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Foto: Exército dos EUA

Rússia: Uso de minas antipessoais e mísseis Atacms é manobra dos EUA para prolongar conflito

Segundo porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, administração de Biden, que está de saída nos EUA, faz “tudo o que pode no tempo que resta” ao governo
Juan Pablo Duch
La Jornada
Moscou

Tradução:

Beatriz Cannabrava

Um dia depois de o Ministério da Defesa russo confirmar o ataque à região russa de Briansk com mísseis estadunidenses Atacms, a Ucrânia lançou, nesta quarta-feira (20), pela primeira vez, foguetes de cruzeiro britânicos Storm Shadow contra alvos militares na região russa de Kursk, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos suspenderam a proibição de fornecer minas antipessoais ao exército ucraniano.

A primeira notícia, amplamente difundida pelos meios de comunicação ocidentais, baseia-se em fontes anônimas, justificando que os governos envolvidos se recusam a fazer declarações oficiais para confirmá-la.

Não está claro quantos Storm Shadow foram lançados pelo exército ucraniano; alguns veículos mencionam 14, enquanto outros se limitam a dizer “uma enxurrada”. Além disso, foi relatado o uso de mísseis Scalp — o equivalente francês dos Storm —, mas não foi informado quais alvos militares foram atacados. No entanto, todos concordam que o ataque ocorreu na região russa de Kursk.

Tudo isso foi apresentado como uma antecipação de um suposto “ataque aéreo significativo” da Rússia contra Kiev, a capital ucraniana, esperado para esta quarta-feira. Como medida preventiva, as embaixadas dos Estados Unidos, Itália, Espanha e Grécia foram fechadas, enquanto as de Reino Unido, França e Alemanha, entre outras, permaneceram abertas, recomendando aos seus cidadãos que não saíssem às ruas.

A inteligência militar ucraniana classificou como “notícia falsa” a informação de que a Rússia havia armazenado centenas de mísseis prontos para serem lançados contra Kiev em retaliação pelo uso de armas de longo alcance ocidentais — uma especulação que circula amplamente nas redes sociais russas desde terça-feira (19). Pelo menos até as 23h30 (horário de Kiev), nenhum “ataque aéreo significativo” havia sido registrado, e, à tarde, o sistema de alerta contra incursões aéreas foi ativado apenas uma vez na capital ucraniana.

Nesse contexto, o diretor do Serviço de Inteligência Estrangeira da Rússia, Serguei Naryshkin, advertiu que haverá represálias contra os países que ajudam a Ucrânia a utilizar armas de longo alcance.

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“As tentativas de alguns países da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) de participar de ataques de longo alcance em território russo não ficarão impunes”, declarou Naryshkin à revista National Defence. A advertência foi reproduzida pelas principais agências de notícias.

Em relação às minas antipessoais, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, confirmou, em visita ao Laos, que a decisão foi tomada devido à mudança na tática de combate da Rússia, que passou a utilizar cada vez mais a infantaria.

“Suas forças mecanizadas já não estão à frente. Elas avançam a pé para se aproximarem e tomarem posições que abram caminho para as forças mecanizadas”, explicou Austin. Ele acrescentou que as tropas ucranianas precisam de recursos que ajudem a conter os avanços do exército russo no leste da Ucrânia, de acordo com reportagens de agências de notícias.

O Kremlin considera que os Estados Unidos e seus aliados tentam prolongar a guerra o máximo possível.

“Se considerarmos a tendência mostrada pela administração dos Estados Unidos, que está de saída, vemos que eles apostam em prolongar a guerra e, para isso, fazem tudo o que podem no tempo que lhes resta (até meados de janeiro)”, comentou o porta-voz Dmitry Peskov.

O porta-voz russo destacou que se trata de “um caso peculiar”, pois a Ucrânia aderiu ao Tratado de Ottawa, também conhecido como a Convenção sobre Minas Antipessoais, que proíbe a fabricação, o armazenamento, o uso e a transferência desses dispositivos. Vale lembrar que nem a Rússia, nem os Estados Unidos ratificaram o tratado.

Segundo o Washington Post, os Estados Unidos pediram à Ucrânia que utilize essas minas em seu próprio território e em zonas de combate sem presença de civis. De acordo com fontes da agência de notícias AFP, os dispositivos que a Ucrânia receberá serão “não persistentes”, ou seja, contarão com um mecanismo de autodestruição que será ativado ao atingir o tempo de uso programado.

Doutrina nuclear russa

Nesta terça-feira (19), horas depois de a Rússia sofrer o primeiro ataque da Ucrânia com mísseis de longo alcance Atacms (sigla para Army Tactical Missile System, sistema militar de mísseis táticos, em tradução livre), de fabricação estadunidense – um ataque ocorrido no dia em que a guerra completou mil dias –, o presidente Vladimir Putin promulgou o decreto estabelecendo de imediato a entrada em vigor da nova doutrina nuclear russa.

