Biden.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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