A norma, na opinião de especialistas, deixa aberta a possibilidade de a Rússia invocar um fundamento legal caso, por alguma razão, considere necessário recorrer ao seu arsenal atômico. Ainda segundo os analistas, as formulações permitem uma ampla margem de interpretação pelo líder do Kremlin, Vladimir Putin.

Poderia-se considerar, por exemplo, que a doutrina permite o uso de armas nucleares para repelir um ataque “com armas convencionais ou drones que representem uma ameaça crítica à soberania e/ou à integridade territorial” da Rússia e da Bielorrússia, sua aliada. Contudo – apontam os especialistas – o texto não define o que se entende por “ameaça crítica”, nem quantos drones ou mísseis convencionais precisam ser lançados simultaneamente para justificar uma resposta nuclear.

A nova doutrina, que substitui a promulgada em 2020, estabelece que será considerado um “ataque conjunto” a agressão de um país que não possua armas atômicas, mas que receba o apoio de uma potência nuclear, com ou sem a participação direta dessa potência no conflito.

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O texto, aparentemente, responde ao apoio em armamento e finanças que, ao longo desses mil dias de guerra, a Ucrânia tem recebido dos Estados Unidos, do Reino Unido, da França – três potências com arsenais nucleares – e de outros aliados. Embora o texto classifique tais ações como um “ataque conjunto”, os especialistas não acreditam que o Kremlin escolheria iniciar devastadores ataques nucleares.

Também se afirma que a Rússia aplicará mecanismos de “dissuasão nuclear” quando um “inimigo potencial” (no caso, a Otan) estabelecer “próximo às suas fronteiras” sistemas de defesa antiaérea, mísseis de alcance curto e médio, armas não nucleares de alta precisão e drones armados. Da mesma forma, será considerada uma ameaça a criação de novas alianças militares ou a aproximação, às suas fronteiras, da infraestrutura bélica das alianças já existentes (se referindo novamente à Otan).

A maioria dos analistas destaca que o documento esclarece que a Rússia “só recorrerá ao seu arsenal nuclear como medida extrema e quando não houver outra alternativa”. Isso indica que não é iminente o uso de armas nucleares por Moscou, já que não existe uma vinculação automática com as circunstâncias delineadas de forma genérica. Ao mesmo tempo, o texto permite ao titular do Kremlin uma ferramenta de pressão contra a ofensiva bélica dos EUA.

No cenário da cúpula do G20 no Rio de Janeiro, o chanceler Sergey Lavrov, representante de Putin no evento, responsabilizou os Estados Unidos e a Ucrânia por buscar uma escalada da guerra.

“O fato de nesta noite terem sido utilizados vários mísseis Atacms na região de Briansk é um claro sinal de que eles (Estados Unidos e Ucrânia) querem escalar a guerra. E sem os estadunidenses, seria impossível empregar esses mísseis de alta tecnologia”, afirmou Lavrov, lembrando que o presidente Vladimir Putin havia advertido que a postura russa mudaria caso fosse autorizado o uso de armas de longo alcance de até 300 quilômetros. A declaração do chanceler foi dada durante sua participação no evento no Brasil.

O analista militar Nikolai Mitrojin questiona por que Moscou demonstra tanta irritação pelo fato de a Ucrânia ter atacado com mísseis estadunidenses a região de Briansk, a 110 quilômetros da fronteira, quando – aponta ele – “há mais de um ano, esses mesmos foguetes vêm sendo lançados contra Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia, regiões já incorporadas à Constituição russa e que, em tese, fazem parte da Rússia”. Ele se pergunta: “Ou será que algumas regiões são mais parte da Rússia do que outras?”

O ataque foi o primeiro do tipo desde que a administração de Joe Biden autorizou o governo de Volodymyr Zelensky a usar as armas de longo alcance (até 300 quilômetros).

Zelensky e G20

Em uma entrevista coletiva em Kiev, Zelensky lamentou que os líderes do G20 não tenham dito uma palavra sobre o decreto promulgado por Putin. “Hoje, os membros do G20 se reuniram no Brasil. Disseram algo? Nada”.

O mandatário ucraniano, no contexto dos mil dias de guerra, enfatizou que a Ucrânia não se renderá e lutará até impor à Rússia uma “paz justa e duradoura”. Ao mesmo tempo, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, reiterou que a “operação militar especial” continuará “até alcançar todos os seus objetivos”.

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“Mais lenha na fogueira”

Para o Kremlin, a administração de saída dos EUA coloca “mais lenha na fogueira” ao autorizar a Ucrânia a empregar armamento de longo alcance no interior do território reconhecido internacionalmente como parte da Rússia, uma vez que a decisão provoca “uma escalada da tensão”.

Com essas palavras, o porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, criticou na última segunda-feira (18), em sua entrevista coletiva diária, o cruzamento de mais uma linha vermelha por parte da Casa Branca, conforme definido pelo Kremlin.

“Isso significaria, qualitativamente, uma nova fase de tensão e um grau maior de envolvimento dos Estados Unidos” nesse conflito, afirmou Peskov.

Ele reiterou o alerta “com meridiana clareza” do presidente Vladimir Putin em São Petersburgo, em meados de setembro passado, de que os EUA e outros países da Otan “entrariam em guerra com a Rússia” caso autorizassem o uso de mísseis de longo alcance contra alvos em território russo.

Isso porque, explicou o porta-voz do Kremlin, “esses ataques não poderiam ser realizados pela Ucrânia sozinha; seriam conduzidos pelos países que concedem a autorização (no caso de a Grã-Bretanha — com seus mísseis Storm Shadow — e a França, com seus SCALP, se juntarem à autorização dos Estados Unidos). Esses países, com apoio de seus sistemas de espionagem por satélite, definiriam a trajetória de voo dos foguetes”.

Por sua vez, a porta-voz da Chancelaria russa, Maria Zakharova, enfatizou: “O uso de mísseis de longo alcance por parte de Kiev contra nosso território significará a participação direta dos Estados Unidos e de seus aliados nas hostilidades contra a Rússia, assim como uma mudança radical na essência e na natureza do conflito. Nesse caso, a resposta da Rússia será proporcional e tangível”.

A autorização dada por Joe Biden, na opinião de vários especialistas consultados, parece inscrever-se em uma nova modalidade de guerra na Ucrânia: a psicológica, perigosa ao assumir que o Kremlin não recorrerá ao seu arsenal nuclear para responder à reiterada provocação.

Agora, indicam, apesar de Moscou saber que Kiev pode usar armamento de longo alcance contra seu território, não tem conhecimento sobre onde, quando ou quantos mísseis desse tipo o exército ucraniano possui.

Por bom senso, o exército russo teria que retirar da linha de frente de guerra 254 “alvos militares” (como quartéis, hangares de armamentos e depósitos de combustível), além de 16 aeródromos, que, segundo o Instituto para o Estudo da Guerra, estão na zona de alcance dos mísseis autorizados.

Por outro lado, é necessário tempo para compreender o significado real do anúncio feito no último domingo. Por enquanto, embora tenha a tendência de minimizar as possibilidades efetivas do inimigo, o grupo de análise bélica Rybar, próximo a setores da inteligência militar russa, afirma que, em meados de outubro, a Ucrânia possuía apenas entre 6 e 8 mísseis Atacms estadunidenses, além de cerca de 20 artefatos britânicos e franceses, que, segundo o grupo, poderiam ser usados somente contra os alvos determinados por especialistas da aliança norte-atlântica.

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Diante disso, ponderam alguns especialistas, com as devidas ressalvas e mesmo que a Ucrânia tenha recebido ou esteja para receber novos lotes desses mísseis, a autorização de Biden é mais uma demonstração simbólica de apoio ao governo de Volodymyr Zelensky do que uma mudança radical no equilíbrio de forças ao longo dos 1.200 quilômetros da linha de frente da guerra.

Por isso, argumentam outros observadores, a autorização foi primeiramente divulgada por meio de fontes anônimas “familiarizadas com a decisão de Biden”, primeiro através do New York Times, depois do Washington Post, e em seguida amplificada pelo Times londrino, com o eco das agências de notícias e das redes de televisão (Reuters, AP, CNN e Bloomberg; na França, o Le Figaro publicou no domingo que o governo de Emmanuel Macron também teria autorizado o uso dos mísseis SCALP, mas a informação foi desmentida na segunda-feira).

Tampouco foi especificado, acrescentam, um ponto fundamental: se será permitido atingir alvos a 305 quilômetros de distância, o alcance máximo dos Atacms (até agora permitido para até 165 quilômetros), e quais locais dentro da Rússia estão incluídos.

Alguns meios de comunicação sustentam, de forma extraoficial, que os mísseis poderão ser usados apenas na região de Kursk, como uma suposta advertência aos soldados norte-coreanos que, segundo rumores, estão estacionados ali prontos para entrar em combate. Outros, no entanto, afirmam que os mísseis poderiam atingir qualquer local dentro de seu alcance, até 150 quilômetros além de Moscou.

Não faltam especulações de que, caso os Atacms (no cenário hipotético de haver mais de 100 unidades) sejam equipados com ogivas de munição cluster, poderiam, em um só ataque, eliminar mais de cinco milhões de russos que vivem na área atingida. Tal cenário, segundo analistas políticos e legisladores russos alinhados ao Kremlin, como Serguei Markov, Andrei Guruliov e Vladimir Dzhabarov, poderia “desencadear a Terceira Guerra Mundial”.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Juan Pablo Duch Correspondente do La Jornada em Moscou.

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